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Um caso especial: A estabilidade subjetiva na execução fiscal

5.2 REFLEXOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA CERTIDÃO DE DÍVIDA

5.2.2 Um caso especial: A estabilidade subjetiva na execução fiscal

Conforme já havíamos salientado (vide supra item ‘4.2.1’), a técnica processual não apresenta grandes inovações ao prescrever o rol dos possíveis legitimados a figurar no pólo passivo da execução fiscal. Além disso, não identificamos nenhuma nuance que implique em uma relação direta e apta a fomentar a análise do devido processo legal, uma vez que não existam elementos no teor do art. 4º da LEF que determinem uma investigação crítica fundamentada na observância das garantias processuais.

Por outro lado, existem aspectos interpretativos que merecem ser abordados, sobretudo quando nos referimos à responsabilização tributária e seus reflexos sobre a funcionalidade da técnica processual. Para fins da análise, isso não significa que devemos adentrar no regime jurídico de vinculação de terceiros à dívida tributária. Na medida em que questões de direito material não são arguidas no teor da execução, não é por intermédio do exame da técnica do processo que iremos determinar, por exemplo, qual o exato significado ou

422 FERNANDES, 2002, p. 65.

423 Com a promulgação da Lei nº 13.105/2015, houve um alargamento do prazo para correções de erros na petição, que pelo CPC/73 era de 10 (dez) dias, passando então a ser de 15 (quinze) dias.

extensão da expressão “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”, consignada no inc. III, do art. 135 do CTN, ao discriminar os atos de gestão que resultam na responsabilidade dos administradores da pessoa jurídica.

Interessa-nos, no entanto, compreender duas questões polêmicas e de maior transcendência processual: - Se há necessidade da indicação nominal do responsável na certidão de dívida ativa no momento de ajuizamento da execução?424 - E se a mera identificação desse legitimado passivo é condição necessária e suficiente para a promoção da demanda?425 Pelas respostas, o que buscamos é determinar até que ponto as atribuições da Fazenda Pública, por suas prerrogativas de constituição unilateral e proposição de emendas à CDA, poderão influir na estabilidade subjetiva da execução e na forma com que a técnica concretiza o devido processo legal.

Primeiramente, não podemos assimilar que diante da unilateralidade constitutiva do título decorra uma relação direta e disponível pela Fazenda Pública na identificação do eventual responsável no título fazendário. O fato de a responsabilidade decorrer de previsão legal não quer dizer que prescinda de uma apuração administrativa426. Entendemos que uma das premissas que atribuem sentido à técnica é a condição de que a CDA seja amparada por processo administrativo prévio, onde seja assegurado ao cidadão a possibilidade de contraditar, antes mesmo da constituição do título, a legalidade da exigência tributária. É partir dessa providência que, em princípio, a autoridade administrativa irá apurar se está presente, além do devedor originário, a figura do responsável para a composição do pólo passivo da relação obrigacional427. Refletindo sobre a matéria, Humberto Theodoro

Júnior esclarece:

A co-responsabilidade tributária não pode, em regra, decorrer simples afirmação unilateral da Fazenda na execução fiscal. Reclama, como é curial, apuração pelos meios legais, e só depois do indispensável acertamento do fato que a tiver gerado é que a responsabilidade do estranho poderá ser havida como líquida e certa. Isto, como é óbvio, nunca poderá ser feito depois da penhora, no bojo da execução forçada já em curso, já que a certeza é pressuposto de

424 ASSIS, 2007, p. 403. 425 MARINS, 2012. p. 761.

426 Esse procedimento se sustenta na competência privativa da autoridade administrativa em identificar o sujeito passivo da obrigação tributária (Art. 142, CTN). A auditoria fiscal, nesse aspecto, exerce papel fundamental, porquanto, muitas vezes, somente uma análise fundamentada em uma vasta coleta de provas possa se configurar uma responsabilidade tributária.

427 CASTRO, Paulo. Execução no código de processo civil. Doutrina, prática, jurisprudência. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 10.

admissibilidade da própria execução, devendo antecedê-la obrigatoriamente428.

Enquanto a concretização da técnica efetivamente se determinar por esses termos, compreendemos que a garantia do devido processo legal administrativo estará plenamente satisfeita sob o aspecto subjetivo. Os atos executivos coordenados com base nessa qualidade pressupõem que todos os devedores e coobrigados, antes mesmo do início da demanda, conheçam em sua integralidade os fundamentos da exação, bem como já tenham sido a eles oportunizados os meios de defesa então disponíveis. Formar o título executivo, por nossa compreensão, é mais de que meramente fazer consignar o nome do responsável tributário como devedor da Fazenda Pública. Assim como todas as informações contidas na CDA, é no processo administrativo devidamente fundamentado que se encontrará a justificativa para a vinculação subjetiva ao crédito executado.

