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LITERATURA MENOR: fora do território oficial da língua

2 CALIGRAFIA URBANA: dentro da rua e fora da língua

2.2 LITERATURA MENOR: fora do território oficial da língua

Nesse momento da dissertação, trago à pertinência e importância de um dos conceitos fundamentais relacionados à literatura menor, com a qual já assimilamos anteriormente a caligrafia urbana: conceito de desterritorialização da língua. Nesse sentido,segundo os autores Deleuze e Guattari (1977, p. 25), toda língua é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização. A título de exemplo, tem-se o caso de Kafka junto aos judeus na cidade de Praga, em que a divisão entre o tcheco e o alemão impunha- se na impossibilidade de escrever em outra língua que não fosse o alemão, marcando “o alemão de Praga como uma língua desterritorializada, própria a estranhos usos menores (cf., em outro contexto atual, o que os negros podem fazer com o inglês)” (DELEUZE, GUATARRI, 1977, p. 26). De alguma maneira, o que acontece com o tcheco e o alemão em Praga é similar ao que acontece com a língua catalã e o espanhol na península Ibérica, ou com o inglês na Jamaica. Pode-se entender a escrita, ainda que elencada em níveis estruturais de organização, como uma prática menor. Sob esse ponto, saliento a discussão incitada pelos autores “o que é uma literatura marginal, popular ou proletária?” (DELEUZE, GUATARRI, 1977, p. 29).

Trabalharei durante esta dissertação com a hipótese de que a caligrafia urbana é uma manifestação que pode ser compreendida como expressão de uma literatura marginal e popular, sob a acepção da literatura como uma forma de expressão artística.

Uma parcela expressiva da sociedade condena esse tipo de prática vendo-a inclusive como um “crime”, em nenhuma hipótese considerando-a uma prática artística, mesmo porque toda a referência classificatória do que seja arte ou não arte passa pelos critérios da arte canônica, como diria Takeuti22. Essa prática estaria mais próxima de uma produção artística periférica, como Takeuti (2010) reitera em seu artigo, Refazendo a margem pela arte e política, é preciso esclarecer o sentido do termo periferia.

O termo periferia passou a ser apropriado pelos próprios moradores, principalmente os jovens – instigados pelos ativistas culturais que geralmente atuam em bairros

onde fixam sua moradia-, na medida em que nele encontram a expressão de seu sentimento de pertencimento a uma “comunidade” a qual não se reduz mais aos seus limites geográficos (“lá onde residem”) e passa a ser vivenciada como uma vasta rede de pessoas ou coletivos que possuem experiências comuns na adversidade, mas também na solidariedade, nas bordas do sistema capitalista. (TAKEUTI, 2010, p.15)

Visto que a importância da experimentação social dos escritores enquanto intermediadores da literatura na arquitetura citadina não corresponde a um caráter classificatório de subjugar “o que é arte” do que “não é arte”, pois como reiteramos neste trabalho “a essência da arte não reside nas propriedades que apresenta, mas em seu processo de geração” (SHUSTERMAN, R. 1998, p. 25). Assim sendo, entre teoria e prática é difícil delinear claramente o que é arte. As questões sobre arte na rua remetem a Shusterman (1998), em uma reflexão sobre a oposição entre arte popular e arte erudita em conteúdo estético, a partir do argumento de Morris Weitz, o qual teria proposto, em 1955, uma solução radical para as fracassadas definições essencialistas da arte, quando indicava:

A arte é um conceito intrinsecamente aberto e mutável, um campo que se orgulha de sua originalidade, novidade inovação. Mesmo que pudéssemos descobrir um conjunto de condições determinantes que englobassem todas as obras de arte, isso não garantiria que a arte futura se conformaria a esses limites. Na verdade, temos todas razões para supor o contrário. Em suma, o “o caráter extremamente expansivo e instável da arte” torna sua definição “logicamente impossível”. (SHUSTERMAN, 1998, p. 25).

