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Em busca de um lugar no mundo

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 174-180)

SEÇÃO III – CAPITALISMO E CIÊNCIA: os pressupostos epistemológicos de uma

3.8 Em busca de um lugar no mundo

É diante dessa crise que surge a proposta feita por Meillassoux (2006) de uma renovação epistemológica da compreensão metafísica. Esse movimento, partilhado por outros pensadores como Bruno Latour e Tristan Garcia, é denominado como realismo especulativo e também é conhecido como “virada ontológica”. A proposta fundamental desse movimento é retomar questões clássicas da metafísica em oposição a formulações kantianas e humanistas, que nos fizeram perder o mundo exterior (le grand dehors), enveredando-se para a materialidade como uma dimensão propriamente ontológica, ou seja, uma imersão no “real” propriamente dito, sem interferência das experiências dos sujeitos. Os temas fortes pelos quais o grupo se debruça segundo Danowski e Viveiros de Castro (2014a) são: os seres, os objetos e quase objetos não humanos, a tecnologia e as ciências naturais.

Por isso, a tese filosófica elencada de imersão no real surge principalmente em Meillassoux (2006), como uma necessidade de contrapor o chamado correlacionismo, que afirma que a possibilidade de acesso ao conhecimento só é possível na relação entre pensamento e ser e nunca, apenas, a um termo isoladamente. De outra maneira, se com Kant perdemos o mundo, fechando-nos em nós mesmos, como também observou Tarde (2013), com essa proposta do realismo especulativo abrimo-nos para nós mesmo e, sobretudo, abrimos a possibilidade de conhecer o mundo exterior tal como ele é. Isso porque no realismo especulativo é o mundo enquanto exterior (le grand dehors) ao pensamento que realmente preocupa, não o pensamento propriamente dito. O mundo visto no realismo especulativo é anterior não só às experiências, mas também a toda e qualquer descrição. No limite, é um mundo sem observador. “O grand Dehors é uma terra devastada e glacial, a exterioridade radical é absolutamente, espantosamente, morta” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014a, p. 51).

A estratégia de base para a articulação desse processo de compreensão metafísica, portanto, é o pressuposto de um esquema mítico de um “mundo sem nós”, independente de toda experiência e anterior a qualquer descrição. A possibilidade de conhecimento estaria fora de toda experiência e o mundo poderia ser observado como pura materialidade, sem um observador, por meio de uma atitude antisubjetiva. Essa seria, segundo Meillassoux (2006), a estratégia para combater o correlacionismo e seus desdobramentos mais perigosos, o

fideísmo e o irracionalismo, que são os resultados da absolutização e ontologização da correlação por meio das filosofias subjetivistas.

O argumento utilizado para o embasamento são os dos conhecimentos produzidos sobre a ancestralidade, antes da existência humana, como, por exemplo, a formação do sistema solar.

A ciência experimental é atualmente capaz de produzir enunciados relativos a acontecimentos anteriores ao acontecimento da vida como da consciência. Estes enunciados consistem na datação de “objetos” por vezes mais antigos que toda forma de vida sobre a Terra (MEILLASSOUX, 2006, p. 24. Tradução minha) 69.

O estatuto de verdade, portanto, de coisas que supomos e aceitamos, mas que ocorreram antes da espécie humana e que não podem ser mediadas pela linguagem e cultura, mas sim em termos matemáticos:

Tudo o que o objeto pode ser formulado em termos matemáticos, há sentido ao pensamento como propriedade do objeto em si. Tudo o que, do objeto, pode dar lugar a um pensamento matemático (a uma fórmula, a uma numeralização), e não a uma percepção ou uma sensação, há sentido em fazer uma propriedade da coisa sem mim, assim que comigo (MEILLASSOUX, 2006, p. 16. Tradução minha) 70.

Seria essa a maneira de demonstrar, por meio da ciência moderna, a possibilidade efetiva de se chegar a uma realidade a despeito do sujeito, quebrando o nexo causal da filosofia moderna e da subordinação do pensamento do ser ao ser do pensamento. Em outras palavras, a proposta é de realizar uma “desrealização” do pensamento e de qualquer forma de cognição à medida que a vida deve ser excluída da estrutura última da realidade e negada a dependência da existência em relação à experiência. Para Meillassoux (2006), essa seria a única maneira de garantir um materialismo autêntico (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014a).

Essa proposta de Meillassoux (2006) parece interessante à medida que lança o sujeito ao Grand Dehors de forma violenta e dura, deixando o sujeito carente, sem um mundo e o

69 No original: « La science expérimentale est aujourd’hui capable de produire des énoncés concernant des

évènements antérieurs à l’avènement de la vie comme de la conscience. Ces énoncés consistent en la datation d’ « objets » parfois plus anciens que toute forme de vie sur Terre ».

