• Nenhum resultado encontrado

4 RUÍNAS CITADINAS

4.3 O ELEFANTE BRANCO SE TORNA COLORIDO

O nosso segundo episódio acerca das ruínas citadinas, tem como palco uma obra arquitetônica do famoso arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. O monumento que ficou conhecido popularmente como “Presépio de Natal”, foi idealizado por membros da Academia Potiguar de Letras44, e foi inaugurado no ano de 2006, nele constava um painel artístico assinado pelo artista plástico potiguar Dorian Gray Caldas45.O projeto custou cerca de R$ 1,7 milhão aos cofres públicos46, mas depois de construído, não chegou a ser efetivamente utilizável, e logo caiu no esquecimento.

Desde sua inauguração o espaço ficou subutilizado, no sentido institucional de governabilidade, foi nesses termos que o chamei de “Elefante Branco”, expressão utilizada para se referir a obras públicas sem utilidade. Jogado às traças, o “Presépio de Natal” permaneceu inerte, acumulando lixo e resíduos, sua arquitetura foi construída com a intenção de ser um ponto de cultura e lazer que atendesse a população, por exemplo, o local possui galerias com espaço para seis lojas, uma lanchonete e uma área administrativa; dois banheiros públicos, estacionamento e jardim; uma praça de cerca de 3.200 metros quadrados.

Após sua inauguração o lugar não teve utilização específica, a obra do artista Dorian Gray, foi retirada para preservação em 2012, ao menos o que restou da composição; em 2013 foi anunciado que o espaço se tornaria um “Centro Cultural Banco do Brasil”, o projeto não chegou a ser efetivado; em 2016, o Governo do Estado, lançou um projeto para reforma do lugar, para ser transformado em uma secretaria combinada com um espaço de prática de esportes, no entanto até meados de 2018 (ano em que essa pesquisa foi concluída) o projeto ainda não saiu do papel e o “Presépio de Natal” continua em estado de descaso.

Todavia, o nosso objetivo nesse estudo, não se trata de fazer uma crítica (mesmo assim, não deixamos de denunciar a situação) detalhada a gestão de políticas públicas do Estado. Na verdade, o foco deste capítulo é mostrar como nesse intervalo de tempo, o espaço vem sendo reinventado, se transformando pelo viés da prática daqueles que o vivenciam, mesmo em condições adversas. Sob à luz de Foucault, podemos conceber o espaço do

44 Um grupo de intelectuais, tendo à frente Luís da Câmara Cascudo, fundou, em 1936, a Academia Norte-rio-grandense

de Letras, com sede em Natal. Disponível em: <www.anrl.com.br>. Acesso em: 03 mar. 2018.

45 Dorian Gray Caldas (1930-2017) foi um artista plástico e ensaísta brasileiro, atuou como assessor da secretaria estadual

da cultura do Rio Grande do Norte (1967-1968) e da Fundação José Augusto (1974) e foi diretor do Teatro Alberto Maranhão (1967-1968). Fonte: Wikipédia.

46 Fonte: Disponível em: <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/12/obras-de-oscar-niemeyer-sofrem-

“Presépio” como um contraespaço; considerando o contexto que “estamos em uma época onde o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos” (FOUCAULT, 1984 p. 413), é nesse jogo de posicionamentos que, a heterotopia se caracteriza por entre essa relação do espaço que é abandonado, com o contraespaço da reinveinção, assim ela é capaz de justapor espaços que normalmente são incompatíveis.

A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos. (FOUCAULT, 1984, p. 411).

Seria então pertinente dizer que nessa época da simultaneidade que vivemos; o abandono do espaço pelas autoridades legais, acontece concomitante, a apropriação por outrem, no caso os escritores urbanos, dos suportes abandonados. Na figura abaixo, podemos visualizar um registro do ano de 2013, no qual se iniciavam algumas pinturas no espaço abandonado da arquitetura de Niemeyer.

