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A cidade como um livro aberto: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

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Academic year: 2021

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(1)

PAULO VICTOR FÉLIX DE AZEVEDO

A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Natal 2018

(2)

Azevedo, Paulo Victor Félix de.

A cidade como um livro aberto: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN / Paulo Victor Félix de Azevedo. - 2018.

129 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes CCHLA, Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2018. Orientadora: Prof. Dra. Norma Missae Takeuti.

1. Sociologia urbana Dissertação. 2. Paisagem urbana -Dissertação. 3. Graffiti - -Dissertação. I. Takeuti, Norma Missae. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 316.334.56(813.2)

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

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A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, submetida à banca examinadora como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Orientador (a): Profa. Dra. Norma Missae Takeuti.

Natal 2018

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A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, submetida à banca examinadora como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador(a): Profa. Dra. Norma Missae Takeuti.

Aprovado em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Profa. Norma Missae Takeuti Presidente – Orientadora

________________________________________

Profa. Roselene Cássia de Alencar

Membro Examinador Externo – Universidade Federal da Bahia

________________________________________

Prof. Fagner Torres de França

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Dedico este trabalho a meus pais, Paulo e Márcia, a minha companheira, Nayara, ao meu filho Kauã Serafim e a toda minha família, que sempre me apoiaram e me incentivaram para que eu chegasse a esta etapa de minha vida. Dedico à vida e a todos com quem já compartilhei bons momentos, aos caminhos sinuosos e aos desafios, visto que sem as adversidades não teríamos a possibilidade de crescer e aprender com nossos erros, pois é assim, com o tempo e a experiência, que se exercita a resiliência e que se desenvolve a sabedoria.

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Agradeço a minha professora orientadora Norma Takeuti, que me motivou a escrever o trabalho, acreditou e acompanhou o processo de crescimento e florescimento da minha escrita, sempre na perspectiva de produzir um conhecimento científico arejado, que articulasse os conceitos com a experiência da pesquisa, revelando a construção de uma obra genuinamente criativa e vigorosa.

Aos colegas universitários, com quem compartilhei vivências fundamentais para o crescimento intelectual, dentro e fora das salas de aula, bem como nas localidades que já tive oportunidade de visitar por meio da apresentação do meu trabalho. Sou grato por todas as oportunidades que pude alcançar mediante o âmbito acadêmico.

Agradeço a todos os companheiros e amigos escritores urbanos, com os quais pude vivenciar emocionantes momentos, desde pinturas efêmeras a painéis extensos, em inusitadas situações. Nessas aventuras, tão enriquecedoras para a narrativa da pesquisa, foi possível conhecer distintas personas, uma vez que, diferente do tradicional artista visual de ateliê, na rua estamos em diálogo direto com as pessoas, em situações que ora somos elogiados, ora somos confrontados. Toda essa experiência me faz acreditar fortemente no poder da arte como ferramenta política de transformação da sociedade, através do aprendizado com o próximo, respeitando diferenças, e exercitando a liberdade, buscando um equilíbrio ideal entre temperança e rebeldia.

(7)

Esta dissertação tem como objetivo investigar a cidade contemporânea a partir do fenômeno da “Arte Urbana”, especificamente os segmentos - graffiti e pixo -, na cidade de Natal. Tendo como base a proposta de pensar “a cidade como um livro aberto”, para articular os conceitos teóricos com a experimentação artística na qual se insere o pesquisador, a superfície da cidade é pensada nesse contexto como material de análise científica ao mesmo tempo que densa descrição narrativa. Para tal finalidade, são explorados três conceitos principais; o de literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977); a partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005); e heterotopia (FOUCAULT, 2013). Nesse sentido, a pesquisa encadeia o exercício intelectual com a sensibilidade poética, para perceber e pensar as escritas citadinas. Sendo assim, o trabalho tem como propósito evidenciar as narrativas enunciadas por essas práticas, questionando como elas ressignificam o espaço urbano de modo estético e político, na medida em que desafiam a arquitetura da cidade. Portanto, compõe-se uma cartografia da cidade de Natal, pensando como as expressões citadinas se articulam com o mobiliário urbano, a partir das fotografias registradas pelo pesquisador e a experiência empírica e etnográfica urbana.

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This dissertation aims to investigate the contemporary city from the phenomenon of "Urban Art", specifically the segments - graffiti and pixo -, in the city of Natal. Based on the proposal to think "the city as an open book", to articulate the theoretical concepts with the artistic experimentation in which the researcher is inserted, the surface of the city is thought in this context as material of scientific analysis while dense narrative description. For this purpose, three main concepts are explored; or of minor literature (DELEUZE, GUATTARI, 1977); the sharing of the sensitive (RANCIÈRE, 2005); and heterotopia (Foucault, 2013). In this sense, the research chains the intellectual exercise with the poetic sensibility, to perceive and to think the urban writings. Thus, the purpose of the work is to highlight the narratives enunciated by these practices, questioning how they re-signify urban space in aesthetic and political terms, insofar as they challenge the architecture of the city.

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Figura 1 – Poesia urbana “Pazciência”. Neópolis/novembro, 2016. ... 19

Figura 2 – Assinatura “Pazciência”, Avenida Abel Cabral/dezembro, 2016. ... 20

Figura 3 – Diagrama “A cidade como um livro aberto”. ... 21

Figura 4 – Avenida Roberto Freire, instalações abandonadas, “LPE, GTS, RBO, LKS e outros”. Capim Macio/fevereiro, 2017. ... 29

Figura 5 – Pilastra embaixo do viaduto do Baldo, “INFLUENCIA”. Baldo/fevereiro, 2017. ... 30

Figura 6 – Avenida Abel Cabral, lagoa de captação, “RASTA, BONES”. Nova Parnamirim/março, 2017... 31

Figura 7 – Margens da BR 101, instalações abandonadas, “LKS, VLZ, NYAH”. Neópolis/março, 2017. ... 32

Figura 8 – Margens da Rodovia BR 101, verso de outdoor “SNAIK, MAGO, FERA, VEP”. Capim Macio/março, 2017... 34

Figura 9 – Corredores do setor de aulas II, “NYAH”. UFRN/abril, 2017. ... 35

Figura 10 – Rua Carmindo Quadros, carro abandonado, “VAN, PAZ”. Nova Parnamirim/novembro, 2016. ... 36

Figura 11 – de A à Z, alfabeto caligrafia urbana por Everson Menor. janeiro, 2016. ... 42

Figura 12 – Blackbooks – cadernos de esboço/desenho. ... 43

Figura 13 – Caligrafia Urbana “Menor e FB”. Nova Parnamirim/janeiro, 2016. ... 44

Figura 14 – Outdoor vandalizado “Pazciência”. Nova Parnamirim/outubro, 2017. ... 45

Figura 15 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017. ... 46

Figura 16 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017. ... 47

Figura 17 – Lagoa de captação Nova Parnamirim, “STOMP, ARBUS” letra e personagem. Nova Parnamirim/outubro, 2017. ... 48

Figura 18 – Ruínas à margem da BR 101/setembro, 2017. ... 49

Figura 19 – Passarela Potilândia. BR-101/outubro, 2016. ... 50

Figura 20 – Pixo atropelando publicidade “elafantxe”, Av. Roberto Freire / fevereiro, 2017. ... 51

Figura 21– “Elafantxe” pixo pictórico, marginal da BR-101 /outubro, 2016. ... 51

Figura 22 – Graffiti rosto de letras por “Sheep”. Bloco I do Setor de aulas II. UFRN/fevereiro, 2016. ... 53

(10)

Figura 26 – Galpão abandonado letreiro “Pazciência 122”, Nova Parnamirim, Rua Aníbal

Brandão. /janeiro, 2016. ... 65

Figura 27 – Sequência de xarpi. Nova Descoberta/julho, 2017. ... 72

Figura 28 – Sequência de xarpi. Mirassol/agosto, 2017. ... 73

Figura 29 – Recortes duas assinaturas de xarpi solo. UFRN/outubro, 2017. ... 73

Figura 30 – Letreiro “Loukos”. Baldo com Av. Prudente de Morais/março, 2017. ... 75