Ao julgar sob esse ponto de vista, a caligrafia urbana enquanto arte abandona a hegemonia das galerias e passa a habitar a cidade enquanto um movimento vivo de ocupação das ruas transformadas em galerias abertas. Contudo, julgar esse tipo de manifestação enquanto status de arte, ou não, arte popular23, não é cabível, esse ensejo não é o foco da pesquisa.

Nesse momento, a percepção acerca da experimentação social, a qual se submetem os escritores, se esta qualifica-se enquanto arte ou não, é uma questão aberta, como um parêntese que contribui à compreensão da metáfora da cidade enquanto um livro aberto. Retomando o carro-chefe da discussão deste capítulo, temos, portanto, a noção de desterritorialização da língua, que estrutura o conceito de literatura menor sob o qual fundamenta-se a pesquisa acerca da caligrafia urbana. A literatura estaria, portanto, apta a

23 Sobre essa questão, remetemos ao artigo Refazendo a margem pela arte e política (TAKEUTI, 2010) no qual há uma

discussão sobre a (i)legitimidade social da “arte popular” (em contraposição à “arte erudita”) e defesa da “estética popular”, sob o esteio do pensamento crítico do Filósofo americano Richard Shusterman (1998), o qual mostra que “na raiz da condenação da primeira [arte popular] está, portanto, a representação de que só é legítima arte aquilo que se produz no campo das artes maiores associadas inegavelmente a privilégios de classe. Nesse sentido, o termo “estética” [só seria] adequado exclusivamente às artes maiores, como se a noção de estética popular fosse uma contradição de termos” (SHUSTERMAN, 1998, p.103 apud TAKEUTI, 2010, p. 16).

desencadear um efeito comunicativo dentro de práticas menores? Um potencial inventivo de criação? Um desempenho político?

Inscrito em minha perspectiva enquanto escritor, a caligrafia urbana se manifesta enquanto palavra escrita, que toma forma no território da cidade é a mesma que se torna linha de fuga24 para fora do território físico, se desterritorializa – enquanto graffiti e pixo – e abraça um universo semântico dos escritores, uma zona de intensidade na qual esses “códigos urbanos” transpõem a característica de um simples rabisco na parede e se codificam enquanto expressões de presenças nítidas de escritores menores. Entendo essa desterritorialização como um movimento que se apropria da língua maior para dar novos significados à linguagem, tal como é utilizada nos escritos que aqui trato, afinal:

Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é delas? Ou então nem mesmo conhecem mais a delas, ou ainda não conhecem, e conhecem mal a língua maior da qual são obrigadas a servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus filhos. Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a língua e fazê-la seguir por uma linha revolucionária sóbria? (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 30).

Afim de nos familiarizarmos do conceito de desterritorialização, sugiro pensar no âmbito da escrita literária. Antes de estreitar a relação entre a escrita literária e a caligrafia urbana, é interessante trazermos como exemplo três obras literárias do gênero “distopia” – que se trata de uma antítese à utopia como lugar ideal – que auxiliam a percepção sobre o tema.

Por distopia entendemos o seguinte: uma palavra utilizada pela primeira vez por John Stuart Mill em 1868, na câmara dos comuns ingleses, conceitua-se como um lugar ruim em oposição à ideia de utopia enquanto uma descrição imaginativa de uma sociedade ideal, baseada em justiça e bem-estar coletivo. refiro-me a questão da distopia, como um gênero literário que retrata regimes sociais velados a uma suposta assepsia de bem-estar social, mas que se trata, na verdade, de uma advertência, ou sátira, a regimes de governo opressivos e totalitários; expressos mediante uma narrativa literária. A este fim, a distopia seria uma utopia que não deu certo, uma sociedade ideal que fracassou. Portanto, as obras literatas e sua relação com a língua escrita auxiliam a compreensão da noção de desterritorialização articulada pelo conceito de literatura menor.

24 Remetemos à noção de desterritorialização aplicada à escrita menor, vale dizer que a linha de fuga é a ponte que opera

uma ruptura entre a grafia e a arquitetura da cidade: “a linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16).

