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A maçã de Adão e Eva

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 127-132)

SEÇÃO III – CAPITALISMO E CIÊNCIA: os pressupostos epistemológicos de uma

3.2 A maçã de Adão e Eva

Segundo Harari (2016) os mitos que tratam da transição do período dos caçadores e coletores para os agricultores e criadores de animais foram escritos há muitos milhares de anos depois da transição. O mito de Adão e Eva, descrito no Antigo Testamento da Bíblia, por exemplo, foi escrito no primeiro milênio antes de Cristo para retratar, sobretudo, o período que compreende o segundo milênio antes de Cristo. Para Harari (2016), é justamente por isso que não é surpreendente que essas histórias do Antigo Testamento rejeitem as crenças animistas. É de se notar, portanto, que o único animal que fala com humanos na Bíblia está no início do livro e é o motor da expulsão dos humanos do Jardim do Éden. Vale ressaltar que, segundo Lévi-Strauss (2009), foi essa expulsão que justificou na tradição judaica a passagem de um regime de alimentação de frutívoro para o carnívoro.

Esse tipo de relação desenhada no livro do Genesis, segundo Harari (2016), é um dos pontos-chave para compreender a relação que se estabeleceu entre homo sapiens e a natureza. Para o referido autor, é preciso pensar os elementos históricos e sociais que constroem o que chamamos de realidade ou intersubjetividade, para então compreender os valores fictícios que ordenam e ditam as ações humanas. Foi proposital, portanto, trazer o mito de Adão e Eva descrito por Dona Rosa no início da seção, visto que ele marca a relação das pessoas com a natureza no ocidente.

Nessa mesma esteia, Leff (2010) faz a observação de que a história humana é marcada por conhecimentos, saberes e interação com o mundo, os quais são produzidos a partir do contexto geográfico, ecológico, cultural e social de cada sociedade, isto é, “o saber sobre a realidade produz-se como efeito de práticas sociais diferenciadas” (p. 26). Ou seja, “o que caracteriza e dá especificidade ao humano é a emergência da materialidade simbólica e histórica que determina, em última instância, a articulação da cultura com seu meio” (LEFF, 2005, p. 140. Tradução minha)44.

Nestes termos, as práticas produtivas e a organização social geram formas e técnicas específicas para a apropriação social da natureza e transformação do meio. É por isso que

44 No original: “Lo que caracteriza y da especificad a lo humano es la emergencia de la materialidad simbólica

Harari (2016) vai observar que a estrutura do mito de Adão e Eva possui uma semelhança notável com a chamada Revolução Agrícola. O mito é de fato uma amálgama de relações e interações com o mundo prático que produziram formulações teóricas, mitos e concepções de mundo. Em outras palavras, a experiência material da relação com a natureza está intimamente ligada ao modo como cada sociedade e cultura a concebe e a compreende.

Isso aparece de forma marcante na fala de Dona Rosa e, principalmente, nos trabalhos que se dedicaram a recolher estórias contadas no meio rural, como é o caso do livro de Xidieh (1993). Nesse livro em específico, as narrativas ali reunidas demonstram, de fato, não só mitos e religiosidades, mas uma maneira de ver o mundo, as éticas e as moralidades dos grupos sociais. E no mundo ocidental, da cultura grega-europeia, o mito mais forte e importante que promove a maneira de ver, pensar e se relacionar com a natureza é o que advém de uma tradição judaica, apropriada pelo cristianismo, de criação do mundo no livro do Gênesis.

Na sequência do texto será possível observar que, como afirma Leff (2010), a apropriação desse mito feita pela cultura camponesa é bem diferente da apropriação feita pelas grandes correntes científicas e filosóficas, pois, os moradores do campo no Brasil são resultado de uma mistura de epistemologias vindas dos indígenas, dos africanos e dos europeus. Essas várias influências possibilitaram que eles “escapassem” da lógica hegemônica de compreensão da natureza elaborando uma visão própria e particular, feita na lida do dia a dia no campo e longe dos padres que versavam sobre o catecismo e doutrinas católicas.

Mas, quais são os elementos presentes no mito de Adão e Eva que são tão importantes?

No mito de Adão e Eva, um Deus criador constrói um jardim, chamado Éden, repleto de plantas, árvores e todos os animais do céu, da terra e do ar. A cada coisa criada, o livro diz que Deus via que era bom: “Deus viu que isso era bom” (GÊNESIS, 2000 p. 31). Adão, o primeiro ser humano vivente, é criado à imagem e semelhança do seu Deus criador,

modelado a partir da argila do solo e com um sopro de vida nas narinas45. E da costela do homem Adão, o Deus criador fez a sua companheira, chamada Eva. Deus coloca como ponto alto do processo criativo o homem e a mulher no jardim, após ter criado todas as outras coisas. Nota-se que Adão, o primeiro humano nessa narrativa, é criado a partir da matéria orgânica e com semelhança com seu Criador, o que lhe confere um lugar diferente dos outros animais. Esse é um protótipo singular a ser elencado no que tange aos desdobramentos dessa concepção.