Figura 61– “Presépio de Natal” processo de pintura. Av. Prudente de Moraes /abril, 2013.

Aos poucos a obra arquitetônica de Niemeyer foi sendo tomada pelas tintas e escritas, sem nenhum crivo de curadoria ou autorização, nesse período os frequentadores daquele espaço se resumiam aos escritores, moradores em situação de rua, skatistas e patinadores, além de alguns alunos de autoescola que utilizavam o espaço para aulas de direção. O lugar foi ganhando novos nomes, no lugar de “Presépio de Natal”, alguns chamavam de

“Presepada47 de Natal”, outros se referiam ao espaço como “Barcelona48”, e outros se

referem ao lugar como “DED” sigla que faz referência a um ginásio de esportes que fica bem próximo. De toda maneira, as práticas destinadas ao espaço iam se expandindo, e logo as escritas citadinas iam tomando conta de toda arquitetura do lugar. Na próxima figura abaixo, temos o registro das galerias sendo pintadas simultaneamente, em um encontro de escritores (similar a sopa de letras, mas sem o foco nas letras), pintando em equipes de afinidade em cada galeria, criando composições inventivas e inusitadas, com a intenção de

explorar seus próprios repertórios gráficos.

Figura 62 – Processos coletivos de pintura nas galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /maio, 2013.

Uma questão pertinente de ser levantada durante esses processos de pintura coletivos, é que embora ainda que para os autores da obra, a individualidade de seus traços e estilos sejam importantes para si próprios, a arte urbana lhes traz a possibilidade de compor em conjunto, no sentido de que muitas vezes não se sabe ao certo onde acaba a obra de um autor e começa a de outro. É nessa perspectiva que articulamos a terceira característica da literatura menor, o agenciamento coletivo de enunciação, na acepção de que não existem sujeitos claramente definidos dentro da caligrafia urbana, o que existe são os enunciados distintos, e produzidos por diferentes idiossincrasias.

Não há sujeito, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação – e a literatura exprime esses agenciamentos, nas condições onde eles não são dados para fora, e

47 Presepada faz referência a uma situação extravagante ou bizarra, um espetáculo ridículo, como o caso do abandono das

instalações de alto custo do dinheiro público. É sinônimo de escândalo, fanfarronice, confusão, algazarra, palhaçada e bagunça.

48 Barcelona é uma cidade na Espanha, conhecida no final da década de 90 como local ideal para os skatistas por causa das

ruas quase sempre planas, calçadas largas, e escadas de granito. Disponível em: <http://www.brechando.com/2016/09/por- que-tambem-chamam-o-presepio-de-natal-de-barcelona/>. Acesso em: 03 mar. 2018.

onde eles existem apenas como potências diabólicas futuras ou como forças revolucionárias a serem construídas. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28).

Depois desse episódio em 2013, o presépio de Natal voltou a ser pintado de branco, quando o Governo do Rio Grande do Norte, aliado à Prefeitura do Natal, anunciou que iria reformar o espaço. No entanto, apenas as paredes foram pintadas, como forma de suprimir as expressões citadinas consideradas desviantes, e nenhuma reforma pontual foi realizada, fazendo com que as pinturas voltassem a aparecer na superfície arquitetônica abandonada. Podemos pensar de forma metafórica, que assim como a natureza, ao exemplo das ervas daninhas que crescem incessantes mesmo quando cortados, as escritas citadinas, ressurgem na cidade, não importam quantas vezes sejam coibidas ou pintadas.

As imagens se entrecruzam com as palavras, de modo que se dissolvem os autores e restam apenas os enunciados. “A linguagem deixa de ser representativa para tender a seus extremos ou seus limites” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 36). Nessa acepção é que, durante a pesquisa não nos detivemos em tentar desvendar ou representar uma significação rígida dessas práticas de escrita citadina, ao invés, nos concentramos em investigar as potências inventivas do ato de escrever, apresentando diferentes possibilidades, dentro de um mesmo contexto urbano.