Todavia, passando ao largo dessa expectativa, o que percebemos na prática são interpretações bem diferentes desse raciocínio. Não são poucos os casos em que a Fazenda Pública, afiançada pelo entendimento jurisprudencial, tem conseguido êxito no ajuizamento de execuções fiscais despidas de título executivo. É que, em circunstâncias bastante recorrentes, diante das citações infrutíferas da pessoa jurídica executada, o que deveria significar a extinção do feito é convertido no chamado “redirecionamento da execução fiscal”, pelo qual os sócios da entidade são chamados ao processo para adimplir com seu patrimônio pela dívida fiscal.

Por essa contingência, na medida em que técnica processual não defina minimamente as hipóteses desse fenômeno, há um ambiente propício para que a Fazenda desfrute de uma ampla elasticidade, diante das mais diversas situações, para manejar a norma a seu favor. Exemplo bastante recorrente é o caso de certos atos de gestão praticados com excesso de poder, com infração à lei, a contrato social ou a estatuto social determinados a ensejar a responsabilidade tributária do sócio gerente.

Embora seja característico do processo administrativo ter finalidade voltada à extração dos elementos fáticos que resultam na imputação da responsabilidade, as evidências tem demonstrado que o STJ, por conta da necessidade de definição dos contornos à técnica

processual, tem proposto soluções que, se não são incompatíveis, não geram a plena certeza de que estão harmonizadas com o devido processo legal. É caso, por exemplo, da presunção da dissolução irregular da pessoa jurídica que deixe de funcionar no seu domicílio sem a comunicação aos órgãos competentes, atraindo o enquadramento de uma das hipóteses de responsabilização societária nos moldes previstos do inc. III, do art. 135, do CTN429.

Em outra situação, avançando o entendimento sobre o tema e apresentando seu posicionamento sobre uma questão que reiteradamente já vinha decidindo, a Corte Especial, por meio do REsp. nº 1.104.900/ES430, julgado em 25/03/2009 pelo rito dos recursos repetitivos, deixou assentado que, com base na presunção de certeza e liquidez da CDA, a mera inclusão do sócio da pessoa jurídica no documento por si só transfere a ele a ônus de provar que sua conduta administrativa não foi conduzida por nenhuma da hipóteses previstas no art. 135 do CTN. Comentando as posições adotadas pela jurisprudência, Marins destaca que

Imputar dívida tributária por responsabilidade do gestor, inscrevendo-lhe em dívida ativa sem qualquer apuração fática-probatória constitui-se em grave conspiração contra o due process of law, sobretudo se essa inscrição [...] converte-se em fundamento para que o administrador sofra gravames pessoais, como restrições de acesso ao crédito e exposição à sujeição passiva em execução fiscal na qual sofrerá constrição sobre seus bens pessoais431.

A nosso ver, a renúncia às apurações realizadas administrativamente, postergando a atribuição da responsabilidade tributária para apreciação na via judicial, mediante a juntada de parcos ou nenhum elemento de prova acentua de forma ilegítima o caráter unilateral do título executivo. É que o óbice ao prévio conhecimento administrativo da exigência tributária imputada aos sócios, além de frontalmente cercear a defesa dos executados, subverte toda a natureza da técnica processual executiva, na medida em que

429 Súmula nº 435, editada pelo STJ em 22/04/2010.

430 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO À SISTEMÁTICA PREVISTA NO ART. 543-C DO CPC. EXECUÇÃO FISCAL. INCLUSÃO DOS REPRESENTANTES DA PESSOA JURÍDICA, CUJOS NOMES CONSTAM DA CDA, NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO FISCAL. POSSIBILIDADE. MATÉRIA DE DEFESA. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. INVIABILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. A orientação da Primeira Seção desta Corte firmou-se no sentido de que, se a execução foi ajuizada apenas contra a pessoa jurídica, mas o nome do sócio consta da CDA, a ele incumbe o ônus da prova de que não ficou caracterizada nenhuma das circunstâncias previstas no art. 135 do CTN, ou seja, não houve a prática de atos "com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos". (REsp. nº 1.104.190. Rel. DENISE ARRUDA. PRIMEIRA SEÇÃO. Dje DATA: 01/04/2009).

admite situações em que a ação seja ajuizada sem o respectivo título executivo, que, como já anotamos é uma prática que, ainda que fortaleça o interesse público secundário, substancializado pela aquisição de meios que incrementem a arrecadação, ao mesmo tempo destrói os alicerces do Estado de direito432.

Ademais, cabe a ressalva que não se encaixam nessas situações teratológicas aqueles casos em que a responsabilidade é configurada em decorrência de fato superveniente à execução e que obviamente só no momento da cobrança judicial pode ser identificada.