Passada a criação, a primeira orientação de Deus a Adão e Eva é: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra” (GÊNESIS, 2000. p. 32. grifo meu). Entretanto, para desfrutarem dessas benesses, o homem e a mulher eram proibidos de comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois, segundo Deus, ao comer desse fruto eles morreriam. As outras frutas, portanto, eram livres para serem comidas, o que marca uma dieta a base de frutas nesse primeiro período.

A serpente, um dos animais do jardim, que segundo o mito era o animal mais astuto do jardim, convence a mulher de que se comessem do fruto da árvore do conhecimento eles não morreriam. “Mas Deus sabe – diz a serpente –, que no dia em que comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal” (GÊNESIS, 2000, p. 34, grifo meu).

Ambos comeram do fruto, abriram seus olhos e perceberam que estavam nus. O Deus criador se enraivece por ter sido desobedecido e penaliza a cobra para sempre rastejar, a mulher a sofrer as dores do parto e ao homem ele diz “[...] maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará com fadiga. A terra produzirá para você espinhos e ervas daninhas, e você comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que volte

45 Aqui cabe uma ponderação, pois, segundo uma tradição apócrifa do texto bíblico, no mesmo momento em

que Deus fez o homem da argila Ele havia feito a mulher, cujo o nome era Lilith. Conta-se que Lilith não quis se deixar subjugar por Adão, pois queria fazer valer seus direitos de também ser criatura de Deus. Como a situação ficou insustentável, diz o texto, que ela fugiu para o Mar Vermelho. Deus enviou anjos para exigir a sua volta ao Éden, mas ela ignorou e foi então banida. Para o lugar de Lilith Deus criou Eva da costela de Adão, ou seja, uma mulher submissa, dócil e inferior, pois não era a imagem e semelhança de Deus. É importante fazer essa ressalva, pois na tradição judaico-cristã a mulher vai sempre ocupar um lugar inferior, exemplo disso é o fato de mulheres não poderem ocupar as altas funções em ambas as religiões. Para saber mais ver: Hurwitz (2013).

para a terra, pois dela foi tirado. Você é pó, e ao pó voltará” (GÊNESIS, 2000, p. 35-36, grifo meu) 46.

Qual é a lição que os autores do livro do Gênesis (2000) tentaram transmitir com essa história? “Que não se devem dar ouvidos a serpentes e que geralmente é melhor evitar falar com animais e plantas. Isso só pode levar ao desastre”. (HARARI, 2016, p. 84). Para Harari (2016), esse é o desenho perfeito da passagem de um período de coletores-caçadores para agricultores, pois o Deus irado com a desobediência condena o homem ao trabalho47. E essa nova forma de organização social, por meio da agricultura e da domesticação de animais, teve como consequência direta uma nova onda de extinções em massa. A partir deste momento, portanto, um novo elemento surge nesta relação, pois ao domesticar os animais o homo sapiens inaugura para essas espécies uma era de grandes sofrimentos. Os animais, privados de suas vidas selvagens, passaram a ter uma desoladora vida nas fazendas dos humanos, como mostrarei na sequência do texto.

Por ora, vale reforçar que o mito de Adão e Eva tem um propósito claro de afastar o homo sapiens de uma relação mais estreita com a natureza, mostrando que o Universo é uma teocracia governada por deuses grandiosos. Analisando o mesmo mito, Danowski e Viveiros de Castro (2014a, p. 37) afirmam que “o Éden é um mundo-sem-os-humanos que é um mundo-para-os-humanos; os humanos são os últimos a chegar, e são, nesse sentido, o ‘fim’ (finalidade) do mundo”.

O objetivo, partindo dessa estrutura do mito, é afastar qualquer possibilidade de animismo e de justificar, assim, a crença em Deus e de que as pessoas são diferentes da natureza, natureza esta dotada de um potencial perigoso. Assim, as religiões teístas surgem na esteia da Revolução agrícola como uma forma de justificação das novas atividades dos homo sapiens, que diferente dos coletores-caçadores, eram bem conscientes das explorações que começaram a realizar sobre os animais e as plantas. Segundo Harari (2016), as religiões judaica, cristã e hinduístas são, em sua base, um empreendimento agrícola no que tange a sua teologia, mitos e liturgia.

