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DESTROÇOS DE UM SUPERMERCADO ABANDONADO

4 RUÍNAS CITADINAS

4.2 DESTROÇOS DE UM SUPERMERCADO ABANDONADO

Nosso primeiro episódio narrativo tem como palco as ruínas de um supermercado abandonado, localizado na avenida Roberto Freire, no bairro de capim macio da cidade de Natal, o Supermercado Bom Preço, por motivos que não são bastante claros, entrou em falência e foi abandonado. O estabelecimento permaneceu em ruínas em um intervalo de tempo de aproximadamente, meados de 2013 até meados de 2017, quando o espaço foi reformado e inaugurado como uma franquia de materiais de construção, o qual nome não vem ao caso. É importante estabelecer o recorte do tempo em que essas ruínas estiveram presentes, pois “ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares do tempo.” (FOUCAULT, 2013 p. 25).

No ano de 2013, certo tempo após o supermercado ter sido fechado, eu e alguns conhecidos, levantamos a possibilidade de entrar no terreno para pintarmos juntos, apesar de certo receio, combinamos e em pouco tempo realizamos o primeiro encontro dentro daquela ruína abandonada, esperávamos que lá dentro houvessem várias superfícies interessantes para explorar, e quando chegamos lá pela primeira vez foi ainda mais surpreendente. O supermercado que estava abandonado, além de não contar com nenhuma segurança, contava com grande parte do mobiliário da loja ainda dentro do estabelecimento, ficamos chocados quando percebemos que itens como, caixas registradoras, corredores frigoríficos, escadas de estoquistas, e até extintores de incêndio ainda estavam lá. Tivemos a impressão de que o espaço tinha realmente sido abandonado com urgência, e os donos levado apenas o que deu tempo de levar.

O chão estava bastante sujo com muitos estilhaços de vidro quebrado, e em alguns lugares excrementos humanos, parte dos equipamentos danificados, e destroços do que havia sobrado espalhado por todo galpão. Revelando uma situação de abandono e a possibilidade aberta para de qualquer um que desejasse adentrar naquele espaço.

Na figura abaixo, um registro de quando eu e outros escritores estivemos nessas ruínas pela primeira vez. Normalmente quando um grupo se junta para compor coletivamente, todos pintam juntos em um mesmo mural, mas naquela ocasião, devido a amplitude do espaço, e, até o momento a falta exploração do mesmo, cada um saiu desbravando e pintando em um local diferente.

Figura 54 – Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire. /setembro, 2013.

A vastidão do galpão na imagem fala por si só, o supermercado que literalmente foi abandonado, ainda contava com parte de suas grandes estruturas físicas, apesar da aparente desocupação ampla do espaço. Desde o eminente abandono, as ruínas do Bom Preço foram transformando-se, aos poucos, num espaço, ou melhor, contraespaço, de um habitar distinto, pensamos, que a noção trabalhada por Foucault, de heterotopia, vem alargar a análise, na qual as pinturas urbanas seriam pensadas como unidades espaço-temporais expressas na superfície da arquitetura.

Esses espaços-tempos tem em comum serem lugares onde estou e não estou, como o espelho ou o cemitério; onde sou outro como na casa de tolerância, na colônia de férias ou na festa, carnavalizações da existência ordinária. Eles ritualizam cortes, limiares, desvios e os localizam. [...] Estes contraespaços, porém, são interpenetrados por todos os outros espaços que eles contestam: o espelho onde não estou reflete o contexto onde estou, o cemitério é planejado como a cidade, há reverberação dos espaços, uns nos outros, e, contudo, descontinuidades e rupturas. Há enfim, como que um eterno retorno desses rituais espaço-temporais e, se não a universalização das mesmas formas, ao menos uma universalidade de sua existência. Eles são apreendidos em uma sincronia e diacronia específicas que fazem deles um sistema significante entre os sistemas da arquitetura. Não refletem a estrutura social nem a da produção, não são um sistema sócio-histórico nem uma ideologia, mas rupturas da vida ordinária, imaginários, representações polifônicas da vida, da morte, do amor, de Éros e Tánatos. (FOUCAULT, 2013 p. 37).

Dessa maneira, podemos apreender sobre a caligrafia urbana que ela implica em uma ruptura da vida ordinária, criando uma relação dinâmica com o espaço, pautado por relações políticas e estéticas, assim como uma dimensão plástica e de sentido. A pintura, a escrita, tem um poder de fazer o seu autor ao mesmo tempo estar e não estar, existir e escapar, em um contraespaço, que se expressa na arquitetura dos mobiliários urbanos.

O desafio à arquitetura é também um diálogo por suas formas: a linha, por exemplo, é uma qualidade expressiva única no tempo e espaço, ela evidencia não apenas o nome escrito, bem como expressa a idiossincrasia42 do escritor e da circunstância do momento em que foi escrita. Isso quer dizer que se a arquitetura apresenta uma peculiaridade, ela vai se expressar de algum modo na disposição da caligrafia. Segundo Ostrower (1983, p. 31), “as linhas são como palavras ou gestos, ocupam um espaço-tempo, assim não se repetem da mesma forma, são únicas, têm timbre, cadência e emoção”.

Na figura abaixo, temos a paisagem visual de dentro do galpão, o lugar onde eventualmente no supermercado se dispõe os “frios”, uma estante frigorífica, se tornou a tela, onde cada placa de metal resguarda o espaço reservado para um caractere do letreiro “Pedurso”, escrito de uma ponta a outra. Interessante observar o estado de ruína, nos cacos esfacelados no chão do lugar.