Figura 31 – Letreiro “LPE e OCE”. Neópolis/junho, 2017. ... 75

Figura 32 – Edifício Abandonado. Cidade Alta/novembro, 2017. ... 76

Figura 33 – Grapixo “BDL”. Capim Macio/outubro, 2017. ... 77

Figura 34 – Grapixo “LPE”. Capim Macio/outubro, 2017. ... 77

Figura 35 – Letreiro “NEURA”. Cidade da Esperança/dezembro, 2017. ... 78

Figura 36 – Buraco da Catita, BOMB “Felix”. Ribeira/novembro, 2016... 79

Figura 37 – BOMB “Paz”. Av. Roberto Freire/janeiro, 2017. ... 80

Figura 38 – BOMB “OsLoucos”. Nova Parnamirim/outubro, 2017. ... 80

Figura 39 – BOMB “Aisha e Curio”. Av. Xavantes, Satélite/novembro, 2017. ... 81

Figura 40 – Peça “Bones”. Passo da Pátria/setembro, 2017. ... 82

Figura 41 – Peça “Grab”. Neópolis/outubro, 2017. ... 83

Figura 42 – Letra “Hades”. Potilândia/novembro, 2014. ... 84

Figura 43 – Letra “Hugh”. Potilândia/dezembro, 2014. ... 84

Figura 44 – Letra “Osmo”. Potilândia/dezembro, 2014. ... 84

Figura 45 – Graffiti 3D “Hugh”. Vila de Ponta Negra/fevereiro, 2016. ... 85

Figura 46 – Graffiti 3D “Hugh”. Neópolis/março, 2016. ... 86

Figura 47 – Sopa de letras o processo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017. ... 87

Figura 48 – Sopa de letras, registro “o antes e o depois”. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017... 89

Figura 49 – Sopa de letras Pixo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017. ... 90

Figura 50 – Sopa de Letras “o processo”. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017. ... 92

Figura 51 – Sopa de letras finalizada. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017. ... 93

Figura 52 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018. ... 95

Figura 53 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018. ... 96

Figura 54 – Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire. /setembro, 2013. ... 102

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Figura 56 – Supermercado abandonado, “Binho Duarte”, Av. Roberto Freire / setembro,

2013... 104

Figura 57 – Ruínas do Supermercado Bom Preço abandonado, “Mal”, Av. Roberto Freire /setembro, 2013. ... 105

Figura 58 – Estacionamento abandonado Bom Preço. /maio, 2014. ... 106

Figura 59 – Área externa do Supermercado Bom Preço, Rua Professor Adolfo Ramires /julho, 2014. ... 107

Figura 60 – Fachada da frente Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire /julho, 2014. ... 107

Figura 61– “Presépio de Natal” processo de pintura. Av. Prudente de Moraes /abril, 2013. ... 109

Figura 62 – Processos coletivos de pintura nas galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /maio, 2013. ... 110

Figura 63 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. ... 112

Figura 64 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. ... 112

Figura 65 – Galerias abandonadas., Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017. ... 112

Figura 66 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017. ... 113

Figura 67 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. ... 113

Figura 68 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes/ abril, 2018 ... 113

Figura 69 – A cidade como um livro aberto “esboço”, Av. Prudente de Moraes. /março, 2018... 117

Figura 70 – A cidade como um livro aberto, processo “cores”, Av. Prudente de Moraes /março, 2018. ... 117

Figura 71 A cidade como um livro aberto, processo "detalhamento", Av. Prudente de Moraes / março de 2018 ... 118

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1 INTRODUÇÃO ... 12

1.1 CAMINHOS DA PESQUISA... 16

2 CALIGRAFIA URBANA: dentro da rua e fora da língua ... 23

2.1 POR UMA NOÇÃO DE “CALIGRAFIA URBANA” ... 23

2.2 LITERATURA MENOR: fora do território oficial da língua ... 37

2.3 ESCRITURA NA RUA: comunicação e linguagem visual ... 55

3 DAS RELAÇÕES QUE SE COMPARTEM NA ESCRITA ... 64

3.1 DO INDIVIDUAL AS RELAÇÕES ESTÉTICAS E POLÍTICAS ... 64

3.2 ESTILOS ... 69

3.2.1 Xarpi (piXar) ... 72

3.2.2 Letreiro (Lettering) ... 74

3.2.3 Grapixo ... 76

3.2.4 Bombardeio (bomb) ... 78

3.2.5 Peça mestre (Masterpiece)... 81

3.2.6 Estilo selvagem (Wildstyle) ... 83

3.2.7 Letras 3D ... 84

3.3 SOPA DE LETRAS – UM ENCONTRO ENTRE ESCRITORES ... 86

4 RUÍNAS CITADINAS ... 98

4.1 NARRATIVAS URBANAS ... 98

4.2 DESTROÇOS DE UM SUPERMERCADO ABANDONADO ... 101

4.3 O ELEFANTE BRANCO SE TORNA COLORIDO ... 108

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: lampejos de cor em meio ao cinza ... 119

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1 INTRODUÇÃO

“As paredes são páginas, alguns desenham, outros escrevem,

bem fazem os que se atrevem, a se arriscar, por gestos incertos, porém que ao certo.

Despertam,

diversos universos1...”

Este estudo é dedicado a compreender a cidade contemporânea a partir da investigação de uma forma de expressão em evidência – a “arte urbana”2. Refiro-me a uma forma de linguagem visual na qual se “inscrevem” e se “escrevem” imagens e textos na superfície da cidade; e, por linguagem, entende-se como um sistema de elementos gráficos dispostos em certa composição. Aqui, no caso, a arte na rua realizada em contexto urbano. Pensar a cidade contemporânea é certamente uma tarefa desafiadora, um exercício laborioso, o qual a sociologia não pode deixar de se empenhar, sendo este um campo de infindáveis possibilidades. Devendo-se, então, definir em primeiro lugar de qual ponto de partida...pretende-se começar, para assim situar nossa percepção acerca da cidade

Durante o texto, quando me referir a “arte urbana” ou “arte na rua”, faço questão de deixar claro que estarei tratando dos segmentos específicos – graffiti3 e pixo4 – considerando que ambos são manifestações de semelhante natureza. E, mesmo considerando suas diferenças, observo que seria impossível para este trabalho de dissertação pensá-los de forma dissociada da relação pela qual partilham no habitar da cidade. A esse propósito, utilizarei o conceito de literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977) para dar fundamento ao conteúdo desta escrita que se escreve diretamente na cidade, onde os escritores são autores ativos de uma “obra literária”, sem muitas regras gramaticais e ortográficas previamente estabelecidas, um tipo de literatura não convencional, capaz de compelir a mudar a perspectiva de como enxergamos a cidade. Para esse fim, somos convidados a ler a cidade

1 Poesia composta em colaboração dos artistas “Pazciência” e “Alguém?”.

2 A expressão arte urbana ou streetart se refere a um movimento de fazer artístico que foi gradativamente se espalhando

pelas cidades e compreende várias modalidades desde as expressões mais visuais que tratamos neste trabalho como o

graffiti e o pixo, até outras formas como estátuas vivas, malabarismo, teatro, performance instalações, por exemplo. De

maneira geral, é possível considerar como arte urbana todo tipo de expressão criativa que se faz no espaço coletivo em contexto urbano. Esta, por sua vez, deve ser considerada enquanto uma prática social, segundo Vera Pallamin (2000, p. 13), enquanto “um modo de construção social dos espaços públicos, uma via de produção simbólica da cidade, expondo e mediando suas conflitantes relações sociais.”

3 Utilizaremos a grafia graffiti em vez de grafite para respeitar o modo como é escrito por seus praticantes, e também

devido à raiz etimológica da palavra que será trazida para discussão mais adiante.

