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CAPÍTULO 2 REVISÃO DA LITERATURA

2.5 A relação tecnologia-sociedade no processo de construção do e-gov

2.5.1 Determinismo tecnológico e mudanças sociais

As tecnologias de informação e comunicação tornaram-se elementos críticos e onipresentes nas organizações contemporâneas, nos seus processos operacionais, de tomada de decisão e de inovação (DOHERTY et al., 2003). Sua adoção pode produzir impactos sócio- culturais, comportamentais e estruturais significativos na organização (CLEGG et al., 1997; DOHERTY e KING, 2001; ORLIKOWSKI, 2000) e no seu relacionamento com seus stakeholders (DOHERTY et al., 2006). Para Lévy (1998), a revolução das tecnologias de informação e comunicação representa uma dimensão de mutação antropológica de grande amplitude.

Doherty et al. (2006) destacam a existência de duas perspectivas predominantes na análise da relação da tecnologia com mudanças em organizações, indivíduos e sociedade: uma que considera a tecnologia como agente causal principal ou único das mudanças; outra, como uma oportunidade para mudanças. Para Doherty et al. (2006) e Orlikowski (1992), a literatura de sistemas de informação corrente ainda é polarizada na primeira perspectiva, de determinismo tecnológico, base para várias correntes teóricas. Contrária a esta, a visão de que a tecnologia é uma oportunidade para a mudança reflete uma perspectiva sociológica e construtivista. Orlikowski (2000) propõe que se concebam ambas como uma dualidade fundamental, ou seja, ao mesmo tempo em que a tecnologia é modelada por agentes humanos e sociais, ela também influencia as ações e os comportamentos dos que a utilizam.

Na perspectiva do determinismo tecnológico, a tecnologia não sofre mudanças pela ação de atores sociais; ela é vista como uma força independente, autônoma e fora do controle do indivíduo. Os princípios associados ao determinismo tecnológico, levados ao extremo, consideram-na o determinante mais significante da natureza da sociedade, ou uma força dominante que inibe a própria liberdade humana. A visão do papel da tecnologia nessa perspectiva estabelece uma ligação simples (unidirecional) e causal entre esta de um lado, e sociedade e organizações de outro, sendo a primeira autônoma e com lógica e leis

próprias, independentes das forças sociais, e as outras duas um recipiente passivo às mudanças tecnológicas (MACKENZIE e WAJCMAN, 1985). A tecnologia emerge e é aplicada em função da sua superioridade na resolução dos problemas organizacionais, devendo a estrutura organizacional adaptar-se a ela (PINSONNEAULT e KRAEMER, 1993).

Dessa forma, considera-se a tecnologia o efeito causal direto na estrutura da organização, nos seus processos e no seu desempenho, alterando substancialmente os mecanismos e a natureza da coordenação e do controle organizacional. Abordagens baseadas no determinismo tecnológico, em geral, reduzem os impactos da tecnologia ao nível da racionalidade econômica, fortemente focada na análise da eficiência e de custos da tecnologia. Embora a racionalidade econômica seja relevante em determinados contextos de avaliação de impactos, ela não explora a racionalidade subjetiva que sustenta as ações não-econômicas (AVGEROU, 2002).

Há vários exemplos de adoção da perspectiva do determinismo tecnológico em estudos de impacto de sistemas tecnológicos de larga escala, por exemplo: sistemas corporativos conhecidos como ERP (Enterprise Resource Planning), soluções de comércio eletrônico (e-commerce) e soluções de e-gov (e-government). Os sistemas tecnológicos de alta escala têm o potencial de causar alto impacto nas organizações e na sociedade, em função de sua abrangência e relevância para as organizações. A literatura mostra também que se implementam esses sistemas em velocidade acelerada, como resposta à globalização cultural e da economia, à universalização da Internet, à consolidação da sociedade da informação e à virtualidade dos relacionamentos sociais (CASTELLS, 2001; BRAA e ROLLAND, 2000; MARKUS, 2000).

Dentre os sistemas tecnológicos de larga escala, os sistemas corporativos ERP têm sido o objeto de estudo mais comum em relação ao impacto da tecnologia em contextos sociais. Sistemas corporativos ERP são aqueles compostos por aplicações e módulos que integram dados e fluxos de dados em todas as áreas de uma organização, ou principalmente nas áreas críticas, impondo processos e procedimentos padronizados na entrada, no uso e na disseminação de dados. Para Olikowski e Iacomo (2001), sistemas corporativos ERP são artefatos tecnológicos que podem ser tratados a partir de diferentes abordagens. Embora hoje já haja muitos estudos que rejeitam a visão do determinismo tecnológico na análise

dos impactos causados pela adoção de sistemas corporativos ERP nas organizações (ORLIKOWSKI, 1992; PINSONNEAULT e KRAEMER, 1993; POZZEBON, 2001), adotando abordagens provenientes das teorias da estruturação e teoria social construtivista, os casos mais freqüentes na literatura ainda seguem a abordagem baseada na perspectiva do determinismo tecnológico (CADILI e WHITLEY, 2005; GRANT et al., 2006).