Nas próximas figuras, trazemos os registros “renovados” das galerias do espaço, durante o ano de 2017. Mesmo uma vez pintadas de branco, as paredes foram novamente pintadas com painéis, dizeres, personagens, e estilos distintos. As paisagens das partes internas das galerias estão sobrepostas de marcas de vários autores, graffitis e pixos, que se sobrepõem de forma desordenada, é nesse sentido que, reitero, não existir mais sujeito, somente enunciados.

Figura 63 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Figura 64 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Figura 66 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017.

Figura 67 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Nas imagens anteriores é possível observar diferentes, manifestações, alguns desses traços estão mais passíveis de serem reconhecidos, mesmo que imersos em composições caóticas, contudo, como foi dito, não nos interessa nesse momento, assinalar que lançou mão de cada traço. De modo que as composições que se inscrevem na cidade, a priori são feitas por autores individuais, mas, à medida em que elas vão se encaixando tecem um arranjo coletivo maior, que por sua vez tem a capacidade de gerar um novo enunciado, que por si só, não pertence a um sujeito individual, e sim a cidade como um “obra escrita”.

Mas de qualquer maneira que essa relação seja concebida, não acreditamos que o enunciado possa ser reportado a um sujeito, desdobrado ou não, clivado ou não. Voltemos ao problema da produção de novos enunciados; ao problema da literatura dita menor, já que esta, como a vimos, está na situação exemplar de produzir enunciados novos. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 121).

Pelo viés da escrita, cada escritor como indivíduo, profere um discurso visual que se perpetua na rua, ao ser “a enunciação literária mais individual é um caso particular de enunciação coletiva” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 122). Nesses termos, a riqueza da heterotopia das ruínas se origina nos interstícios, quer dizer, nos pequenos espaços entre as partes de um todo ou entre duas coisas contíguas, entre o que é visto na escrita e o que não se pode mensurar, há uma ruptura entre o escritor e o escrito capaz de articular um ruído que poderá ser absorvido por um novo espectador, apreendendo um novo significado. Acerca da característica que compreende o agenciamento coletivo de enunciação os autores advertem. E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado, tal como faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação em um processo que não dá lugar a um sujeito qualquer determinável, mas que permite tanto mais marcar a natureza e a função dos enunciados, já que estes só existem como engrenagens desse agenciamento (não como efeitos nem produtos). (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 122).

Mais adiante, reforçam.

[…]um agenciamento tem pontas de desterritorialização; ou, o que dá no mesmo, que ele tem sempre uma linha de fuga, pela qual ele mesmo foge, e faz passar suas enunciações ou suas expressões que se desarticulam, não menos que seus conteúdos que se deformam ou se metamorfoseiam. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 125).

Por essa razão, não faz sentido nos limitar aos autores, mas sim reparar quais enunciados são produzidos, e como eles se articulam e desarticulam, para produzir sentido, ocupando visualmente o espaço, mas também afetando outrem; seja uma comunidade semicerrada de escritores, seus “pares”, ou ainda seus “dispares”, um público amplo e

incerto, que pode em algum momento ser instigado pelo enunciado produzido pela caligrafia urbana.

Ao exemplo da obra de Kafka, é inútil perguntar “quem é K?”, pois que, “K não é um sujeito, mas uma função geral que se prolifera sobre ela mesma, e que não cessa de se segmentarizar, e de correr em todos os segmentos” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.122). De modo comparativo, durante a pesquisa, eu me coloco enquanto autor de várias composições escritas, no entanto, o que interessa, para o estudo em si, sobre “Pazciência”, não é a pergunta “quem é?”, mas sim “o que está inferindo?”, uma vez que o sujeito não tem tanta importância quanto o enunciado escrito, na medida em que a escrita é capaz de desvelar diferentes reações.

