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DO INDIVIDUAL AS RELAÇÕES ESTÉTICAS E POLÍTICAS

3 DAS RELAÇÕES QUE SE COMPARTEM NA ESCRITA

3.1 DO INDIVIDUAL AS RELAÇÕES ESTÉTICAS E POLÍTICAS

Até o momento, esboçamos a ideia do que viria a ser uma caligrafia urbana, e como ela compõe a ideia de pensar a cidade como um livro aberto, a partir dessa noção, pensa-se essa prática como o escopo de manifestações expressas por uma literatura menor que se inscreve na pele da cidade. Vamos então convidar ao leitor a pensar as atribuições estéticas e políticas dessa manifestação urbana, e em que medida elas formam um espaço em comum acessível para iniciados sob um ponto de vista do escritor. Seguindo a lógica de que esse conhecimento traga referências que permitam compreender essa prática a partir do ponto de vista de leitores não iniciados.

Tendo como norte teórico da dissertação o conceito de literatura menor; e na medida que o mesmo transversaliza o texto, trago neste capítulo uma exploração mais ampla do segundo aspecto que o caracteriza este conceito alicerce da pesquisa:

A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político. Nas “grandes” literaturas, ao contrário, o caso individual (familiar, conjugal, etc.) tende a ir ao encontro de outros casos não menos individuais, servindo o meio social como ambiente e fundo. A literatura menor é totalmente diferente; seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado a política. O caso individual torna se então mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele. (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 26).

Essa característica se fundamenta no princípio de que a literatura menor implica “uma ramificação do individual ao político imediato” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25). Tratamos, portanto, ao longo desse capítulo, de ilustrar tal premissa, a partir de exemplos da caligrafia urbana, em seu potencial de criação e de expressão no espaço urbano, trazendo implicações e amostras das formas e conteúdos resultantes desse processo.

A cidade também é uma arena de disputas políticas e simbólicas concretas, a caligrafia urbana nesse sentido desafia as regras e a arquitetura da cidade, por um desejo de manifestar a vida e a existência, e essas práticas conflitam na cidade com outras mídias; tais como as pinturas publicitárias e cartazes de shows, apesar de esse ser um aspecto que não abordaremos no estudo. Apoiamo-nos, neles, para pensar a construção da relação estética e política dessas escrituras.

Por meio de uma linguagem bastante hermética de signos artesanais e grafias impenetráveis, de uma intensidade notória, não tem como não perceber a presença do graffiti e do pixo na cidade – independentemente de julgado como crime ou arte – como ato imediato político na medida em que o ato de pintar na rua desperta diferentes reações, que vão do prestígio ao repúdio.

Na figura abaixo, ilustro, a partir de minha experimentação, um exemplo que faz jus a afirmação de que a caligrafia urbana desafia a arquitetura na cidade. No registro observamos a paisagem de um estabelecimento abandonado que se tornou um galpão vazio apenas com restos de materiais de construções e nada habitado. Para mim enquanto escritor aquele se tornou um espaço frutífero para experimentar o risco do fazer, sua faixada branca e limpa se tornou minha tela, que coloca em evidência minha assinatura em grande visibilidade e altura. É nesse sentido que a caligrafia urbana desafia a arquitetura, ela reinventa espaços, colunas, fachadas, janelas aparentemente obsoletas, criando uma camada de sentido inscrita pela tinta que comunica um intervalo de tempo vivido para seu autor, mas também uma possibilidade em aberto para um leitor. Não mais apenas arquitetura, a superfície se torna a página de uma história escrita em um livro aberto que chamamos cidade, é de tal modo minha assinatura, um recorte de espaço e tempo de um algo maior em comum compartilhado pelos escritores como dissertarei a seguir.

Figura 26 – Galpão abandonado letreiro “Pazciência 122”, Nova Parnamirim, Rua Aníbal Brandão. /janeiro, 2016.

