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DEVIDO PROCESSO LEGAL: DA DITADURA MILITAR À

Interessa-nos particularmente a percepção do devido processo legal durante o período ditatorial e o seu desenvolvimento sobre o ordenamento jurídico com a redemocratização, ocorrida no Brasil em virtude da promulgação da CF/88. Semelhante à abordagem realizada no capítulo II, o fato de examinarmos a técnica processual nos moldes atuais não afasta a importância da identificação do princípio pelos fundamentos em que se baseou o legislador para elaboração da técnica processual.

Sobre esse patamar, se pensarmos que o controle judicial mais abrangente teria anteriormente se incorporado ao cenário constitucional brasileiro, na ambiência em que se sucedeu à promulgação da Lei nº 6.830/80, não é consensual a presença efetiva de garantias que denotassem o respeito ao princípio do devido processo legal. Tomamos, por exemplo, o ponto de vista de Sampaio Doria que, no período de vigência da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, entendia que o texto emanado do autoritarismo nem

extremos da estrutura lógica normativa. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 1999, p. 303-306)

164 CASTRO, 2010, p. 6.

165 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre o devido processo legal. Revista de Processo, São Paulo, v.63, 1991, pp. 54-63.

implicitamente tangenciou a questão do devido processo nas relações processuais, externando já naquele momento a necessidade de que a ideia dos “precedentes judiciários americanos, calcados na due process of law” fossem considerados pela jurisprudência brasileira de modo que houvesse “alguma luz nos labores exegéticos da Constituição Brasileira”167.

Com outra visão, Ada Peregrini Grinover endossava o entendimento de José Frederico Marques considerando que, pela leitura do §4º, do art. 153, da referida emenda estariam presentes os elementos fundantes do princípio do devido processo legal168. Opinião que, mais adiante foi reconsiderada pela própria doutrinadora ao reconhecer sua pouca aplicação prática durante o período ditatorial:

De qualquer forma, o alcance da garantia do § 4º do art. 153 da Constituição vigente, em sua aplicação concreta, é bastante reduzido: pouco resta, se tirarmos as decisões atinentes ao exercício do direito de ação e as suas limitações pelo legislador ordinário.169

Outrossim, procurando refletir sobre a questão ao traçar um apanhado geral de todas as constituições brasileiras até a atual Carta Magna, José Afonso da Silva sintetiza:

Não deixemos de mencionar, de passagem, que o princípio do due process of

law não esteve propriamente ausente do nosso direito constitucional. Ele

emergia de algumas normas de garantia do processo e do direito de segurança, inscritas entre os direitos e garantias individuais. Seu reconhecimento dependia de pesquisa no texto constitucional e de construção doutrinária. Agora ele está expresso. Basta à doutrina compreendê-lo na evolução centenária que tanto o enriqueceu. E, sendo limpidamente expresso, pode-se até reproduzir suas potencialidades em novos avanços, mormente porque inscrito numa Constituição com tantas novidades que hão de nele repercutir.170

Por isso que, ao traçarmos um contraste entre o período de edição da norma e os moldes atuais, verificamos que as evidências em nosso ordenamento jurídico são bastante profusas em conquistas sociais para sustentar que a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada um grande divisor de águas para a consolidação da democracia no Brasil. Não por menos que o desenvolvimento da ciência processual, transcendendo ao fato de ter ampliado consideravelmente as garantias atribuídas aos litigantes em geral, tenha

167 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e o "due process of law". 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 5.

168 GRINOVER, Ada Peregrini. As garantias constitucionais do direito de ação, São Paulo: RT, 1973 pp. 175-179.

169 Ibidem, p. 176.

170 SILVA, José Afonso. Prefácio. In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. XX.

assegurado como grande inovação a expressa previsão no inc. LIV, art. 5º, de que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, deixando inequívocas as fortes influências do direito norte-americano pela adoção da garantia constitucional assecuratória de todos os meios que visem proteger os valores fundamentais que sustentam a dignidade da pessoa humana171.

Conforme já mencionamos, foi justamente essa intenção que motivou a Suprema Corte americana a imprimir ao devido processo legal um caráter substantivo, mediante o qual seria possível aferir a constitucionalidade das normas pelo exame dos critérios empregados pelo legislador para interferir na vida, liberdade e propriedade do cidadão, o que demonstrava que, com base nas concepções do direito natural, a tese mais ampliativa da revisão judicial permitiria uma apreciação minudente em concreto das eventuais arbitrariedades cometidas pelo Poder Público172.

A divisão que passou então a ser disseminada, pregando a dicotomia do devido processo entre os aspectos procedimental e substancial, conquanto seja acolhida por parte da doutrina, não nos parece a mais adequada a fortificar a integridade do princípio, na medida em que possa transmitir a falsa noção de que, em determinados casos, o princípio pudesse estar parcialmente presente173. Tal como se posiciona Humberto Ávila,

ganharemos muito mais se o concebermos de maneira única, relacionado às garantias do procedimento, onde a vertente substancial estaria fundamentada na razoabilidade e na proporcionalidade dos atos normativos174.

O tratamento ao qual acreditamos mais condizente com o devido processo legal é de um princípio estruturante, destituído de eficácia provisória, prima facie, não podendo ser afastado por razões contrárias, uma vez que toda atuação estatal deve conformar-se a seu

171 Para a gênese norte-americana do princípio recorre-se às Emenda 5ª e 14ª da Constituição norte- americana. (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. v.2. 3.ed. SÃO PAULO: Saraiva, 2004, p. 260 et seq.)

172 DEL CLARO, 2005, p. 260.

173 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 126.

174 ÁVILA, Humberto. O que é “devido processo legal”. Revista de processo, São Paulo, v. 163, set. 2008, p. 50.

conteúdo. Atribuindo a mesma relevância dos princípios federativo, da separação dos poderes e da igualdade, Ávila conclui:

[...] esses princípios são de algum modo instrumentais, da atuação estatal, não sendo adequado referir-se a eles com a expressão “dimensão de peso". Como eles prevêem uma estrutura que organiza e ordena determinados elementos ou conforma determinados modos de atuação e de manifestação, a sua observância não é propriamente gradual, nem podem as suas exigências ser simplesmente afastadas por razões contrárias175.

Além disso, compreender o processo, na significação que se extrai da norma constitucional, substancializa não só os atos praticados na esfera judicial. Aplica-se igualmente como limitador das ações estatais coordenadas pelo poder legislativo e pela Administração Pública, sendo que, existem vozes autorizadas que ainda defendem sua observação nas relações entre particulares176.