Figura 55 – Supermercado abandonado, letreiro “Pedurso”, Av. Roberto Freire /setembro, 2013.

Na próxima figura, temos uma imagem mais pictográfica, de uma caveira, com uma faca na mão como quem toca um instrumento similar a um violino, de capa negra como uma ceifeira da morte, e ao fundo a paisagem das caixas registradoras do supermercado. A imagem fala bastante, apesar de o único escrito que podemos apreender é a assinatura do artista “Binho Duarte”. A paisagem na fotografia, dialoga com a pintura dando um ar tenebroso de um cenário apocalítico43 de destruição e morte, fazendo com que a pintura em si, se manifeste enquanto vida e inventividade da construção de uma narrativa possível.

Figura 56 – Supermercado abandonado, “Binho Duarte”, Av. Roberto Freire / setembro, 2013.

Seguindo a próxima figura, temos o registro de um trabalho pictórico, realizado pelo escritor “Mal”, na imagem, a figura de um palhaço que faz uma espécie de alusão à franquia “McDonalds”, chutando uma bola da “Nike”, um “cocktail molotov” na mão, acompanhado do título “Brasil 2014”, que faz uma referência a “Copa do mundo”, em um tom de crítica social.

43 Cenários apocalípticos ou pós-apocalípticos são um tema comum da ficção cientifica, onde a humanidade sucumbiu a

Figura 57 – Ruínas do Supermercado Bom Preço abandonado, “Mal”, Av. Roberto Freire /setembro, 2013.

Nesse sentido, as imagens falam fora do léxico comum da escrita, elas refazem o percurso lógico de sentido, por exemplo, no registro anterior, a referência a aspectos icnográficos de empresas famosas toma um outro rumo, ao invés de enaltecer, como a publicidade, a imagem está para depreciar, escapando pela tangente, operando numa desterritorialização da língua, a dando outros usos, e utilizando a imagem como uma enunciação de um outro campo político

Ainda que maior, uma língua é suscetível de um uso intensivo que a faz correr seguindo linhas de fuga criadoras, e que, por mais lento, por mais precavido que seja, forma dessa vez uma desterritorialização absoluta. Quanta invenção, e não somente léxica, o léxico pouco conta, mas sóbria invenção sintática.” (DELEUZE, GUATARRI, 1977, p.41).

Desse modo, a caligrafia urbana adquire uma invenção sintática diferenciada – por sintática me refiro à sintaxe, o estudo das palavras enquanto constituintes de uma frase, ou seja, na caligrafia urbana, os elementos não obedecem as mesmas funções gramaticas da língua maior – os elementos que a constituem, são dispostos de letras e imagens que se intercalam, se colocam em posições não convencionais, elas escapam, através de linhas de fugas criadoras, se desterritorializam, ao mesmo tempo em que reinventam os vocábulos de uma língua maior, ao seu próprio modo de fazer em vias alternativas. De maneira que o enunciado adquire um valor coletivo, que é compartilhado por outrem inseridos no contexto da arte urbana.

Na figura abaixo, temos um graffiti estilo wildstyle, realizado pelo escritor “Felix”, realizado na entrada da área de subsolo do estacionamento, o escrito se reflete na água acumulada na parte inferior, criando um efeito visual de espelho no registro fotográfico.

É válido lembrar que as instalações físicas se tornaram não apenas o suporte para as escritas citadinas, além dessas manifestações as heterotopias abrem espaço para outras apropriações. Por exemplo, indivíduos em situação de rua chegaram a usar o lugar como abrigo, assim como skatistas utilizavam espaços, como o do estacionamento, como uma pista de obstáculos para praticar, assim como projetos fotográficos chegaram a utilizar o espaço para ensaios com uma ambientação diferenciada, além de outros possíveis que não chegaram a meu conhecimento.

Figura 58 – Estacionamento abandonado Bom Preço. /maio, 2014.

Na próxima figura, temos a imagem da área exterior do Bom Preço, na figura, a produção artística de um mural, composto pela “FDM crew”, assinada pelos escritores “Hugh, Fb, Pok e Hades” (vide a legenda, feita pelos próprios escritores, no canto superior direito), o painel se destaca pela presença de estilos pictóricos e caligráficos, podemos descreve-lo como: no centro da imagem, um pássaro, com vários ovos, e em cada ponta do painel um estilo de letra, a esquerda em “3D” e à direita em wildstyle.

Figura 59 – Área externa do Supermercado Bom Preço, Rua Professor Adolfo Ramires /julho, 2014.

Nosso último registro do supermercado abandonado Bom Preço, é uma visão de seu pátio externo, de frente para avenida Roberto Freire, o espaço ocioso do estacionamento ocupado, a fachada do edifício repleta de letreiros de pixos, e a vegetação rasteira do mato tomando conta de grande parte da entrada.

Na medida em que foi sendo ocupado, o estabelecimento foi entrando em estado de declínio, e suas instalações se tornaram um “playground” para escritores urbanos, durante aproximadamente 4 anos. Aos poucos, medidas foram sendo tomadas, até que em 2015 todas possíveis entradas foram fechadas com cimento, deixando inacessível o espaço interno, até chegar ao ponto de o terreno ser arrendado e reformado, até dissipar essa heterotopia da ruína que foi, e transformar-se em uma loja comercial de material de construções, em meados de 2017.

Esse tipo de recorte singular do tempo serve para situar heterotopias pontuais na cidade, contudo, nos traz a reflexão de que, continuamente, esses tipos de espaço surgem e se extinguem.