4 Utilizaremos a grafia pixo e pixação, em respeito ao modo como é escrito por seus praticantes, em vez de picho e pichação,

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de um modo diferente a começar pelas expressões que chamaremos adiante de“caligrafias urbanas”.

Dessa maneira, foi eleito, portanto, o título de “A cidade como um livro aberto”, para definir este estudo, focado em compreender essas narrativas citadinas, considerando que as análises científica e teórica compartilham o espaço de reflexão com a experimentação escrita dentro da cidade. Para deixar mais claro, durante o desenvolvimento da pesquisa, considero que me situo em ambos os lados da investigação, tanto como pesquisador que coleta dados e descreve narrativas, quanto como objeto de estudo, no sentido de que também sou um escritor urbano, compositor de caligrafias, que risca e se arrisca (polissemia da expressão “riscar” que exploraremos mais adiante) dentro da cidade, experimentando as possibilidades dessa forma de habitá-la. De tal maneira, distingue-se qualquer noção equivocada de que existe uma fronteira sólida entre pesquisador e objeto de pesquisa, quando há, na verdade, uma relação de continuidade e de contiguidade.

As inquietações, ao estudar esses tipos de literaturas menores5, surgem, ainda em

tempos de graduação6, quando me permiti explorar esse universo enquanto “escritor de rua”.

Naquele tempo, não tinha sequer muita experiência, apenas alguns poucos conhecidos que também realizavam essa prática, um caderno de rascunhos no bolso, algumas poucas tintas e bastante disposição para arriscar e riscar; ousei, então, experimentar essa sensação e as zonas de intensidade que poderia proporcionar. Até os dias de hoje, essa prática compõe a minha existência social; melhor dizendo, ela se articula com outros exercícios de minha existência, como o exercício intelectual-acadêmico.

Encontro-me, portanto, entre a prática científica da construção da dissertação e a composição artística da escrita na rua. É certo que ambas essas práticas me proporcionaram amplas experiências, para fora da minha cidade e até do meu país, mas, ao mesmo tempo, elas nunca se anulam, certamente se complementam. Por exemplo, em diversos eventos acadêmicos que participei e apresentei algum fragmento desta pesquisa, também fui, em paralelo, compor escritos e pinturas nas cidades que visitei, como parte da investigação. Logo, dessa experiência pude apreender muitos conteúdos e compartilhar, tanto com outros pesquisadores, como com outros escritores urbanos, discussões que alargassem a percepção dessa prática nas cidades.

5 “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas aquilo a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE,

GUATTARI, 1977, p 25). É nesse sentido que observamos os grafismos citadinos como a manifestação de uma literatura menor, que utiliza a cidade como suporte para escrita de sua obra.

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Percebi, nesse momento, que ainda que eu recortasse o meu objeto de pesquisa, o recorte espacial físico não me parecia tão acentuado quanto às conexões articuladas por ambas as escritas – acadêmica e urbana – que promoveram intercâmbios de experiência e laços de amizades. Nesse sentido, é possível dizer que esta pesquisa se estende para além de seu espaço circunscrito: a minha vivência. Ainda que essas práticas tenham ampliado meus horizontes para além da minha própria cidade, depois de bastante reflexão, notei que, grosso modo, as caligrafias urbanas são formas de expressão que se manifestava em todas as grandes cidades do mundo, o que, em alguma medida, pode considerá-las como uma prática global. Afinal, acabei por decidir, para fins desse estudo, considerar principalmente a sua prática local. Estabeleci, portanto, que o palco desta dissertação, enquanto um recorte espacial, deveria ser a cidade de Natal, o qual se tornava criterioso por ser em um local onde presenciei e compartilhei diversas experimentações. Estas, por sua vez, lançaram-me dentro do universo desta pesquisa, pois se tratava da cidade que foi meu ponto de partida. Assim, para a razão deste estudo específico, todas as imagens se resumem a registros realizados em Natal (e sua região metropolitana7), Rio Grande do Norte.

Após definido o recorte espacial da pesquisa, reitero os motivos que me fizeram tratar o graffiti e o pixo dentro da caligrafia urbana como duas faces da mesma moeda. Seria possível dedicar-me a cada um deles separadamente, no entanto, deixaria uma lacuna no estudo de uma questão que não poderia passar despercebida, “perderíamos um ponto fundamental da reflexão: a comunhão subterrânea que eles possuem, tanto na história da prática como nas interdependências processuais para interferirem na cidade” (FRANCO, 2009, p. 20). Franco (2009), como um dos estudiosos pioneiros sobre as questões que envolvessem o graffiti e o pixo no Brasil, já notava que para a discussão do campo interno as duas práticas – graffiti e pixo – foram se distinguindo formalmente, pois, embora as duas permanecessem ilegais, a repressão caiu com mais força sobre a pixação, em razão de sua radicalidade estética mais agressiva e de afrontamento, já o graffiti obteve maior aceitação por parte da sociedade devido a seu aspecto decorativo e ornamental, portando uma estética mais admissível aos olhos de uma parcela expressiva da sociedade. Ainda assim, podemos presumir que grande parte dos escritores transitam entre essas duas linguagens, uma vez que ambas têm origem da mesma matriz, ainda que alguns escritores se identifiquem mais com uma prática do que com outra.

7 A região metropolitana de Natal, conhecida como grande Natal, é formada pela capital Potiguar e reúne mais quatorze

municípios do estado do Rio Grande do Norte: Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, Extremoz, Ceará-Mirim, Ielmo Marinho, Maxaranguape, Monte Alegre, Nísia Floresta, São José de Mipibú, Vera Cruz, Arês e Goianinha.

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Quando nos perguntamos quem são esses escritores, indivíduos ativos no exercício de uma prática que se inscreve na superfície da cidade, a caligrafia urbana, certamente encontraremos algumas contradições. É sabido que essas práticas – graffiti e pixo – compõem modos de vida associados a uma determinada juventude contemporânea. Ainda que este não seja o foco da investigação, os jovens comparecem, em grande maioria quando comparados a outras categorias geracionais, enquanto indivíduos escritores de rua lançando-se em experimentações sociais que podem lançando-se inscrever no próprio fluxo da vida urbana para participar de sua transformação. Nesse sentido, não se pertence a um grupo, bem como não se adere a uma dada experimentação, de maneira estática; a cidade assim como os indivíduos que praticam escrita urbana estão em movimento, pois, o que está em jogo é o fluxo de transições e não uma categoria sólida de identidade.

No que concerne à pixação, a maior parte dos praticantes é oriunda de bairros periféricos, o que não significa isso ser uma regra restritiva de acesso à prática. Já no graffiti, para além de jovens da periferia, nota-se uma maior incidência de pessoas financeiramente mais favorecidas, inclusive em razão de essa prática exigir um maior investimento monetário (cada lata de spray custa em média de vinte reais por unidade); logo, é necessária uma quantidade maior e mais diversificada de material, do que para realizar o pixo. Com relação ao gênero de escritores, a maioria dos praticantes são homens, contudo, também existe uma participação enérgica das mulheres, as quais inclusive reivindicam seu espaço enfatizando a presença feminina no interior desse espaço majoritariamente masculino. Entretanto, se essas observações são feitas para efeito de contextualização do leitor, elas não serão o eixo central da pesquisa, esta, por sua vez, dedica-se mais especificamente a discorrer sobre a construção de tal prática no espaço urbano, explorando o campo das inventividades e composições que trazem à tal prática maior notoriedade e visibilidade – seja ela positiva seja, até mesmo, negativa – no seio das cidades contemporâneas.

Em virtude de termos a superfície urbana como campo de investigação, esta pesquisa é em sua maior parte registrada e examinada nas ruas da cidade. Levo em conta que a rua é constituída de um espaço heterogêneo, de modo que não se pode ambicionar, em uma pesquisa, abranger a totalidade; no entanto, irei delimitar (no sentido de construir) um espaço circunscrito, no qual me coloco, existo e pratico a linguagem da caligrafia urbana e a partir do qual experimento, observo e descrevo esse agir mediante uma linguagem etnográfica e de registros visuais.