Os estudos na área reforçam o mito de que sistemas ERP impactam, de forma significativamente positiva na natureza, na estrutura da gestão organizacional e nos atores sociais, com redução de custos e aumento de lucros em função da sua alta capacidade de integração (BRADY et al., 2001; DAVENPORT, 1998; LAUGHLIN, 1999). Assim, descrevem-se os benefícios e mudanças organizacionais resultantes da implantação desses sistemas de forma independente do contexto social da organização e do comportamento dos atores sociais (gerentes, usuários, analistas de sistemas, implementadores etc.).

O viés determinista desses estudos é criticado por Mackenzie e Wajcman (1985); Orlikowski (2000) e Pozzebon (2001) também criticam esse viés ao apontarem o equívoco de conceder aos artefatos tecnológicos autonomia e ausência de atribuição social, capazes de impor limites entre tecnologia e sociedade.

Como sistema tecnológico de larga escala e de alto impacto social, o e-gov surge após o fenômeno do comércio eletrônico e da proliferação dos ambientes virtuais baseados em portais de serviços e de comércio na Internet (BARBOSA et al., 2007; DINIZ, 2000). Consideram-se os programas de governo eletrônico e as soluções eletrônicas para serviços públicos ofertados por meio de canais digitais elementos importantes no processo de inovação institucional e tecnológica dentro do ambiente da administração pública (FOUNTAIN, 2001). No entanto, esse processo não é um fenômeno isolado dentro das fronteiras das organizações públicas; ele se excede, impactando diretamente na vida dos cidadãos que utilizam os artefatos tecnológicos resultantes do processo de inovação (CURTIN et al., 2003; HOLMES, 2002; HEEKS, 2002; HUANG et al., 2005; PAVLICHEV e GARSON, 2004; O’LOONEY, 2002; OLIVER e SANDERS, 2004).

Taylor (1998) demonstra que o impacto das aplicações de governo eletrônico, quando analisados pelos governos, em geral, baseiam-se na perspectiva do determinismo tecnológico, seguindo a racionalidade econômica focada, sobretudo, em eficiência econômica e custos da tecnologia. Nesse caso, a perspectiva determinística leva ao

desenvolvimento de soluções voltadas, preponderantemente, para a melhoria do desempenho interno do governo, para o aumento de sua eficiência ou para a melhoria da prestação de serviços públicos, não se considerando a ação dos usuários dessas soluções.

No entanto, as condições sócio-econômicas e culturais específicas associadas a grupos de usuários das soluções tecnológicas oferecidas pelos programas de governo eletrônico afetam a percepção e a codificação dos artefatos tecnológicos e, conseqüentemente, a construção da realidade do governo eletrônico. A visão determinística leva a se ignorar a natureza e a força dos múltiplos processos sociais incorporados na relação tecnologia- sociedade. Giddens (1984) e Orlikowski (1992) sugerem que, em função do propósito público e do papel social dos órgãos governamentais, a interpretação dos artefatos tecnológicos da administração pública requer uma abordagem mais ampla do que a sustentada pela perspectiva determinística.

Nos dois exemplos de sistemas de larga escala mencionados, observa-se que o determinismo tecnológico trata a relação tecnologia-organização e tecnologia-sociedade de maneira extrema (racionalidade econômica utilitarista) e unidirecional (tecnologia como causa da mudança). Grant et al.(2006), Orlikowski (1992), Pozzebon e Pinsonneault (2001) e Pozzebon (2000) sugerem que se deve evitar essa perspectiva, já que os atores sociais também modelam a tecnologia.

Estudos teóricos e empíricos, como os realizados por Barley (1986), Orlikowski (2000) e Doherty et al. (2006), apresentam evidências de que soluções tecnológicas idênticas e implementadas em contextos organizacionais similares podem produzir diferentes impactos organizacionais e sociais. Avaliá-los sem considerar o contexto social é restringi- los a um nível puramente econômico.

Finalmente, não obstante o determinismo tecnológico seja criticado, alguns autores defendem a idéia de que essa perspectiva pode acomodar diferentes visões, variando desde o chamado determinismo leve (soft determinism) até o determinismo radical (hard determinism). Naquele, julga-se a tecnologia um fator-chave que facilita mudanças na sociedade e no comportamento dos atores sociais; já neste, considera-se a tecnologia o único fator de mudança radical da sociedade e da sua forma de pensar e agir, uma força autônoma, independente, auto-controlada, auto-determinante, auto-geradora, auto- expansível, auto-propulsora, auto-perpetuadora (OOSTVEEN, 2007).