46 Na carta encíclica “Laudato Si: Sobre o cuidado da casa comum”, escrita pelo Papa Francisco, em 2015 e

que versa sobre os problemas ambientais é dito que a partir do momento em que a humanidade tenta ocupar o lugar de Deus a harmonia com a natureza é quebrada, surgindo daí uma relação conflituosa. Entretanto, Francisco diz que hoje não se pode aceitar a interpretação de que este conflito signifique o domínio absoluto dos homens e mulheres sobre as outras criaturas. Todavia, esta hermenêutica do autor deve ser situada em uma tentativa de pensar uma relação de interligação entre os seres da criação a partir de uma preocupação ecológica atual (FRANCISCO, 2015).

47 É importante destacar que desde o início o trabalho na cultura judaico-cristã assume a dimensão de

penalização. Esse elemento reverbera em toda cultura ocidental e influencia o modo de ser e estar na sociedade, uma vez que a vida do trabalho é apartada da vida íntima do trabalhador, como observou Marx (1964).

Não é por acaso, portanto, que nas próximas cenas do mito de Adão e Eva surge a história de Caim e Abel. Nessa história, Caim era um cultivador do solo e Abel um pastor de ovelhas. Mesmo com a expulsão do paraíso, Deus havia imposto a necessidade de apresentação de dons que garantiria aos humanos a graça de Deus. Essa era a essência do pacto agrícola, para Harari (2016), os homens partilhavam sua produção com Deus e Ele garantia e salvaguardava a produção. Caim apresentou a Deus os frutos do solo e Abel as banhas do seu rebanho em oferenda. A oferta de Abel agradou a Deus. Irritado com Deus e com seu irmão, Caim matou Abel. Ao descobrir o ocorrido, Deus castiga Caim expulsando- o das terras que cultivava. “Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante sobre a terra” (GÊNESIS, 2000. p. 36-37). Essa história dá o tom do que é o livro e das instruções do judaísmo e cristianismo: a regulação da vida no campo e nas aldeias e as diretrizes para celebrar a colheita. Desse modo, as religiões teístas passam a justificar a recém-economia agrícola com novos mitos cosmológicos. O panteão animista e seu culto pagão são relegados ao pecado e surge assim uma nova ordem cósmica com apenas dois personagens: o homem e Deus.

A esse herói foi dada a missão de submeter e dominar todos os outros seres vivos, principalmente porque os homo sapiens eram os únicos dotados de almas imortais. O ser humano como ápice da criação poderia empurrar todo o resto para o segundo plano no planeta. E foi exatamente isso que foi feito. Segundo Harari (2016), esse mito da alma é tão poderoso que ele é parte constituinte das ações políticas, econômicas e legais do século XXI. Será possível observar isto de forma mais detida quando for exposto a forma como são criados os animais para consumo na contemporaneidade. Por agora, cabe ressaltar que os humanos passaram a ocupar este local de diferenciação dos demais animais graças a sua desobediência ao Deus criador, ao saborear o fruto do conhecimento. A punição foi o apartamento do homem e da mulher de sua condição genérica com a natureza.

A sobrevivência, a partir desse momento, só virá com o suor do rosto – diz o Deus criador – isto é, do trabalho. Em síntese, esse mito informa que o homem e a mulher passam a ser detentores do conhecimento que os pode equiparar aos deuses, mas, por conta disso, a terra lhes será inimiga e será necessário, cada vez, mais dominá-la e submetê-la para se conseguir o sustento. A natureza, nesse mito, desenha-se como algo apartada e distante do homem e da mulher, e que deve ser dominada. Assim, a natureza e o mundo exterior estabelecem-se somente como local de passagem até que haja novamente a redenção e a conciliação no reino dos céus. Isso permite ao homem e a mulher se verem livres para

explorar, saquear e, principalmente, intervir na natureza. Tudo isso decorre da maçã comida por Adão e Eva. O ato de comer a maçã significa a saída de uma situação de ligação com os outros animais e com a natureza para um estágio de dominação do homo sapiens. Assim, a revolução agrícola deve ser pensada como uma transformação econômica, técnica e religiosa.

Descreverei adiante aspectos da intervenção na natureza, quando tratar da ciência moderna. Mas, desde já, cabe demonstrar que o intento da ciência moderna de intervenção e de modificação dos ritmos biológicos da natureza, em sua origem, parte da ideia de que a natureza é algo que pode ser explorada. Assim, cabe pontuar que este mito, por meio do cristianismo, influenciou sobremaneira o pensamento ocidental, ainda mais quando essa concepção religiosa se entrecruzou com a epistemologia grega, que também traz em sua raiz um período de ligação genérica entre pessoa e natureza e, posteriormente, uma separação. Não é possível dizer, todavia, que somente o mito de Adão e Eva foi responsável por toda a base epistemológica que fundamentou a ciência moderna. Por essa razão é importante mostrar aqui o entrecruzamento entre filosofia grega e pensamento judaico.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 127-132)