Essa acepção não tem a intenção de ignorar a autoria do escritor urbano, pelo contrário, ele é o personagem que conduz a trama da escrita citadina, mas o faz em coautoria com outros, que atravessam semelhantes vivências na cidade, e se desfazem na escrita, para fazer seu nome na cidade, partilham experiências sensíveis, transferem do individual ao imediato ações com potência de reverberar, política e esteticamente, na vida dentro do contexto urbano.

Ainda sobre a literatura menor, os autores defendem que “é sempre nas condições coletivas, mas de minoria, nas condições de literatura e de política ‘menores’, mesmo, que cada um de nós tenha que descobrir em si mesmo sua minoria íntima seu deserto íntimo (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 125). Talvez a razão de ter trazido para análise as ruínas tenha sido justamente por acreditar que esses espaços heterotópicos sejam verdadeiros oásis, para os escritores, na descoberta de seus próprios desertos íntimos no âmbito da escrita e da literatura menor.

Então, ao ponto que articulamos o agenciamento coletivo de enunciação com o conceito de heterotopia, é possível considerar a importância do espaço para o estudo da prática escrita na superfície da cidade. É através dessa relação de entrecruzamento entre escrita e experiência que se evidencia a riqueza da narrativa em aliança ao exercício intelectual que está proposto. Assim, pensar a cidade não como um conglomerado de estruturas cinzentas, mas como um espaço onde vivemos, afinal como reitera Foucault, em análise.

Não vivemos em um espaço neutro, plano. Nós não vivemos, morremos ou amamos no retângulo de uma folha de papel. Nós vivemos, morremos e amamos num espaço enquadrado, recortado, matizado, com zonas claras e escuras, diferenças de níveis, degraus de escadas, cheias, corcovas, regiões duras e outras friáveis, penetráveis, porosas. Há regiões de passagem: ruas, trens, metrô; regiões do transitório: cafés, cinemas, praias, hotéis e as regiões fechadas do repouso e do lar. Ora, entre todos

esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purifica-los. São como que contraespaços. (FOUCAULT, 2013 p. 19).

Como último registro desta etapa, elaborei uma obra registrada dentro de uma narrativa visual que corrobora com a ideia central do texto “a cidade como um livro aberto”. Assim, com a intenção de reforçar os argumentos através da sensibilidade da poesia em aliança ao recurso visual da fotografia do processo do painel, realizado no espaço heterotopia situada nas paragens da arquitetura de Niemeyer.

No primeiro passo, o rascunho da peça, traços sobrepostos e posicionamento tudo com apenas uma cor. No segundo passo, as cores, contrastes, volumes e luzes que dão maior dimensão a peça. No terceiro passo, o detalhamento da composição, efeitos e pormenores. No quarto e último passo, a peça finalizada, em toda sua elaboração. Essa ilustração final foi realizada no sentido de reforçar a metáfora visual da cidade como um livro aberto. Portanto, essa obra convida a pensar a linguagem da caligrafia urbana como um modo de habitar a cidade. Através da ilustração pontua-se para a importância de se ampliar a percepção sobre a cidade, afinal não vivemos em uma folha em branco, nem sequer em um bloco cinza de concreto. Por onde quer que se caminhe na cidade é possível observar traços e presenças distintas, que revelam em alguma medida a presença das pessoas que escrevem e se manifestação, com ou sem autorização, ilustrando suas existências no seio da cidade. O que torna a pesquisa ainda mais instigante é pensar a relação entre escrever e viver, desse modo inserido ao contexto urbano, permitindo a qualquer um interessado experimentar a condição de leitor e/ou escritor da grande galeria a céu aberto, o livro de narrativas que aqui chamamos de cidade.

Figura 69 – A cidade como um livro aberto “esboço”, Av. Prudente de Moraes. /março, 2018.

Figura 71 A cidade como um livro aberto, processo "detalhamento", Av. Prudente de Moraes / março de 2018