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CAPÍTULO 3 QUADRO TEÓRICO

3.2 Modelagem social da tecnologia

A modelagem social da tecnologia (SST – Social Shaping of Technology) aborda a influência social na natureza da tecnologia (PINCH e BIJKER, 1987; BIJKER e LAW, 1992) com base em princípios da sociologia do conhecimento (BERGER e LUCKMAN, 1966). Postula que a tecnologia não possui características intrínsecas, ou seja, é um produto da sociedade; incorpora a natureza social de várias maneiras (MACKENZIE e WACJMAN, 1985) e por essa razão pode ser interpretada e reinterpretada de diferentes formas. Assim, em cada estágio do processo de desenvolvimento tecnológico, podem se fazer escolhas disponíveis aos atores sociais participantes de acordo com o contexto social. Embora essas escolhas não estejam pré-definidas, elas são influenciadas e socialmente moldadas por fatores sociais, políticos, culturais, econômicos, organizacionais etc. O objetivo das teorias baseadas na modelagem social da tecnologia é explorar as possíveis interações entre os atores sociais e a forma como moldam a tecnologia.

A modelagem social da tecnologia foca de que forma os vários atores sociais interpretam um determinado artefato tecnológico. Para os teóricos sociais construtivistas, a tecnologia possui uma característica denominada flexibilidade interpretativa, que permite múltiplas interpretações a respeito de suas propriedades funcionais e sócio-culturais (AVGEROU, 2002; BIJKER et al., 1987; ORLIKOWSKI, 1992; PINCH e BIJKER, 1987), em função do grau de engajamento dos atores sociais usuários dos sistemas durante o processo de sua constituição, seu desenvolvimento e seu uso. Diferentes grupos sociais atribuem diferentes significados a um mesmo artefato tecnológico, podendo gerar conflitos e fazer com que a construção social da tecnologia geralmente se associe a um processo de negociação entre esses grupos.

Dessa forma, as percepções a respeito das propriedades da tecnologia são determinadas pelas estruturas interpretativas e pelo processo de negociação dos grupos sociais relevantes (CADILI e WHITLEY, 2005). Os grupos sociais relevantes e o processo de negociação que se estabelece para resolver seus conflitos de interesse constituem-se tema central da modelagem social da tecnologia e são conceitos relevantes a se incorporarem no quadro teórico.

3.2.1 Grupos sociais relevantes

Para Bijker e Law (1992) os grupos sociais são formados por atores sociais que compartilham estruturas sociais, recursos e arranjos institucionais. Trabalhar com o conceito de grupos sociais relevantes torna a análise da relação tecnologia-sociedade mais objetiva do que trabalhar com o conceito amplo e abstrato de sociedade.

Os grupos sociais compartilham padrões identificáveis de interpretações, significados e ações em relação ao uso da tecnologia, e são capazes de, ao mesmo tempo, construí-la e moldá-la (FULK, 1993). Para DeSanctis e Poole (1994), a tecnologia emerge das interações entre atores sociais heterogêneos e sua manifestação somente ocorre quando grupos sociais apropriam-se de características tanto da própria tecnologia quanto da estrutura social na qual o grupo se insere. As influências sociais nas atitudes e comportamentos individuais dos atores em relação à tecnologia potencializam-se quando o indivíduo identifica-se com as características e atributos de um grupo social (FULK, 1993).

Bijker e Law (1992, p.76 – tradução nossa) afirmam, referenciando uma frase utilizada por Latour (1987), que “[...] É relativamente fácil identificar os grupos sociais relevantes, basta seguir os atores”; eles sugerem que a identificação do porta-voz de um grupo social relevante específico ocorre naturalmente quando se permite aos atores manifestarem-se e serem ouvidos, numa abordagem etnográfica que foque nos significados atribuídos aos artefatos e não imponha interesses ocultos ao grupo.