Desde então, o objetivo deste trabalho é o de evidenciar as formas de manifestar, por meio da escrita dentro da cidade, a ideia de uma “‘cidade como livro aberto”, ao ponto que

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possamos ter as ferramentas conceituais aliadas à sensibilidade poética a fim de poder ler essas narrativas. Sendo assim, a questão norteadora central da pesquisa é “em que medida a caligrafia urbana é capaz de desafiar a arquitetura da cidade, enquanto ressignifica o espaço urbano por intermédio de sua própria estética e política de existir?”. Por ora, já uma grande questão para um trabalho de dissertação.

1.1 CAMINHOS DA PESQUISA

Ao me deparar com o problema da pesquisa, surgiu uma tarefa imprescindível de se pensar: a ponderação reflexiva em como proceder, no sentido de desenvolver um raciocínio lógico para pensar e compreender essas práticas inseridas ao contexto urbano. No entanto, questionei-me como o raciocínio lógico poderia ser suficiente em um tipo de pesquisa que pretende captar sensibilidades artísticas e estéticas, as quais atravessam também o agir do pesquisador. Como alguém que pertence à academia científica e atua diretamente em uma prática artística, mediante a finalidade de alicerçar uma narrativa discursiva que equilibre razão e sensibilidade.

Nesse momento, atentei para o texto de um autor que contribuiu para o pensar do caminho da pesquisa. Robert Nisbet (2000), em sua a obra A sociologia como uma forma de arte, disserta acerca das contribuições da sociologia para o pensamento moderno. Nesse intuito, ele traz a convicção de que os maiores avanços da disciplina se dão por meio de processos que a mesma partilha com a arte, isto é, “sejam quais forem as diferenças entre ciência e arte, é o que elas têm em comum o que mais importa para a descoberta e a criatividade” (NISBET, 2000, p. 112). Pois, de acordo com o pensador, não se necessita ir muito além da renascença para notarmos que a arte e a ciência podem ser concebidas como manifestações diferentes de uma mesma forma de consciência criativa. Sendo arte e ciência a princípio indissociáveis, houve um momento de cisão, relacionada à Revolução Industrial no final do século XIX, quando “gradualmente espalhou-se a ideia de que a ciência, diferentemente da arte, flui através dos mesmos canais metódicos e sistemáticos que os negócios ou do direito ou da medicina. (NISBET, 2000, p. 115)”.

Nessa época, a ciência passava a contaminar-se de um “narcisismo metodológico”, o qual se apegava fortemente a uma rigorosa observância aos procedimentos. Com o passar do tempo, consolidou-se a ilusão de que enquanto a ciência se preocupava em pensar a realidade, a arte tratava de nada mais que o ornamental, o decorativo e o estético. O que passa é que essa desleal noção cria certa confusão, em sua capacidade de ser prejudicial

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tanto para a arte como para a ciência, isto é, nas palavras de Nisbet (2000, p. 120), “muitos sociólogos têm assumido que, porque o pensamento científico é, por definição, racional e lógico em sua expressão, seus caminhos psicológicos devem ser, portanto, limitados a processos estritamente empíricos e lógicos”.

O que se deve reconsiderar é que, para se chegar a um determinado resultado dentro de uma pesquisa científica, o nosso pensamento não deve operar apenas por vias racionais, ou seja, quando reflete e chega a um insight8, por exemplo, o cientista passa pelo mesmo momento de imaginação criativa, digamos pela inspiração do mesmo modo que o artista. Diante disso, postula-se que não se pode deixar o pensamento científico correr o risco de se afundar em uma metodologia estritamente racionalista, passando então a praticar um modo científico arejado, que se abra espaço para uma aliança equilibrada entre a intuição, a arte e a poesia. É esse o sentido de se equiparar o fazer sociológico como uma forma de fazer arte. Tal reflexão me motivou a pensar a composição da escrita deste trabalho como uma relação entre os estímulos provenientes da arte e da sociologia. Sendo assim, para este fim metodológico, durante a escrita, o recurso da metáfora é utilizado como grande aliado na descrição das narrativas da cidade. Desse modo, pensamos “a cidade como um livro aberto” ou “o graffiti e o pixo como uma tatuagem na pele da cidade” como figuras imagéticas as quais podemos associar na mente através do recurso da metáfora.

O pensamento humano, em geral, é inconcebível sem um certo grau de utilização da metáfora. Cada vez que identificamos uma coisa com outra – normalmente uma mais bem reconhecida na natureza que a outra – estamos recorrendo à metáfora. “A mente é uma máquina”; “nosso deus é uma poderosa fortaleza”; “as sociedades são organismos”; todos esses são exemplos de construções de metáforas. A metáfora não é um simples recurso gramatical, uma mera figura de retórica, isto é, isso não constitui sua plenitude. A metáfora é uma via de conhecimento, uma das mais antigas, profundamente enraizada e quase indispensável conhecida forma de saber na história do pensamento humano9. (NISBET, 1979, p. 55)

Esse modo de pensar, levou a um caminho epistemológico instigante, no sentido de pensar a metodologia de escrita da dissertação por meio de uma linguagem mais fluida, que levasse em conta tanto o arcabouço teórico que sustenta a argumentação lógica do trabalho, quanto a flexibilidade da narrativa, assim como fazem os cronistas e contadores de estórias. Dentro dessa perspectiva, um segundo autor me pareceu pertinente na perspectiva de um equilíbrio de diálogo entre arte e ciência. Edgar Morin (2005), em uma obra intitulada Amor, poesia, sabedoria, observa a existência de dois tipos de linguagem durante toda a história:

8 Acontecimento cognitivo associado a uma repentina capacidade de discernimento, que pode ser descrita como uma

espécie de epifania. Uma clareza súbita da mente, no intelecto do indivíduo; iluminação, estalo, luz.

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“uma, racional, empírica, prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira tende a precisar, denotar, definir, apoia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa. A segunda utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora.” (MORIN, 2005, p. 35). Essas duas linguagens são concebidas respectivamente enquanto prosaica e poética podem estar justapostas, misturadas ou separadas; de qualquer modo, as duas coexistem no tecido da vida. Em meu ponto de vista, a linguagem prosaica é análoga à científica, enquanto a linguagem poética é análoga à artística.

Nesta dissertação, a escrita se configura enquanto um diálogo entre o prosaico e o poético, escapando diversas vezes da narrativa exclusivamente racionalista. A partir do momento em que penso a metáfora “a cidade como um livro aberto”, é possível imaginarmos, do ponto de vista racional, sua arquitetura como um grande colosso de concreto e metal, os prédios como dentes que saem da boca do asfalto até o céu, as ruas e viadutos como linhas que cortam e organizam racionalmente a cidade; já a poesia que se encontra nas narrativas da escrita urbana, escaladores com latas de spray gravando seus nomes em locais mais inusitados; assim como a “flor que nasce do asfalto10”, análogo à

natureza que rompe o concreto, se movimenta pelas rupturas do cimento e não cessa de surgir com ímpeto, assim é também a escrita, seja regada por motivações seja cortada como uma erva daninha, ela não cessa de brotar e de se espalhar selvagemente.

Mediante as experimentações da escrita na rua, encontrei-me em uma vereda bifurcada a qual metaforicamente denominei “diálogo de risco” – essa expressão remete a um movimento de bifurcação com sentido ambíguo: de um lado, movimentos de riscar, de rabiscar, de marcar uma superfície ou de inscrever um pensamento; de outro lado, o de se arriscar, correr riscos, de desenvolver atividades perigosas ou desestabilizantes. Desse modo, a experimentação como escritor me colocou em um lugar onde a escrita se entremeia ao risco da invenção poética enquanto trava contato com a escrita acadêmica, que, por sua vez, opera uma predominância da linguagem racional.

É nessa relação entre as escritas que, quando me coloco no trabalho de campo, na rua, desloco-me do pesquisador científico e me refaço no escritor urbano. Enquanto pesquisador acadêmico assino sob meu nome de batismo Paulo Azevedo, já na rua,

10 “Uma flor nasceu na rua! Passem longe, bondes, ônibus, rio de aço e tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia,

rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” trecho da poesia “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade. OLYMPIO, José, 1978, p.14).