Essa reflexão se articula no desenvolvimento da dissertação, com uma noção que nos é cara para pensar a dimensão estética e política da caligrafia urbana, a noção cunhada por

Rancière (2005) traduzida como a partilha do sensível. Esse conceito me parece pertinente para pensar as manifestações artísticas que acontecem na cidade, no segmento do graffiti e do pixo, podemos utilizá-la no intuito de apreender e compreender que enquanto os escritores partilham suas excentricidades34 em algum momento eles se encaixam em um espaço em comum, que compartilham e vivenciam, afetando e sendo afetados por outrem na medida em que se desdobram na prática da caligrafia urbana. De acordo com Rancière:

Denomino a partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele se definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à sua participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (RANCIÈRE, 2005, p. 15).

Por exemplo, a partir do nosso fio condutor teórico, ao tomar a cidade como um espaço heterogêneo onde uma polifonia de vozes se expressa, podemos nos referir à caligrafia urbana com uma expressão na qual os seus escritores, ainda que um grupo não coeso e não homogêneo, compõem recortes em comum, eles experimentam a cidade em um âmbito de intensidade onde uns e outros tomam parte em uma partilha. Cada escritor é autor de uma parte exclusiva, e ‘a cidade como um livro aberto’ é esse comum partilhado.

Essa experiência pode ser compreendida como um jogo político, a partir de Rancière, pensar ‘a cidade como um livro aberto’ torna-se um espaço onde as escritas se encaixam na superfície urbana formando um fragmentado mosaico visual, traçado por expressões de escritores que partilham a colaboração da escrita de uma “obra literária” maior e mais ampla, a cidade. Seria, portanto, na ideia de partilha do sensível, o que é o “comum” aos escritores, as vias urbanas como um espaço onde se exerce a atividade da caligrafia.

A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define as competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum etc. Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não tem nada a ver com a “estetização das massas”, de que falava Benjamin. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

34 Excentricidade no sentido literal é um adjetivo que significa aquele que se afasta do centro. Excêntrico é um

indivíduo fora do habitual, do que é comum, aquele que tem seus próprios modos, com características fora dos padrões sociais vigentes. Nesse sentido, estamos pensando excentricidades como características atribuídas a pessoas que se encontram na margem da sociedade, fora do centro.

Escrever na cidade seria nesse sentido uma forma de existir, de vivenciar a cidade, e experimentar os seus possíveis, isto é, a caligrafia urbana, portanto, um veículo que faz da escrita visível. De acordo com Rancière, o próprio filósofo Platão destaca “dois grandes modelos, duas grandes formas de existência e de efetividade sensível da palavra: o teatro e a escrita” (RANCIÈRE, 2005, p.17). Segundo esse raciocínio a superfície dos signos “pintados”, a escrita, pode ser considerada como “forma de partilha do sensível estruturando a maneira pela qual as artes podem ser percebidas como artes e como formas de inscrição de sentido da comunidade” (RANCIÈRE, 2005, p.18). Embora Platão não seja um pensador fundamental para essa dissertação, como o é para o autor, Rancière reitera o potencial de uma “politicidade sensível” atribuída a uma partilha estética de circulação da letra, “essas políticas seguem sua lógica própria e repropõem seus serviços em épocas e contextos muito diferentes” (RANCIÈRE, 2005, p. 20).

Pensando em termos no nosso contexto atual e específico da cidade contemporânea, podemos conceber a caligrafia urbana como uma manifestação que dota de sentido uma certa comunidade tipográfica, que partilha o comum através da circulação da letra. A letra fruto de uma escrita não oficial que escapa do território linguagem gramatical, se desterritorializa, como afirma a primeira característica da literatura menor – explicitada no primeiro capítulo – e por sua vez transcorre, do desejo individual numa implicação de um imediato político, como afirma a segunda característica do conceito de literatura menor, que será o cerne de nossa exploração deste segundo capítulo.

Por esse ângulo, associamos à segunda noção fundamental implicada pela literatura menor – do individual ao imediato político – com o conceito de partilha do sensível, destacando novamente as duas questões centrais: a partilha do sensível é um conjunto em comum, mas também a separação do que cada um desse conjunto faz individualmente. É nesse momento então que podemos pensar as relações que se estabelecem dentro da escrita à pensar a figura de uma comunidade tipográfica de – calígrafos, leitores e escritores- que se encontram atrelados pela circulação das letras na cidade. Pensar as relações entre estética e política nesses termos é atribuir uma análise de suas formas de visibilidade e sua disposição, como se organizam entre si e em relação a sociedade, apesar de não ser possível pensar de modo definitivo, Ranciére de algum modo já alertava sobre essa questão.