Para trazer, ainda, uma maior clareza ao conceito de literatura menor, sugiro pensar autores literatos, como Anthony Burgess (2004), que escreveu em 1962 o livro “A laranja mecânica”, o qual retrata uma distopia social, marcada por uma narrativa violenta sobre juventude e delinquência juvenil na cidade de Londres; o que interessa nessa obra é a linguagem que o autor escreve; Burgess busca nas gírias ciganas e em expressões eslavas uma base para criação de um vocabulário que ele intitulou como “Nadsat”; esse vocabulário não é um idioma, mas sim um conjunto de gírias que formam uma espécie de comunicação semicerrada. O Nadsat pode ser entendido como uma mistura entre a língua russa desterritorializada e atravessada por uma linguagem coloquial da classe operária britânica da época em que foi elaborada; é, pois, nesse sentido, que uma língua menor se faz dentro da obra literária de Burgess.

Outro bom exemplo de uma língua menor é a obra literária “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (2014), publicada pela primeira vez em 1932; a obra retrata também uma distopia social que se passa em Londres 632 D.F. (“depois de Ford” no livro); na escrita literária o autor retrata um mundo de uma sociedade civilizada e extremamente científica, dividida em castas, na qual as emoções são suprimidas por uma substância chamada “soma” distribuída pelo Estado. O autor construiu a obra em cima de todo um repertório linguístico variado e de muitas referências, nomes de personalidades históricas como Marx; Freud; Ford; Malthus; Bonaparte; Shakespeare; e Darwin são citados no livro como personagens que morreram antes dos eventos que precedem a obra; as castas sociais são baseadas no alfabeto grego – Alfa; Beta; Gama; Delta; e Ípsilon; podemos tirar como lição reflexiva o manejo da obra literária que desterritorializa a língua oficial – Marx de filósofo político a profeta, e Freud de psicanalista a guru social, por exemplo – e reinventa-se através de uma linguagem sensível e menor como obra literária que reverbera até hoje em outros eixos da sociedade. Em 1979, no Brasil, em plena ditadura militar, o artista Zé Ramalho compôs e musicou a letra de uma canção intitulada “Admirável gado novo”, que faz referência a obra de Huxley, e retrata, por meio da metáfora e da licença poética, a ideia dos seres humanos como alienados, que não pensam nem refletem sobre os fatos. Mais recentemente a cantora baiana Pitty, em 2003, também fez uma releitura da obra intitulando “Admirável chip novo” para escrever uma narrativa de uma canção de protesto contra um sistema excessivamente mecanizado. Esse breve paralelo conduz a pensar em alguns efeitos repercussivos da literatura menor de Huxley nos seus leitores.

O terceiro exemplo literato aqui trazido é a obra “1984”, do escritor George Orwell (2009), escrita e publicado pela primeira vez em 1949. O enredo se passa geograficamente

nas ilhas da Grã-Bretanha, em um continente chamado Oceania, que é o conjunto de outros continentes que foram conquistados após uma guerra nuclear; um mundo onde há manipulação histórica e pública dos registros; e uma vigilância onipresente se faz presente. Dentro da obra, é possível captar uma linguagem desterritorializada, chamada “Novafala”, ou “Novilíngua”; no entanto, no contexto da trama literária essa linguagem representa um idioma estabelecido pelo governo de um regime político totalitário, uma forma de reinventar as palavras de modo que sejam reduzidas ao oposto de seu significado, por meio de um mantra emitido pela máxima “Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força”. Na literatura, as utopias geralmente são compreendidas como o caminho ideal – ainda que inviável – a ser seguido pela sociedade; já no gênero distopia a narrativa parte da ideia de que a utopia já foi alcançada, porém, os problemas contemporâneos são mascarados sutilmente, na maioria das vezes por meio de uma falsa moral. Resumindo as três obras, ambas retratam experiências singulares de realidades distintas, mas que partilham em comum um certo coeficiente de desterritorialização da língua, reiterando os termos de Deleuze e Guatarri (1977).

Retomando o nosso fio condutor teórico, “vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande ou estabelecida” (DELEUZE, GUATARRI, 1977, p. 28). Dada essa breve reflexão acerca da literatura, aponta-se a noção de desterritorialização como a entendemos, em relação à língua, uma trama de linhas de fuga, pelas quais os caminhos da língua se dissipam, no pixo ou no graffiti, as linhas das letras orientadas por um ordenamento ao mesmo tempo em que escapam do padrão, reinventam-se, na criação das versões menores de si mesmas.

