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A exploração do trabalhador rural

SEÇÃO II – PELAS TERRAS DE PROMISSÃO: Universo empírico

2.2 A exploração do trabalhador rural

No contexto surgido com a Lei de Terras o fazendeiro passou a ser uma figura importante e central nas relações de trabalho com os homens livres, pois estes passaram a depender fortemente daqueles. Assim, estabeleceram-se relações de colonato, parceria e arrendamento entre camponeses e proprietários, além de outras, como agregados e posseiros. Nesses termos, todas essas relações sociais de trabalho ficam claramente definidas pela dependência desses trabalhadores pelos fazendeiros (FRANCO, 1997. GARCIA JR., 2018). Dependência esta, que Dona Catarina sentiu na pele, quando sua família arrendou um pedaço de terra de um fazendeiro, enquanto “erravam pelo mundo” e seu marido ficou doente.

Dona Catarina: O senhor tinha que pagar a renda, o que desse o que não desse...

Teve um tempo que nós morávamos no General Salgado, eu nem sei que época foi. Se escuta a história. Nós tocamos essa roça. E ele [referindo-se ao marido, Seu Jerônimo] sempre criava, toda vida criou animal para tocar a roça, que naquele tempo não tinha trator, era tudo no braço.[...] E naquele ano que nós pegamos a roça meus filhos caíram tudo doente, com tosse cumprida. E eu tava com oito dia que tinha ganhado o Rodnei, tava de dieta. Ele [Seu Jerônimo] foi na roça, diz que ia dá sal pra uma égua que ele tinha, chegou lá uma mula deu um coice nele e partiu um rim dele no meio. Ele ficou doente, ficou de cama urinando sangue. [...] Aí que acontece? Ficou

eu sozinha dentro de casa e a cama cheia de filho doente com sarampo, que é a doença pior que tem. Eu tinha que cuidar de porco, de animal, tinha que cuidar dos filhos, cuidar dele na cama, eu tinha que cuidar do outro que eu nem dormia, nem dia nem noite [...] Aí o arroz perdendo, ele perdeu arroz, perdendo a roça. [...] Teve um cumpadre nosso, que morava assim pertinho, falou assim: “Seu André”, que era o fazendeiro, “Seu André, pelo amor de Deus, o senhor despensa a renda daquele pobre, ao menos do arroz, porque a casa dele não tem, só a mulher que tá em pé, o resto tá tudo doente na casa dele. Ele [o fazendeiro] disse: “Eu não dispenso um quilo” [pausa, dona Catarina pensa por um momento e muda o tom da voz e repete a fala do fazendeiro] “Eu não dispenso um quilo”. Levou a renda do algodão, levou do arroz e nós ficamos só com um arroizinho pra comer.

A fala de Dona Catarina, uma lembrança de quando “vivia da renda”, demonstra uma experiência partilhada por muitos agricultores e camponeses nos quatro cantos do Brasil, os quais foram impedidos de acessar a terra por meio da compra, tendo ficado submetidos às vontades e às ingerências dos fazendeiros. Muitos dos que hoje fazem parte do Assentamento conheceram esse tipo de exploração de uma forma ou de outra. É possível afirmar que essa exploração, portanto, faz parte da subjetividade dessas pessoas e é uma marca indelével em seus corpos e almas. Por isso que eles têm consciência de que a formação daquela Fazenda, que hoje é um Assentamento, foi fruto dessa exploração.

Não é de se entranhar, portanto, que certa vez, em uma missa no Assentamento, ouvi o padre dizer: “Não existe riqueza sem roubo”. Como é comum em Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) – vertente de esquerda e marxista da Igreja católica, pós-concílio vaticano II9, e que teve papel decisivo na organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – nas missas a realidade da comunidade é discutida por um víeis social. Naquele domingo em específico, discutia-se que a terra havia sido deixada por Deus para todos e todas e não somente para alguns ricos e poderosos.

A observação do padre ia diretamente ao encontro do “milagre”, que faz parte da história da formação da Fazenda Reunidas. Como conta a história, a família Ribas comprava gado pantaneiro para sua Fazenda no estado de Mato Grosso. Misteriosamente, durante o trajeto – que não era feito de caminhão à época, mas sim “tocando” a boiada entre fazendas

9 O concílio Vaticano II foi uma reunião convocada pelo Papa João XXIII entre os anos de 1962 e 1965, que

e estradões – o número de gados que chegava a fazenda era muito maior do que o da partida. Este fato ficou conhecido na região como o “milagre da multiplicação dos bois dos Ribas” (BORGES, 1997).

Entretanto, não é necessário fazer uma profunda reflexão para perceber que este “milagre” é facilmente explicado. Como a família Ribas comprava gado no estado do Mato Grosso e o transporte era feito “tocando” a boiada entre várias outras fazendas até chegar à Promissão, o que fazia-se era a incorporação de gados de outras fazendas e sítios à boiada da família Ribas. Dessa forma, o número de gados que chegava ao destino era muito maior do que o comprado inicialmente. Em outras palavras, o que se tinha era uma estratégia de roubo de outros gados ao longo do trajeto. Como pregava o padre na missa: “não há riqueza sem roubo”.

O gado, em grande parte fruto de roubo, não era somente criado para engorda, pela família Ribas, mas também era usado como arma. A estratégia era usar os bois como um instrumento de intimidação aos pequenos sitiantes que ainda existiam na área, por volta dos anos 1930/1940, e que não estavam interessados em vender suas propriedades para a família Ribas. Um morador da região à época, em depoimento colhido por Borges (1997), mostra como era a ação da família: “Ele [o fazendeiro] comprava gado pantaneiro [gado bravo e explosivo] – comprava cem, chegava com mil, e jogava na roça da japonesada que, apavorada, vendia as terras, saindo corrida, deixando tudo, até trator, por causa da ameaça de morte” (BORGES, 1997, p. 74). Os gados, portanto, eram uma arma da família e devoravam as roças dos agricultores vizinhos. Esses agricultores não conseguiam reclamar as suas roças, pelo emparelhamento do poder judiciário com a família e, por isso, acabavam vendendo suas terras10.

Esse fato, que não pode ser tomado de forma alguma como isolado, demonstra como se davam as relações sociais no campo brasileiro, as violências, os assédios, os desrespeitos e desmandos. Ou seja, a base da formação dos grandes latifúndios é permeada por relações de poder, emparelhamento das instituições estatais e interesses do capital.