A partir daí pode-se pensar as intervenções políticas dos artistas, desde as formas literárias românticas do deciframento da sociedade até os modos contemporâneos e de instalação, passando pela poética simbolista do sonho ou a supressão dadaísta ou construtivista da arte. A partir daí podem ser colocadas em questão diversas histórias imaginárias da “modernidade” artística e dos vãos debates sobre a

autonomia da arte ou sua submissão política. As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhe podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base. (RANCIÈRE, 2005, p. 20).

Sabemos até o momento que a relação entre estética e política que pensamos está ligada ao lugar de visibilidade dessas práticas, no sentido do lugar que ocupam, do tempo e do espaço em que a atividade se exerce, no que diz respeito ao comum aos termos de Rancière. Sobre o lugar que ocupam de tempo e espaço, reitero aspectos da criação caligráfica retratados por Miyashiro (2009) sobre a relação da experiência do momento presente, o dinamismo e a relação com o espaço, a dinâmica da escrita nas ruas e sua politicidade sensível ligada à vivência do escritor que experimenta zonas de intensidade indescritíveis sentidas por aqueles que expõem seus corpos aos riscos e riscam a superfície da cidade.

Acerca da visibilidade podemos dizer que tais práticas ainda que resultantes de pulsões individuais reverberam em desdobramentos políticos que desafiam as formas legais do regime de visibilidade citadino, diferentemente de mídias que obedecem a regras burocráticas (não que todas as mídias o façam), isto é, os escritores disseminam seus nomes e letras na cidade a partir de seus próprios julgamentos. Mais adiante refletiremos sobre alguns desses critérios.

Existe uma obra complementar de Rancière que embasa ainda mais essa argumentação, em Políticas da escrita o autor afirma que o conceito de escrita é político porque está sujeito a um desdobramento e uma disjunção essencial:

Escrever é o ato que, aparentemente não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que se realiza: uma relação da mão que traça as linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com sua própria alma. [...] o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é o instrumento do poder ou a via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, alegorizar essa constituição. (RANCIÉRE, 1995, p. 7).

De fato, quando falava em escrita, Rancière não tratava em sua obra de uma análise da caligrafia urbana, muito provavelmente esse não era um objeto de estudo recorrente, mas de fato a sua obra escrita tem um efeito de desdobramento que nos permite hoje pensar a pertinência do trabalho para entender essa manifestação presente nas cidades contemporâneas. A relação entre o escritor e a mão que traça as linhas e signos com o corpo

e os prolonga para a superfície urbana, e desde então implica alcançar outros possíveis, desdobramentos que afetam outrem no cotidiano. Ainda que o sentido da escrita seja um impulso egoísta de ver o próprio nome estampado nas alturas; ou ainda, uma cobiça por ser o escritor a ter mais nomes espalhados na cidade; vingar de alguém que atropelou uma assinatura sua; produzir um grande painel coletivo; expressar um sentimento de revolta, indignação, desabafo; recitar uma poesia. O fato é que na união ou no conflito os escritores partilham um fazer político estético que modifica a cidade em uma mistura de imagens, letras e tintas.

A caligrafia urbana está nesse entrelaçamento da letra, da imagem e da tinta. No intuito de respaldar essa afirmação, apresento ao leitor alguns recursos para compreender os principais estilos e acepções estéticas das práticas de graffiti e pixo. Alerto ainda que obviamente nem tudo dentre esse grande escopo da caligrafia urbana pode ser classificado e encaixado dentro de uma taxonomia. Os estilos classificam, portanto, formatos categóricos que utilizamos para compreender essas práticas e trazer mais objetividade na nossa compreensão.

É possível perceber que graffiti e pixo partilham dois lados de uma mesma moeda, mas ainda assim, podemos notar que ainda existem certas fronteiras, ainda que borradas, que distinguem as práticas. Não se trata apenas da acepção social que do julgamento que outrem faz, sobre ser ou não ser arte, a acepção estética de ambas diferem em alguns aspectos, no pixo, por exemplo, existe um uso frequente da monocromia, e das formas de linhas fortes e marcantes; no graffiti por sua vez, há a predominância do uso de um leque maior de cores.