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me para uma figura de heteronímia11, assinando como “Pazciência”, cuja assinatura não é apenas uma espécie de pseudônimo, é uma personalidade que se expressa na rua enquanto escrita, é a junção das ideias de paz e ciência com a ideia de paciência na composição, formando uma nova palavra, uma produção de sentido íntima, por meio da qual convido o leitor a refletir.

É nas ruas que me desfiguro da linguagem racional acadêmica e me lanço em uma experimentação poética e política, na composição de versos, imagens, e até na afirmação da minha própria assinatura, encarando-me em uma relação com a cidade capaz de transformar a vivência urbana, seja de modo mais externo e objetivo grifando as superfícies, seja até de modo mais interno e subjetivo sugerindo novas ideias a possíveis leitores. A minha experiência enquanto escritor me conduziu então a pensar que as narrativas do graffiti e do pixo se inscrevem tanto na cidade como no fluxo de vida de quem as experimenta, deixando por hora essa seguinte reflexão.

Figura 1 – Poesia urbana “Pazciência”. Neópolis/novembro, 2016.

No verso em um parque da cidade, temos o escrito “a vida é uma poesia escrita nos gestos do cotidiano”, assinada por mim enquanto Pazciência. É assim que a relação entre o artista e o pesquisador se articula se fazendo na rua, retornando ao texto acadêmico enquanto reflexão de uma experimentação escrita, fruto de um diálogo entre – o prosaico e o poético – com isso podemos considerar ambas as práticas entrelaçadas.

Logo abaixo, trago mais um de meus registros pessoais, a declaração de meu nome firmado nas ruas, em uma placa nada convencional feita de um pneu velho, não sei quem é

11 Heteronímia no sentido de um autor de uma obra quando o escritor não assina seu nome real, mas cria uma personalidade

real que as assina. No caso de Fernando pessoa, por exemplo, criou vários heterônimos, cada um com sua individualidade, como Alberto Caeiro, Àlvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis, todas criações suas.

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autor da obra (a placa no caso), mas ali enxerguei uma bela superfície, que ilustra o que é essa obra literária citadina, a experimentação atravessada de inventividades possibilidades e surpresas. Assim é o compor na rua. Ao lado também, no registro, minha bicicleta, meio de transporte útil (e favorito) para sair a escrever e registrar nas ruas, aliada de muitas intervenções e, decerto, também uma das responsáveis por minha percepção peculiar da cidade.

Figura 2 – Assinatura “Pazciência”, Avenida Abel Cabral/dezembro, 2016.

Enfim, é desse espaço circunscrito de experimentação da cidade que lanço mão das categorias e conceitos científicos que compõem este trabalho, ponderando como se associa a prática da caligrafia urbana em relação à ideia de pensar a cidade como um livro aberto. Originalmente, o termo utilizado para os praticantes da caligrafia urbana remete à palavra em inglês writer12. Todavia, será preciso reconsiderar certas categorias para proceder a esta investigação, em vez do termo writers, ou a nomenclatura grafiteiros/pixadores, como uma definição identitária, optei por denominar os indivíduos praticantes da caligrafia urbana como escritores; e, nesse sentido, os escritores são também calígrafos, na medida em que reinventam as letras escrevem narrativas e pintam suas composições na superfície da cidade. Podemos desde já nos referir aos autores dessa literatura citadina como escritores/calígrafos, apesar de não ter a intenção de traçar seus perfis, pois o presente estudo é dedicado a entender o processo dessa escrita urbana.

Logo abaixo, trago a imagem de um diagrama criado com a intenção de articular o principal referencial teórico utilizado durante a pesquisa.

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Figura 3 – Diagrama “A cidade como um livro aberto”.

Construí esse diagrama como uma ferramenta que operasse uma articulação entre os principais conceitos trabalhados no texto, de modo com que eles se articulem para fundamento do exercício teórico intelectual.

Esse diagrama pode ser comparado à simulação do exercício de um círculo cromático13, os três conceitos do eixo superior: literatura menor, (DELEUZE; GUATTARI, 1977); partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005) e heterotopia (FOUCAULT, 2013) atuam como matizes análogas, dialogam entre si, no sentido de que são conceitos científicos de embasamento teórico conceitual, sustentam a argumentação lógica do trabalho e servem como ferramentas para se articularem com as noções exploradas. Já o eixo inferior: experimentação social, estética e política e lugar comum são noções que funcionam como matizes análogas entre si e estão em relação aos conceitos como elementos complementares, por exemplo: a noção de experimentação social se articula de forma complementar com o conceito de literatura menor; a noção de estética e política se complementa ao conceito de partilha do sensível, e a ideia de lugar comum se articula diretamente com o conceito de heterotopia. Todos esses três conceitos e três noções se articulam uns com os outros e serão explorados e explanados durante o desenvolvimento do texto.

Na percepção do olho humano, a soma de todas as cores é igual ao branco, a luz visível. Já no nosso diagrama, o título “a cidade como livro aberto” é a soma de todos os conceitos e noções, a luz visível que orienta a escrita, tanto a acadêmica como a urbana e a poética. Esta dissertação apresenta a articulação da minha experimentação enquanto

13 O círculo cromático é uma representação simplificada das cores percebidas pelo olho humano. É um instrumento

utilizado para orientar composições de ilustrações coloridas, um guia no qual pode-se rapidamente identificar elementos análogos, complementares e outras possíveis combinações harmônicas.

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escritor/calígrafo e o ofício do pesquisador acadêmico; assim, se encadeiam o artista e o intelectual em uma descrição narrativa acerca da caligrafia urbana na cidade contemporânea. Aqui, mais especificamente, em relação às experiências registradas nas ruas de Natal. Quero elucidar que a ideia de literatura menor é um conceito chave que constitui o eixo desta dissertação, a transversaliza de ponta a ponta. Sendo assim, estarei explorando-o durante o desenvolvimento dos três capítulos adiante.

O primeiro capítulo: em um primeiro momento, ensaio sobre a noção de caligrafia urbana, pensando a luz de outros tipos de caligrafia, como a caligrafia oriental, para assim elencar a prática da escrita no contexto citadino; em um segundo momento, articulo a primeira noção fundamental da literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977), a desterritorialização da língua e trago exemplos que ilustram isso; em um terceiro momento, articula-se a condição possível de comunicação na cidade.

No segundo capítulo, unimos a segunda noção fundamental da literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977) à ideia da escrita como uma passagem do individual ao imediato político, de modo que essa noção se articule com o conceito de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005); para então entendermos melhor a relação entre estética e política dessas práticas conhecendo melhor alguns de seus principais estilos.

No terceiro capítulo, introduzimos o conceito de heterotopia (FOUCAULT, 2013) para pensar os espaços em comum partilhados pela caligrafia urbana. Desse modo, articula-se com a terceira noção fundamental de uma literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977); tudo adquire um valor coletivo, a literatura torna-se um agenciamento coletivo de enunciação. Assim, trazendo para a discussão, narrativas de dois espaços diferentes na cidade de Natal, ruínas a céu aberto que se tornaram palco de inusitadas manifestações urbanas.

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2 CALIGRAFIA URBANA: dentro da rua e fora da língua

Dizem as paredes/3

Em Montevidéu, no bairro Braço Oriental:

Estamos aqui sentados, vendo como matam os nossos sonhos.

E, no cais na frente do porto de Buceo, em Montevidéu: Bagre velho: não se pode viver com medo a vida inteira. Em letras vermelhas, ao longo de um quarteirão inteiro da avenida Cólon, em Quito:

E se nos juntarmos para dar um chute nesta grande bolha cinzenta?