Do ponto de vista metodológico, pode-se fazer a identificação de atores e grupos sociais relevantes a partir de técnicas de análise documental, investigação do papel dos atores e mesmo de métodos oriundos de estudos sociológicos, conforme Collins (1985), o snow- balling23 para a identificação de atores-chave. Para Bijker e Law (1992), quando o pesquisador inicia a investigação de um tema, ele já intui quais são os atores e os grupos sociais relevantes. Collins (1985) postula que a escolha de um conjunto reduzido de grupos, embora possa significar uma simplificação da realidade é, em geral, recomendada.

23 Harry Collin (1985) utilizou um método chamado snowballing (bola de neve) em seus estudos de sociologia do conhecimento científico para identificar atores-chaves, em que as pessoas entrevistadas indicavam o nome de outras pessoas (atores) consideradas relevantes para tratar do tema investigado.

Um número muito grande de grupos sociais não necessariamente melhora a qualidade da análise.

No contexto do governo eletrônico, Barbosa et al. (2007) identificam cinco grupos sociais relevantes capazes de modelarem e de seem moldados pela construção e pelo uso de artefatos tecnológicos decorrentes do governo eletrônico: executivos políticos, gestores públicos, equipes de implementadores de tecnologia, cidadãos e empresas. Discutir-se-ão as características desses grupos na seção 3.3.2.

3.2.2 O processo de negociação entre os grupos sociais relevantes

Diferentes grupos sociais atribuem diferentes significados a um mesmo artefato tecnológico, apresentam variações em suas preocupações e práticas, possuindo expectativas diversas quanto às tecnologias que utilizam (BIJKER e LAW, 1992). Por esse motivo, emerge das relações entre grupos um processo de negociação de suas expectativas que, por sua vez, influencia o processo de desenvolvimento da tecnologia e dos artefatos resultantes (CLAUSEN e KOCH, 1999).

Nesse processo de negociação, duas etapas são importantes: a estabilização (stabilization) e o fechamento (closure). O processo de negociação atinge um estágio de estabilização quando diferentes grupos sociais relevantes chegam a uma interpretação similar da tecnologia em uso, amplamente aceita e fixada por todos (PINCH e BIJKER, 1987). A estabilização de um artefato é resultado da ação e de interesses dos grupos sociais em mobilizar recursos para chegar a um acordo e fechar um debate ou controvérsia. Esse estágio conduz a outro, denominado fechamento, que ocorre quando um acordo entre os grupos sociais relevantes é alcançado. Acorda-se, então, a tecnologia estabilizada e um dado artefato tecnológico fica “fechado” a mudanças POZZEBON (2001a). O fechamento ocorre devido a mecanismos retóricos e discursivos. Nesse estágio, a tecnologia adquire uma ampla aceitação por parte dos grupos sociais relevantes.

Esses dois processos ocorrem nas redes sociotécnicas do e-gov por meio de mecanismos disponíveis para a comunicação entre eles nas diversas etapas do processo de construção do e-gov (conforme discutir-se-á na seção 3.5.1).

Na perspectiva dos grupos sociais cidadãos e empresas usuárias do e-gov, importantes grupos na fase de avaliação do desempenho, identifica-se a ocorrência do processo de negociação quando cidadãos insatisfeitos com algum artefato tecnológico (p.e. serviço público eletrônico) utilizam canais digitais para se comunicar com o governo e reclamar ou gerar controvérsias, os quais são representados, muitas vezes, pelo instrumento “Fale Conosco”, disponível em portais de governo, ouvidoria e centrais de atendimento (call- centers). Quando o governo utiliza informações provenientes desses canais, enviadas pelos grupos para melhorar os seus artefatos tecnológicos, esses são moldados pelos grupos sociais, os quais, posteriormente, farão interpretações e darão significado aos novos artefatos tecnológicos, apropriando-os até que se alcance a estabilização. No contexto do governo eletrônico, os canais do tipo “Fale Conosco”, disponíveis nos portais de governo na Internet legitimaram-se como canal preferencial de comunicação entre a sociedade e o governo no ambiente digital (WEST, 2005).