Para ilustrar essa noção de linha de fuga, utilizarei a metáfora da “bicicleta” como uma analogia em paralelo. Entendo que na cidade, por exemplo, o tráfego é um sistema que coordena e organiza a lógica do trânsito, rodovias, veículos, pedestres, semáforos; o automóvel desempenha um papel destacado dentro da mobilidade urbana visto que as próprias ruas são organizadas a favor de suas regras de locomoção; a bicicleta por sua vez, é um veículo menor de mobilidade ágil, enquanto os automóveis se engarrafam em horários de pico do trânsito, a bicicleta escapa com a possibilidade de criar novas rotas e linhas de fugas dentro do sistema de tráfego, se desterritorializa do espaço designado ao automóvel por excelência, nem pedestre nem motor, a bicicleta por sua vez é capaz de traçar movimentos as margens da vias até retomar sua rota.

A bicicleta desempenha um papel menor em relação ao tráfego de automóveis nas rodovias como sistema maior de mobilidade urbana, por exemplo. Assim como a bicicleta enquanto veículo que desterritorializa o tráfego, a letra riscada – enquanto pixo e graffiti – se desterritorializa da gramática oficial, ela traça em suas linhas espaços e tempos que escapam da regra e fogem dos padrões, ainda que mantenham uma base que a possa identificar como caractere, como veremos a seguir ao exemplo de um “alfabeto menor”.

Figura 11 – de A à Z, alfabeto caligrafia urbana por Everson Menor. janeiro, 2016.

O letreiro acima é um alfabeto versado em uma estética da caligrafia urbana, elaborado pelo escritor Everson Menor, seu vulgo “menor” por ventura se sintoniza com a ideia de literatura menor, casualmente, “menor” também é o apelido que se dá, dentro de uma linguagem coloquial, para jovens abaixo da maioridade dos 18 (dezoito) anos de idade com um sentido conotativo de marginalidade.

A ilustração de uma gramática visual serve para recordar que a caligrafia urbana não começa e termina na rua, existe um trabalho árduo e estudo contínuo para aperfeiçoar esse ofício. A criação de uma gramática visual própria vem por meio do estudo de outras referências, como as de outros escritores, imagens que circulam na cidade, em revistas ou ainda na internet, transformam-se em matéria visual e funcionam como um banco de dados. Para efeitos ilustrativos, o uso da ordem alfabética facilita nossa compreensão cognitiva, todavia, usados como palavras soltas na superfície da cidade não é garantida sua

legibilidade. Os alfabetos de graffiti e pixo estão sujeitos a constantes reinvenções, podendo, portanto, servir sempre de referência, mas nunca como regra.

O léxico do graffiti excede, em muito, o tempo e o espaço de comunicação na parede. As imagens do graffiti nascem muito antes de alcançarem visibilidade na rua. Existe toda uma biografia das imagens que é desconhecida de muitos e não se anuncia ao olhar de quem observa repentinamente os graffitis na cidade. A linguagem tem de ser assimilada, deve ser convenientemente dominada, antes de poder ser exibida. O graffiti tem um tempo de aprendizagem que é marcado por um trabalho doméstico insistente, na melhoria do tag, no ensaio e correção dos erros de composição visual. (CAMPOS, 2010, p. 262).

Ricardo Campos (2010), nesse trecho de sua obra, ressalta a importância do blackbook25 como um utensílio importante para o escritor, sem dúvidas, é através dessa ferramenta que se desenvolve e aprimora o que aqui nos referimos como literatura menor, é o seu berço de criação. O livro negro é, em outras palavras, o que chamamos anteriormente de grimório, e é, por excelência, o espaço de onde a literatura menor primeiramente se desterritorializa, para alcançar em outro momento a arquitetura da urbe. A caligrafia urbana passa a ser uma experiência de desterritorialização, tanto para quem a produz, da ideia para o papel, do papel para a parede, como para aqueles que a observam como um movimento que desloca a paisagem e cria rupturas na arquitetura.

