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4 RUÍNAS CITADINAS

4.1 NARRATIVAS URBANAS

Ao chegar nesta etapa final da pesquisa, já foi percorrido um longo caminho, desenvolvemos previamente a noção da caligrafia urbana, e conhecemos algumas facetas dos estilos de escrita citadinos, observando alguns conteúdos e expressões, e inclusive, investigando tanto a dimensão de sentido como dimensão plástica dessas práticas, como se relacionam dentro de seus aspectos estéticos e políticos, como se conectam e como se desenham, tudo isso orientado pelo nosso referencial teórico central (explicado pelo diagrama presente na introdução), e alguns autores auxiliares.

Todo esse trâmite foi realizado para corroborar com a ideia fundadora da pesquisa de pensar “a cidade como um livro aberto”. Sendo assim, este último momento da dissertação traz para a nossa discussão a terceira característica de uma literatura menor (DELEUZE; GUATTTARI, 1977), o agenciamento coletivo de enunciação; em que tudo que se compõe ganha valor coletivo, em articulação com uma outra ideia chave, o conceito de heterotopia (FOUCAULT, 2013), como um espaço de exercício da diferença, o que nas palavras de Foucault seria “um espaço capaz de justapor em um lugar real vários espaços que normalmente seriam ou deveriam ser incompatíveis” (FOUCAULT, 2013, p. 25).

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer em que sentido trabalhamos o conceito de heterotopia, os primeiros escritos sobre o que Foucault chamou de uma ciência dos espaços outros, ou uma heterotopologia, que foram proferidos em uma conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos, na Tunísia em 1967, mas que foi apenas em 1984 publicado pela primeira vez com o título de “Outros Espaços”. Em 2013, duas conferências radiofônicas proferidas por Foucault, “O corpo utópico” e “As heterotopias”, dão resultado àpublicação de um livro41 que aqui se torna uma das principais bases para pensar essa noção.

41 No posfácio do livro, escrito por Daniel Defert, é questionada a falta de exploração desse conceito articulado por

Foucault, desde seu proferimento até sua primeira publicação. Segundo Defert, poderíamos interpretar essa lacuna de 1967- 1984 como uma história da não recepção do conceito “as noções de recepção e de não recepção ofereceriam um crivo de análise suficientemente fino par demarcar uma série de transformações tanto dos discursos estéticos, epistemológicos e políticos dos arquitetos e urbanistas nestes mesmo vinte anos, quanto da problemática do espaço nos escritos de Foucault?” (FOUCAULT, 2013, p. 34).

Devido à amplitude da relação entre linguagem e espaço, devemos restringir nossa investigação a pensar a noção de heterotopia combinada à literatura menor, para apurar a percepção da caligrafia urbana habitando a cidade. Foi decidido então, para análise desse estudo, considerar as ruínas, como espaços heterotópicos tratados nesse capítulo. Elegi duas ruínas urbanas na cidade de natal, as quais irei narrar e explicar em episódios separados, como se associam enquanto heterotopias, ou, contraespaços, na medida que se articulam a terceira noção fundamental – agenciamento coletivo de enunciação – para compreendermos a literatura menor.

Pensar essas narrativas citadinas através do espaço físico das ruínas, pondera a reflexão de que nesses locais, devido ao abandono e a falta de fiscalização ou controle de qualquer tipo, proliferam-se manifestações manuscritas à tinta, além de outras presenças possíveis. As ruínas como veremos a adiante, são espaços propícios ao exercício da escrita, da pintura estimulando os processos criativos que inspiram a arte urbana, nesses espaços podemos encontrar as mais inusitadas e imprevisíveis expressões.

Em relação à heterotopia encontrada no espaço das ruínas, podemos perceber esses locais como lugares totalmente à margem, aonde estruturas deterioradas são um convite aberto para ocupação. Os escritores fazem da cidade um espaço outro, uma heterotopia, no sentido que a arquitetura não é somente o espaço físico, mas também uma superfície de expressão de uma literatura menor, ou seja, do que uma minoria faz dentro de uma língua maior, e no caso das ruínas suas condições de abandono a transformam numa heterotopia de desvio por excelência.

[…] as heterotopias de crise somem e são substituídas por heterotopias de desvio: isto significa que os lugares que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são antes reservados aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida. (FOUCAULT, 2013 p. 22).

As ruínas, podem ser concebidas como heterotopias de desvio, partindo da deterioração da arquitetura, aos destroços espalhados pelo chão, dos vestígios do que um dia já foram, são lugares marcados pela incerteza do que está por vir. Durante as narrativas sobre esses espaços poderemos pensar como a arquitetura se transforma num contraespaço de habitação das práticas da caligrafia urbana. A ruína não é apenas um espaço físico, mas torna-se também um espaço circunscrito, capaz de produzir sentido para o escritor, utiliza- se da sua superfície para agenciar a prática da escrita, para fazer ver e fazer viver o seu nome que se dissemina na cidade.

Quanto à terceira característica da literatura menor – agenciamento coletivo de enunciação – é uma que noção indica que os conteúdos da caligrafia urbana possuem um valor coletivo, isto é, a cidade em si, pode ser compreendida como uma obra escrita por várias mãos, de modo que cada escritor não produz apenas uma obra em si, mas o fragmento de uma obra maior, a cidade.

A terceira característica é que nela tudo adquire um valor coletivo. Com efeito, precisamente porque os talentos não abundam em uma literatura menor, as condições não são dados de uma enunciação individuada, que seria a de tal ou tal “mestre”, e poderia estar separada da enunciação coletiva. De modo que esse estado da raridade dos talentos na verdade é benéfico, e permite conceber outra coisa que não uma literatura dos mestres: o que o escritor sozinho diz, já constitui uma ação comum, e o que ele diz ou faz, é necessariamente político, ainda que os outros não estejam de acordo. (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 27).

Como vimos anteriormente, na literatura menor, a atitude individual de cada escritor se ramifica em um ato político imediato, e, na medida em que se articula a um comum compartilhado (como evidenciado pela partilha do sensível), as escritas citadinas que denominamos caligrafias urbanas atuam como um agenciamento coletivo de enunciação que se inscreve na superfície da cidade. Sendo assim,

[…] é a literatura que se encontra encarregada positivamente desse papel e dessa função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária: é a literatura que produz uma solidariedade ativa, apesar do ceticismo; e se o escritor está a margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 27).

Se a literatura menor é capaz de fabricar uma nova consciência, ou sensibilidade, que seja possível de ser compartilhada entre uma comunidade de escritores e leitores, são espaços como as ruínas que se tornam tesouros da investigação da escrita citadina. Iniciamos então, a descrição das narrativas, imersa na minha experimentação enquanto um dos escritores, desses espaços heterotopicos que se situam no “interstício das palavras, espessura de suas narrativas” (FOUCAULT, 2013 p. 19), mas ao mesmo tempo ocupam um lugar real “utopias que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir conforme o calendário de todos os dias”.

É nesses termos que enviesamos a pesquisa articulando os referenciais teóricos, e os explorando durante a narrativa, para reafirmar, como as práticas de escrita citadinas desafiam a arquitetura da cidade, se reinventando e modificando o espaço urbano.

Dedico-me neste capítulo, em reunir registros de dois episódios de ruínas a céu aberto na cidade de Natal, sabendo que existem várias ruínas interessantes de se investigar, escolhi apenas essas duas em função de um recorte mais delimitado e coeso, para articular os conceitos teóricos com a argumentação escrita e poder explorar bem a narrativa dos espaços.