70 No original: « tout ce qui l’objet peut être formulé en termes mathématiques, il y a sens à le penser comme

propriété de l’objet en soi. Tout ce qui, de l’objet, peut donner lieu à une pensée mathématique (à une formule, à une numérisation), et non à une perception ou une sensation, il y a sens à faire une propriété de la chose sans moi, aussi bien qu’avec moi ».

mundo sem o sujeito. O golpe dado pelo realismo especulativo ao antropocentrismo é preciso no sentido de mostrar as bases epistemológicas que impedem, ou, até mesmo, dificultam um olhar para além da subjetividade, chamando atenção de que existe, a despeito da existência, um mundo externo que possui uma história e uma lógica.

Entretanto, essa radicalização da proposta peca, quando subestima os efeitos concretos desse posicionamento metafísico relacional e antropocêntrico na realidade externa. É fato que urge a necessidade de descentrar essa metafísica relacional para abrir outras possibilidades de pensar o mundo exterior, mas a negação da relação das implicações subjetivas não parece resolver o problema. O anti-antropocentrimos trazido por essa proposta acaba por revelar-se extremamente obcecado pelo ponto de vista humano e ignorante dos efeitos destruidores das correlações humanas com o mundo (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014a).

Um passo mais pragmático seria problematizar a materialidade desse modo de pensar antropocêntrico na realidade exterior, aportada pelo realismo especulativo, com a ideia de um mundo existente a despeito de nós humanos (nós sem mundo). Ou como afirma Michael Foessel (2012), passarmos da constatação do fim do mundo e dos discursos e teorias catastróficas para a ocupação de espaços de ação para pensar a fundação de uma nova ordem cosmopolita.

Anders (2007) também busca sair da simples constatação do eminente desastre em busca de uma alternativa ao afirmar que as antigas gerações não poderiam ter percebido o tamanho do problema em que estávamos inseridos e, as próximas gerações, talvez, não terão oportunidade de transformação, pois é muito provável que seja tarde demais. Por isso, para o referido autor, diferente dos apocalipistas judeus e cristãos que esperam e sonham com o apocalipse que irá estabelecer o reino da paz e harmonia, o objetivo da geração presente é o de impedir o apocalipse, pois o que nos aguarda não é algo positivo, mas sim uma ameaça real em meio ao cotidiano da técnica, que poderá por fim a experiência humana na terra. Nossa geração é apocalipistas por uma questão de erro e, assim, para continuarmos a gozar da existência do ser é imprescindível frear o apocalipse com uma resposta tão real quanto a ameaça. A conservação do mundo, portanto, só será possível em um mundo diferente do atual, por isso a única certeza que deve guiar as ações humanas é que temos que correr mais rápido que as gerações anteriores e mais rápidos que o curso do próprio tempo para mitigar “o tempo do fim” (ANDERS, 2007).

E partir da constatação dos problemas para pensar as possibilidades é algo incontornável, segundo Benjamin (2012), pois somente a partir do momento em que são

identificados os princípios que fundamentam a tradição cultural da dominação, para saber dizer os horrores e as destruições, é que se torna possível trazer a tona outras possibilidades de vidas vividas, de relação com a natureza e de ser e estar no mundo. Assim, para Leff (1986, 2005), ao se elaborar críticas ao modelo de racionalidade e de produção hegemônicos, é importante propor a construção de outro modelo, que seja baseado em uma racionalidade ambiental e que leve em consideração as dependências e as diferentes formas de indeterminação na relação sociedade e natureza. Essa proposta aponta para um conceito de socialismo e racionalidade ambiental, diante do totalitarismo político e científico, que se funde na “[...] apropriação social e na gestão democrática e participativa do ambiente, concebido este como um sistema de recursos, de meios de produção, de potenciais produtivos e de condições de existência” (LEFF, 1986, p. 126).

O que é também ponderado por Marcuse (1973), ao afirmar que só é possível construir uma alternativa ao modelo hegemônico da ciência e da técnica desde que surja resistência por parte das populações onde o processo de industrialização e introdução de tecnologias ainda não ocorreu ou não se consolidou. Como, por exemplo, no Assentamento, que vive uma realidade no entremeio da tradição e do modelo hegemônico, e que, por isso, tem a potencialidade de mostrar alternativas criativas ao modelo puro. Essa proposta seria a de realizar uma política planejada que não sobreporia a industrialização e a tecnologia hegemônicas aos estilos de vida, trabalho e modo de produção dessas comunidades, mas colocaria essas bases técnicas para ampliar e melhorar as bases já existentes. Garantindo, assim, o desenvolvimento de uma existência humana integrada a natureza, quebrando, definitivamente, a redoma que separa e eleva as pessoas acima da natureza (DANOWSKI; VIEIROS DE CASTRO, 2014b).