Figura 12 – Blackbooks – cadernos de esboço/desenho.

25 Do inglês blackbook (livro negro), ou sketchbook (caderno de rascunhos), funciona como um livro pessoal similar a um

diário, em que se desenham/escrevem esboços, projetos e ideias. Nesse sentido, o blackbook possui a funcionalidade de um acervo pessoal no qual se elaboram criações, experimentações e ensaios.

No registro acima trago a imagem de alguns de meus blackbooks pessoais, com desenhos meus, registros pessoais, esboços e projetos, mas também alguns de outros escritores que conheci no longo de minha trajetória e que me deixaram de lembrança registros de suas tag’s assinaturas assim como eu fiz o mesmo em seus respectivos blackbooks, muitas vezes como uma troca que registra um intervalo de tempo vivido e uma conexão realizada.

Em todo caso, os blackbooks são ferramentas indispensáveis para a maioria dos escritores. Eles funcionam não apenas como um diário de bordo ou um caderno de campo que serve a um antropólogo, mas também servem tanto como uma lista de exercício como um passatempo. Neles se inscrevem o espaço para a escrita e o desenho como uma capacidade inventiva, por onde o escritor solta a mão no traço e explora sua personalidade e forma própria de escrever, eles são o ponto de partida para o escritor, são referências essenciais que inspiram o ofício de escrever nas ruas. Assim como no ensaio do roteiro de uma peça, a rua é o palco de um trabalho elaborado nos bastidores do blackbook. Ele é para a literatura menor o espaço inicial de onde a caligrafia se desterritorializa e então alcança um novo território dentro da cidade.

Figura 13 – Caligrafia Urbana “Menor e FB”. Nova Parnamirim/janeiro, 2016.

Na figura acima, por exemplo, a literatura menor se expressa no escrito caligráfico de dois escritores “Menor e FB”, podemos classificar enquanto um pixo esteticamente elaborado e desenvolvido, com perceptíveis noções de linha, espaçamento e simetria; por exemplo, a arquitetura em tijolos auxilia como uma régua na execução da composição; é possível perceber que não se trata de uma simples rasura, feita sem sentido algum, apenas no intuito de poluir o muro. A escrita incita o desejo e este, por sua vez, instiga o escritor a

prosseguir desenvolvendo a sua caligrafia. É bem isso que fornece as características que pontuamos antes: a da experimentação social na cidade, que se entremeia de atitudes de resistência a um poder que insiste em codificar os espaços urbanos. Inclusive, é por esta e específica razão que optamos escrever “pixo”, em respeito à atribuição que é denominada pelos próprios escritores praticantes, e não “pichação”, tal como a correção ortográfica coage a seguir a regra gramatical; nesse aspecto, a literatura menor reconduz a uma linha de fuga – no sentido em que escapa uma grafia legível ou ortográfica e reinventa-se em uma versão subjetiva e inventiva – da linguagem oficial.

Atento que a caligrafia urbana ainda que baseada no abecedário formal ocidental, distancia-se de sua terra natal e opera sua desterritorialização por meio da forma em uma reinvenção da composição caligráfica. A letra escapa, foge da régua e do padrão estabelecido, ela se destrói enquanto caractere gramatical e ressuscita enquanto um desenho, grafia e movimento, este, por sua vez, opera em um retorno a uma nova base, reconstituindo- se um padrão ainda que alternativo “via de regra, com efeito, a língua compensa sua desterritorialização por uma reterritorialização do sentido. Deixando de ser órgão de um sentido, torna-se instrumento do Sentido.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 31).

A operação de desterritorialização que opera uma via de reterritorialização pode ser pensada a partir das noções anteriores observadas na arte da caligrafia, ao entender que o veículo de sentido se refere ao intervalo vivido no momento da escrita, a esse dinamismo e relação com espaço que marca não apenas o suporte citadino, mas também a vivência dos calígrafos, permitindo que construam suas trajetórias, seus gêneros e estilos próprios os quais constituem os modos em que elaboram suas letras em seus próprios termos.