Eduardo Galeano

2.1 POR UMA NOÇÃO DE “CALIGRAFIA URBANA”

Escrever sobre a prática da caligrafia é, antes de tudo, instigar o exercício de uma investigação acerca do ato caligráfico. Nesse sentido, pode-se entender por caligrafia uma prática histórica que fundamenta as bases da criação do nosso alfabeto contemporâneo. A palavra caligrafia deriva de origem grega, kalli “beleza” e graphe “escrita”, pode ser traduzida ao pé da letra como arte da escrita bela, é entendida como uma arte visual atrelada a toda a construção e transformação da história da escrita das sociedades. Podemos pensar essa prática a partir de todo um interlúdio histórico pelo qual a arte da caligrafia atravessa, remetendo desde a caligrafia oriental, como a caligrafia árabe, chinesa e japonesa, a história da caligrafia ocidental greco-romana a latina, até uma reinvenção que presenciamos hoje, dentro das cidades, por meio do que aqui me refiro enquanto caligrafia urbana, a qual irei esclarecer sobre o que se trata durante o progresso do texto.

Portanto, a intenção desses escritos introdutórios sobre a caligrafia não é reconstruir a narrativa histórica da prática da caligrafia e da escrita através dos tempos, mas, sim, utilizar esse repertório como base para lançar mão de uma nova perspectiva acerca da caligrafia, ou seja, desejo trazer o ofício do calígrafo para o mundo contemporâneo, alinhado à vivência urbana que eu mesmo experimento enquanto autor de escritas caligráficas e também autor de uma pesquisa de dissertação de mestrado na área das ciências humanas e sociais, especificamente em Sociologia. Nesse cenário, ambas as práticas são retratadas no processo de escrita e na sua composição.

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Minha experimentação social, inserido nos contextos citadinos que envolvem a prática da arte urbana, levou-me a um rumo da pesquisa no qual comecei a perceber as manifestações urbanas popularmente conhecidas como graffiti e pixo14. Essas práticas configuram-se como faces de uma caligrafia alternativa aos moldes tradicionais em que somos ensinados, e por meio desse trajeto fui conduzido a pensar a superfície da cidade como um grimório15, um grande “livro aberto”, em que essas escritas se inscrevem e habitam os espaços, implicando desdobramentos, os quais alguns vamos examinar durante esta dissertação.

Dentro de um campo investigativo acerca da linguagem visual do graffiti e do pixo, proponho, como já mencionado, pensar a metáfora da cidade como um livro aberto, em outras palavras, significa pensar a paisagem visual da cidade enquanto um espaço onde se escrevem estórias. A partir de um sentido conotativo, a cidade passa a ser uma “obra literária” atravessada de palavras e imagens. Para tanto, este texto trabalha a partir da noção de literatura menor (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25) para conceber a caligrafia e a escrita dentro da cidade como expressão visual, e, assim, observarmos o seu procedimento. Segundo os autores, a “literatura menor não é de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior16” (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25). Ao transpormos, pois, essa premissa para o contexto em que esta pesquisa é realizada, supondo que na cidade circula preponderantemente a língua maior – como a publicidade, os sinais de tráfego dentre outras linguagens estabelecidas e oficiais – sabemos que, todavia, coabitam outras linguagens que se constituem línguas menores, as quais seriam expressões próprias de minorias, por exemplo: imaginemos um ônibus enquanto transporte público, cuja numeração específica indica seu trajeto dentro da cidade, isso é a língua maior; no entanto, nesse mesmo ônibus, quantos dos seus assentos não estão rasurados por alguns dos passageiros que habitam esse espaço durante o percurso em que o ônibus circula na cidade?

14 Pixação e graffiti se diferenciam exclusivamente no Brasil. Pixo, tinta na parede ou pixação, ato de pixar, pode ser

classificada como uma espécie de graffiti com o uso de menos recursos, monocromático esteticamente atribuído a letras. Já o graffiti, no Brasil, pode ser classificado pela necessidade maior de recursos, letras e imagens multicromáticas. Em outros continentes como América do Norte e Europa, o graffiti etimologicamente compreende os dois estilos estéticos (GITAHY, 1999, p. 19).

15 A palavra grimório vem do francês antigo grammaire, da mesma raiz que a palavra “gramática”. Isso se deve ao fato de,

na metade final da Idade Média, as gramáticas de latim serem guardadas em escolas e universidades controladas pela Igreja – e, para maioria iletrada, livros não eclesiásticos eram suspeitos de conter magia. Gramática denota um livro de instruções básicas, contendo a descrição de combinações de símbolos e como combiná-los, de modo a criar frases lógicas. Um grimório, por sua vez, seria a descrição de combinação de símbolos mágicos e de como combiná-los de forma adequada, dentro de um sistema de magia.

16 Por “língua maior”, refiro-me a uma linguagem oficial que habita o espaço urbano como, por exemplo, outdoors,

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Rabiscos que variam desde vulgos, mensagens diretas ou subliminares, frases chulas a declarações de amor. Isso é o que uma minoria faz em uma língua maior.

Esses termos – maior e menor – não se referem precisamente a grandezas de tamanho; mas sim a posicionamentos sociais divergentes como, por exemplo, aquilo que é “legítimo” ou “marginal”, “correto” ou “incorreto”. Essa linguagem menor pode ser compreendida, nesses termos, como a estética que nos referimos do graffiti e do pixo, por meio de uma reinvenção da caligrafia e do alfabeto oficial.

Divergências e semelhanças à parte, o graffiti e o pixo são ambos produzidos por uma mesma figura, o escritor/calígrafo urbano, e é esse o agente responsável pela interlocução do conceito de literatura menor, esse personagem representa a “minoria que faz em uma língua maior” e é nesse contexto que a literatura se personifica como escrita e como caligrafia, abrindo o caminho epistemológico no qual iremos percorrer. Durante esta dissertação, levarei em conta os contrastes existentes entre estas práticas – graffiti e o pixo – embora para fins metodológicos, supõe-se ambas como manifestações de uma mesma prática: a caligrafia urbana.

Para tal finalidade, considero estar pensando as noções históricas da caligrafia trazendo luz à perspectiva inicial na qual se concebe a cidade como uma “obra literária” escrita na superfície de seus poros, por calígrafos e escritores urbanos, orientados pelas expressões visuais conhecidas como graffiti e pixo.

O graffiti, de origem etimológica grafito, significa “marcar uma superfície com o grafite” e é uma expressão visual que existe desde os tempos paleolíticos nas paredes das cavernas até os muros da antiga cidade de Pompeia. Essa mesma expressão sofre uma reinvenção, de forma mais intensiva e extensa, em meados dos anos 1970, como uma linguagem visual atribuída ao gênero do hip-hop17, que se expandiu por vários continentes do planeta e continua se transformando até os dias atuais.

O pixo, ou pixação, é oriundo do mesmo gênero do graffiti, existindo igualmente no tempo histórico enquanto prática caligráfica. É no Brasil que se diferenciam os dois gêneros da expressão. Uma razão as distingue brevemente: o pixo de natureza monocromática é fruto de uma relação com a matéria, tendo em vista o preço elevado do material de graffiti, não era possível, para maioria dos escritores, munir-se de sprays e muitas cores; assim, mesmo na precariedade, investiu-se fortemente no pixo como uma forma mais acessível que o

17 Hip-Hop: gênero musical e estilo de vida iniciado em 1970, pelas comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas da

cidade de Nova Iorque. Reinventada e popularizada, no Brasil, durante a década de 1980, e difundida enquanto gênero musical, moda e estilo de vida. O hip-hop consiste em quatro elementos: rap (letra), bboy (dança), dj (música), graffiti (visual).

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graffiti de intervir e deixar seu nome na cidade. Na teoria, o pixo poderia ser equivalente ao que se denomina o termo “tag”18 como um gênero estilístico de graffiti rápido e simplificado. Em sua obra Pixação: a arte em cima do muro, o autor Luiz Nascimento comenta sobre esse momento histórico:

Antes do movimento Pixo (sic), em outros países não havia uma palavra para designar pichador, a palavra graffiti definia tanto o que conhecemos como grafite quanto o que conhecemos por pichação [sic]. E ambas as artes são consideradas crimes, não havendo diferenciação entre elas do ponto de vista das autoridades. Apenas em meados de 2012 e 2013, começa a surgir o termo taggers para definir pichador em congressos acadêmicos e eventos de arte, mesmo assim para as autoridades, creio que nada mudou. (NASCIMENTO, 2015, p. 28).