Assim, pensando em ações concretas, Jollivet (2015) afirma que diante de um futuro pleno de incertezas, o mínimo que temos a fazer é pensar sobre um novo modelo de sociedade, um modelo cidadão, e ter esse modelo como algo a seguir. Isso poderia ser feito por meio de um pacto de paz com Gaia e por meio da formulação de uma proposta de vida mais lenta (desacelerada), como diria Stengers (2013), fugindo do crescimento a todo custo do capitalismo financeiro e criando uma possibilidade de futuro que não seja a barbárie. O mal estar causado pela era do Antropoceno e a intrusão de Gaia em nossas vidas é, de fato, um chamado à resistência a esse modelo. Um modelo no qual nós estamos compreendidos, o que significa uma luta contra nós mesmos. Uma luta que significa

[…] criar uma vida “depois do crescimento”, uma vida que explore as conexões com novas potencias de agir, sentir, imaginar e pensar (...) de aprender concretamente a reinventar modos de produção e de cooperação que escapem as evidências de crescimento e de competição (STENGERS, 2013, p. 14. Tradução minha) 71.

Tomando parte desse cenário, a possibilidade mostra-se para Danowski e Viveiros de Castro (2014a, 2014b) no mesmo sentido de Marcuse (1973), apresentado anteriormente, a partir da organização social das comunidades do mundo que ainda conservam uma relação com o mundo material em outros moldes – onde o Estado é dispensado, a terra é vista como parte integrante da vida social e tida como local de onde emana a autonomia política, econômica e social, a despeito da megamáquina do capitalismo de consumo e da produção 24 horas por dia. Sociedades que não se preocupam com a possibilidade de um futuro melhor, mas que se baseiam no presente, e tentam fazer dele o melhor possível.

Nesse sentido, Ceceña (2013) defende que os povos Mesoamericanos, Mayas e outros têm muito a contribuir a respeito da recuperação de modos alternativos e mais comunitários de organização, em que estão incluídos geografia, natureza e cosmos. Para a autora, esses elementos clamam para uma transformação radical da vida em que a “Madre Tierra” não é vista como nossa, mas sim que nós pertencemos a Terra.

As profecias do fim do mundo, neste sentido, são anunciadas para que haja uma possibilidade de que elas não ocorram. A palavra de ordem, portanto, é de que temos o dever de sermos pessimistas. Essa é a única via, segundo Danowski e Viveiros de Castro (2014a, p. 115) citando Anders, de se fazer “[...] um combate travado no ‘tempo do fim’ para recuar ‘o fim dos tempos’”. Isso porque, continuam os autores, “falar no fim do mundo é falar da necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta” (p. 159). Em outras palavras, como estava grafitado na entrada da Universidade de Paris X, como sendo um lema de esperança a se seguir: “Um outro fim do mundo é possível”.

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Ao traçar o histórico do Assentamento foi possível perceber que as disputas e conflitos que o marcam têm como base um modo de pensar o mundo, uma epistemologia. Assim, esta seção buscou compreender os elementos que sustentam a forma de pensamento hegemônico. Para realizar este resgate das bases da epistemologia hegemônica a estratégia

71 No original: « (…) créer une vie « après la croissance », une vie que explore des connexions avec de

nouvelles puissances d’agir, de sentir, d’imaginer et de penser (…) d’apprendre concrètement à réinventer des modes de production et de coopération qui échappent aux évidences de la croissance et de la compétition ».

adotada foi a de seguir uma linha da história filosófica científica do pensamento ocidental. O ponto de partida foi a constatação de que vimemos uma época geológica designada de Antropoceno. Essa época foi iniciada com o surgimento do homo sapiens e a sua capacidade de interferir de forma decisiva no sistema do planeta. Ao traçar esta linha, portanto, foram feitas várias ressalvas com os trabalhos de campo e outros exemplos de que a linha hegemônica é ficcional, pois vivemos em múltiplas temporalidades e experiências que em vários momentos escapam às categorizações teóricas. E esses fatos que escapam são o ponto central para demonstrar o avanço dessa lógica hegemônica e as tensões e conflitos daí resultantes.

SEÇÃO IV - AS DEMOCRACIAS PARTICIPATIVAS:

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 174-180)