Em outros continentes, o graffiti assume ambos os gêneros; porém, especificamente no Brasil, onde se deu a invenção do termo pixar, este se popularizou entre os seus praticantes com o uso da letra “x” de forma intencional, ao substituir a palavra como se escreve na regra gramatical pichação. Nesse sentido, o pixo, ou a prática da pixação, já desafia as autoridades desde a concepção de sua raiz etimológica.

Considerando essa nuance, pode-se dizer que ambas as práticas – graffiti e pixo – são bifurcações de um mesmo caminho; trabalharei com a hipótese de que ambas atuam como uma caligrafia alternativa; um dispositivo “composto por linhas de natureza diferente... dentre elas linhas de força” (DELEUZE, 1996, p. 1), como dissertarei mais adiante, no ensejo de compreensão da escrita que constrói uma literatura menor.

E no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua própria conta, como o objeto o sujeito e a linguagem, etc., mas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada – está sujeita a variações de direção – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha – está submetida a derivações (DELEUZE, 1996, p. 1).

A caligrafia é um sistema de caracteres, formado por linhas, um dispositivo de produção de sentido. Na caligrafia, as linhas estão agregadas à formação de enunciados, estes, uma vez produzidos pelos escritores, são dispostos a regimes de enunciação, sobre isso Deleuze (1996, p. 1) atenta:

Porque os enunciados, por sua vez, remetem para as linhas de enunciação sobre as quais se distribuem posições diferenciais dos seus elementos. E as curvas são por elas próprias enunciadas, é por que as enunciações são curvas que distribuem variáveis, e, assim, uma ciência, num dado momento, ou um gênero literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, são definidos precisamente pelos

18 Tag nos termos do graffiti significa assinatura, o ato de assinar sendo uma abreviação do nome do escritor escrito em

uma caligrafia particular, marca que identifica alguém e não pode ser facilmente copiada, similar ao que compreendemos como rubrica em termos formais.

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regimes de enunciação a que dão origem. Não são nem sujeitos nem objetos, mas regimes que é necessário definir pelo visível e pelo enunciável, com suas derivações, as suas transformações, as suas mutações. E em cada dispositivo as linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas, científicas, políticas, etc.

Expandir a noção sobre caligrafia pela revisitação de certos conceitos básicos é, sem dúvida, uma maneira de ampliarmos a compreensão de um fenômeno social urbano contemporâneo, qual seja, a proliferação de caligrafia (do graffiti e do pixo), minimamente consideradas estranhas, que habitam e florescem na epiderme citadina em uma situação de confronto contínuo contra o cinza do concreto.

Para esse exercício, trazemos a autora Aida Ramezá Hanania (1997), que escreve acerca do universo da caligrafia árabe a partir da visão de um artista contemporâneo, Hassan Massoudy19, para quem, o oficio da escrita coloca “com e contra” a caligrafia, pois, mesmo

que fundado nas bases do tradicionalismo milenar da arte caligráfica árabe, o artista se insurge contra a forma disciplinada da tradição. Trazendo a letra e a palavra de forma, às vezes, incompreensível pelo emaranhado de traços, o calígrafo encontra-se dividido: de um lado imerso nas raízes do oriente e de outro modelado pelo modernismo do ocidente.

A autora investiga a arte da caligrafia árabe, tendo dois aspectos como ponto de partida: a caligrafia enquanto escrita, a informação contida nas palavras; e, enquanto arte, a estética resultante de seu ordenamento. A partir desse ponto de vista, podemos perceber alguns paralelos entre a arte da caligrafia árabe e a caligrafia – do graffiti e do pixo – urbana. Ainda sobre a caligrafia árabe a autora comenta que:

Habitualmente, a informação pode ser ofuscada pelos seus efeitos estéticos, mas, ainda assim, a Caligrafia é uma linguagem. A primeira percepção, ao olhar uma caligrafia é, sem dúvida, a do aspecto plástico; depois, ocorre a do sentido. (HANANIA, 1997, p.75).

19 Hassan Massoudy nasceu em 1944, em Najef, no sul do Iraque. Ele cresceu em meio ao calor escaldante do deserto, em

uma sociedade iraquiana tradicional caracterizada por fortes crenças religiosas, um alto senso de solidariedade e uma vontade de encontros festivos. Como jovem, nessa cidade onde todas as imagens eram proibidas, ele cumpriu sua paixão pela arte fazendo desenhos e caligrafias ao investir toda sua energia para obter papel e pigmentos. Em 1961, partiu para Bagdá e começou a trabalhar como aprendiz de vários calígrafos. Ele visitou exposições de arte moderna que o fascinaram e, a partir de então, começou a sonhar em estudar arte. Os acontecimentos políticos que se desenrolaram e a ditadura resultante o impediram de fazê-lo. Ele finalmente deixou o Iraque para a França em 1969, libertado do regime de opressão, mas com o coração partido. Chegou à “Ecole des Beaux-Arts”, de Paris, onde trabalhou pela primeira vez na pintura figurativa. Mas ele não parou completamente de caligrafia; para pagar seus estudos, estava fazendo manchetes em caligrafia para revistas árabes. Ao longo dos anos, a caligrafia entrou progressivamente na sua pintura figurativa e, eventualmente, tomou seu lugar. Em 1972, criou o show “Arabesque” com o ator Guy Jacquet, juntou-se alguns anos depois pelo músico Fawzy Al Aiedy. O Arabesque foi uma performance pública combinando música e poesia, juntamente com caligrafias sendo realizadas e projetadas em uma tela grande. Eles fizeram muitas performances em toda a França e Europa durante um período de treze anos. Ao longo dos anos, trouxe mais espontaneidade em seu gesto e uma maneira mais instantânea para ele se expressar. Essa experiência marcou uma mudança definitiva no trabalho de Hassan. Fonte: http://www.massoudy.net/

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Estaria então o escritor urbano contemporâneo em relação de semelhança com o calígrafo árabe? Em certa medida, sim. Assim como a caligrafia árabe, a caligrafia urbana partilha de uma dimensão plástica e de uma dimensão de sentido, ambos habitam a escrita em sua gestualidade. Para o calígrafo urbano, por exemplo, as letras operam uma plasticidade que dialoga com a arquitetura da cidade, e, nela, também reside um sentido semântico que está no registro de seu nome por meio do desejo de disseminar sua marca na cidade. Já para o calígrafo árabe, nas palavras de Massoudy, durante a obra de Hanania (1997, p. 76), “a caligrafia não é só a fixação de um texto, mas também uma composição abstrata que exprime uma concepção de mundo”, tal frase pode se aplicar à caligrafia do escritor urbano, seus traços, nem sempre compreendidos, fazem parte de uma composição singular de um modo de experimentar a cidade partilhada entre os seus pares calígrafos urbanos.

Do ponto de vista do calígrafo urbano, essas duas dimensões, plástica e sentido, descrevem: a primeira, sobre a estética, a agilidade e o esmero que a escrita é executada, ainda que o corpo da letra e da palavra seja por muitas vezes ilegível para um espectador não iniciado, ela conserva em seu fundamento uma base estrutural, é necessário construir sua base para reinventá-la, trata-se de uma pré-estrutura, fluxo e forma de modo que as letras se encaixem formando uma bela composição visual para os olhos do artista; na segunda dimensão, o sentido recorre à criação da referência da situação, uma relação com o espaço e o tempo, o momento vivido da escrita em que se marca não só a superfície da cidade, mas um passo de um percurso. Vou esmiuçar melhor essas duas dimensões no segundo capítulo, no qual tratarei das questões estéticas e políticas da escrita.

Do ponto de vista ocidental, a mensagem da arte da caligrafia oriental árabe possui conteúdo puramente visual, enquanto que a caligrafia urbana é encarada como poluição visual pelo segmento mais conservador da sociedade. No entanto, para os calígrafos e iniciados, em ambos os casos – árabe e urbano – a caligrafia está assentada na realidade, construída pelo signo abstrato a partir de uma relação de pertencimento e de emoção do calígrafo e sua composição.

Adbelbir Khatibi (1995), autor do livro O esplendor da caligrafia islâmica, faz um estudo profundo e detalhado da arte da caligrafia árabe, situando-a historicamente, bem como temas e estilos, ao longo de sua obra. Em uma de suas passagens, menciona a mensagem da caligrafia artística como símbolo da civilização, em que diz:

Caligrafia é a arte das linhas gráficas; reestrutura-se em cima de uma visualização da linguagem e sua topografia. Nesse sentido, a caligrafia na linguagem arábica é construída em um simples princípio espacial: o alfabeto arábico é escrito pela

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interação de uma linha base horizontal e as linhas verticais de suas consoantes. É lido da direita para esquerda, com a adição de vogais, diacríticas e rotações as quais são posicionadas várias vezes acima e abaixo da linha base. A originalidade de sua forma escrita, que em alguns aspectos não tem igual, é criada pela arquitetura e pelo ritmo das letras: aqui reconhecemos a força do “arabesco” como uma forma plástica. (KHATIBI, 1995, p. 6)20

Assim como na caligrafia árabe, a caligrafia urbana é regida por princípios espaciais, e balanceada pela sua relação com a arquitetura da cidade com o ritmo das letras, com a diferença que sua leitura é (geralmente, ou seja, nem sempre) baseada no padrão ocidental da esquerda para direita. Para ilustrar esse ponto de vista, vamos analisar uma sequência de quatro registros da paisagem urbana: transitando letras que caminham no interstício da paisagem urbana, entre graffiti e pixo.

Figura 4 – Avenida Roberto Freire, instalações abandonadas, “LPE, GTS, RBO, LKS e outros”. Capim Macio/fevereiro, 2017.

Na imagem acima, pode-se observar a cena de uma paisagem urbana, onde um edifício abandonado tornou-se palco de diferentes manifestações visuais urbanas. Dentre elas, darei ênfase ao jogo de letras no canto superior direito da arquitetura, um exemplo de caligrafia urbana, uma sequência de pixos em forma de arabescos “LPE, GTS, RBO, LKS” de leitura difícil para não iniciados. Percebe-se que existe uma base horizontal que atravessa toda a sequência de letras, as quais possuem um parâmetro vertical seguindo um padrão, possuem também um ritmo e cadência no espaçamento de uma letra para outra, além de marcação de dois pontos que separam cada palavra, atuando como uma diagramação visual do letreiro. Ainda, esse trabalho foi realizado com rolo de espuma e látex, percebido pela textura que a tinta deixou na parede; além disso, posso supor que o uso de um cabo extensor

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foi feito para alcançar tamanha altura sem o uso de uma escada. Por meio dessa imagem, podemos perceber que a caligrafia urbana não é do domínio apenas de um ato de transgressão e de apropriação do espaço; ela se dedica a expressar uma linguagem visual própria, que possui ritmos e intensidades singulares.

A caligrafia urbana se inspira na rua e nos ritmos da arquitetura, por exemplo: a verticalidade dos edifícios construídos como estacas retangulares mirando do chão para o céu compõe uma forma recorrente da cidade. Com ênfase nos obstáculos verticais da cidade, temos a próxima imagem de um graffiti pintado sob o viaduto do Baldo (Natal/RN). Essa segunda imagem se assemelha à arquitetura retangular dos prédios da cidade formando a composição de uma palavra:

Figura 5 – Pilastra embaixo do viaduto do Baldo, “INFLUENCIA”. Baldo/fevereiro, 2017.

Na teoria, essa imagem se distancia do pixo pelo uso de mais recursos como três cores: azul, amarelo e preto; contudo, representa um graffiti que, na prática, foi feito ilegalmente, assim como na pixação; essa é uma das razões por que se torna tão difícil delimitar uma fronteira objetiva entre o graffiti e o pixo. De qualquer modo, se tomarmos as duas últimas análises de imagem, a Figura 1 e a Figura 2, podemos observar símbolos caligráficos que se referem às letras: na imagem acima está escrito “influencia”, que sinaliza a assinatura do autor, num estilo de letras retangulares que se assemelham a edifícios citadinos de formas retangulares e ritmos verticais. Devido ao escorrido no fundo da obra, percebemos que o trabalho foi quase todo feito com tinta látex e rolo de espuma, em virtude do preço exorbitante de tintas spray no Brasil; sendo assim, os artistas desenvolvem técnicas alternativas para baratear o custo do material de execução.

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Figura 6 – Avenida Abel Cabral, lagoa de captação, “RASTA, BONES”. Nova Parnamirim/março, 2017.

Na terceira imagem, apresentamos o registro de imagem que se aproxima mais ainda da estética do graffiti e que ainda mantém a base da caligrafia urbana, baseada em letras, dois nomes em base preta e contorno branco, nos quais observamos vários elementos da linguagem visual como volume, profundidade e luz, em uma escrita solta “Rasta; Bones”, sinalizando a assinatura de dois autores. A composição das duas palavras é produzida em um painel em que toda a parede foi pintada, o que demanda tempo, isso a configura como uma peça de graffiti produzida com mais esmero diferente da veloz e fugaz pixação. Essa produção foi realizada no entorno de uma lagoa de captação próxima à avenida Abel Cabral, no bairro de Nova Parnamirim, o espaço é público ligado à Prefeitura do município Parnamirim-RN, ainda assim, é produzido sem autorização formal e de forma independente. Como não existe fiscalização, ele se tornou um parque de diversões para diferentes escritores se expressarem e exercitarem seus trabalhos, podendo criar suas composições com calma e elaboração, sem quase nenhum risco de serem abordados pela polícia.

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Figura 7 – Margens da BR 101, instalações abandonadas, “LKS, VLZ, NYAH”. Neópolis/março, 201721.

A quarta imagem faz referência a uma caligrafia que representa o pixo, assinado na esquina de um terreno baldio próximo à BR 101 na cidade de Natal/RN. Essa pixação certamente foi ato de alto risco, por se situar em uma avenida bastante movimentada; disso surge a questão da velocidade – uma elaboração sintetizada que resulta na maior rapidez de execução da caligrafia. O escritor nesse momento não pode se dar ao luxo de fazer com calma, a adrenalina bate no momento e o tempo de execução é uma questão crucial entre o ser pego ou não. Na formulação estética do letreiro, apreendemos o escrito “LKS, VLZ”, que sinaliza um autor, e “NYAH”, sinalizando outro autor, em letras verticalizadas as quais se assemelham bastante a um estilo caligráfico que se tornou famoso na cidade de São Paulo, mais conhecido como “Tag Reto”. Tal estilo consiste em uma relação verticalizada entre o pixo e a arquitetura dos prédios da cidade, de forma que com um risco as letras venham ocupar visualmente toda a parede de cima a baixo.

Lassala (2012), pesquisador que investigou o movimento “Pixo” na cidade de São Paulo, comenta em sua tese o porquê do uso do nome “pixação e não pichação”. A seguir algumas considerações suas acerca desse estilo:

O tag reto foi difundido pelos pixadores de São Paulo e é mais do que uma assinatura, já se tornou um estilo caligráfico. É usado para padronizar o logotipo dos pixadores e surgiu como elemento diferenciador de grupos que buscavam desenhos próprios para as letras. Esse estilo é caracterizado por letras retas, alongadas e pontiagudas pintadas com tinta spray ou rolo de tinta; letras que procuram ocupar o maior espaço possível no suporte. (LASSALA, 2012, p. 63).

21 Adendo, o registro da fotografia foi feito em 2017; contudo, ao observar com cuidado à direita da letra “S”, nota-se o

Referências

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