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Retomando os resultados obtidos até então, a elasticidade com que são propostas as prerrogativas da Fazenda Pública em juízo é o principal argumento manejado pelos juristas brasileiros, quando pretendem imprimir reflexões críticas à Lei de Execução Fiscal. Assinalam que o modelo construído pelo legislador não poupou esforços em revestir o Poder Público de vantagens processuais sob o manto do interesse público, ignorando completamente as tendências que já naquela época impregnavam o processo civil. Sem sermos repetitivos, na medida em que já tivemos a oportunidade de avaliar essa questão, percebemos, no entanto que, demonstrar essa inconsistência por meio de uma abordagem meramente dinamizada no contexto em que se sucedeu a elaboração da norma processual é apenas uma das facetas da problemática.

Um exame científico exige mais do que isso, tendo em conta que pontos de vista densificados sobre os meandros da técnica processual serão o fator preponderante de nossas conclusões. Por isso, muito além do que simplesmente dizer que todo o regramento na seiva seja irregular, a pretensão investigativa prescinde da escolha de um parâmetro para que possamos, de fato, identificar precisamente o lócus da anunciada exorbitância e, em que proporção, apresenta-se porventura contaminado o microssistema processual.

Importante para tal objetivo é destacar que uma análise determinada a partir da compatibilidade com as democracias modernas, revela-nos que a consciência de que o Estado deveria ser limitado pelo direito desenvolveu-se em vários quadrantes jurídicos, embora com ‘nuances’ bastantes específicas151. Deveras, a complexidade dos fenômenos

jurídicos de massa do Estado moderno fez com que o dogma da legalidade fosse elevado a um estágio superior e hipercriativo, traduzido como um “ideal supremo de justiça nas

151 OLIVEIRA, Cibele. Devido processo legal. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, v. 32, p. 176, 2000.

nervosas relações entre a autoridade constituída e as autonomias individuais e coletivas”152.

Dotado dessa característica, o nominado príncipio da legalidade, muito mais do que a proposta original que havia se justificado como medida de cerceamento dos poderes da realeza (rule of law), passou a ser reverenciado como mecanismo plenamente adaptado aos diversos meios de manifestação do poder do Estado153.

Todavia, os resultados dessa nova perspectiva deram conta de que não bastava que a lei fosse produzida por um órgão devidamente habilitado a instituir a ordem jurídica infraconstitucional. De fato, as chamadas leis ordinárias deveriam representar, antes de tudo, legítimos mecanismos de concretização da vontade fundamental154, cujas aspirações mais basilares deveriam estar comprometidas com a necessidade de resguardar de forma ampla e genérica o trinômio vida-liberdade-propriedade, considerados como os bens mais caros ao ser humano155.

No que se refere aos reflexos sobre o processo, conquanto não houvesse nenhuma fórmula pronta e acabada apta a determinar as garantias mínimas asseguradas aos litigantes em juízo em face das arbitrariedades do Poder Público, os sistemas constitucionais, a partir da segunda metade do século XX, estruturados segundo as diretrizes do Estado democrático de direito, passaram a conceber um modelo para a solução de conflito de interesses coordenado a partir da concepção de um conjunto de princípios e regras constitucionais que garantiria a legitimidade e a eficiência da aplicação da tutela jurisdicional156.

152 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 133.

153 Néri indica, segundo a doutrina norte-americana, a cláusula do devido processo legal está presente no direito administrativo através do controle dos atos administrativos realizados pela própria Administração (autotutela) ou pela via judicial (NÉRI Jr., Nelson. 7ª ed. rev. atual. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2002, p. 39).

154 THEODORO Jr., Humberto. Constituição e processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de- estudos/outras-publicacoes/volume-iii-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-a-consolidacao-das- instituicoes/poder-judiciario-e-acesso-a-justica-constituicao-e-processo-desafios-constitucionais-da- reforma-do-processo-civil-no-brasil> Acesso em: 15/12/2014.

155 NÉRI Jr., 2002, p. 35.

156 THEODORO Jr., Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD, v. 2, n. 1, jan./jun. 2010, p. 64-71.

Entretanto, o que desde logo se percebeu é que, muito embora, o legislador dispusesse de poderes, a princípio discricionários, para disciplinar da maneira mais “conveniente e oportuna” as regras processuais ordinárias, tal prerrogativa não se configuraria em permissão para suplantar as garantias processuais atribuídas pela Constituição, pelo que se assemelhem a verdadeiros “direitos invioláveis do homem”157. Desde o momento em

que o Estado tomou para si o monopólio da jurisdição, não seria aceitável que seu exercício pudesse resultar em qualquer espécie de gravame aos jurisdicionados158.

Com efeito, são essas condições insuprimíveis que permitem uma avaliação quanto à constitucionalidade dos procedimentos regulados pela lei que, embora sejam passíveis de receber uma interpretação extremamente vasta e elástica, vêm sendo objeto de contínua sistematização por parte dos estudiosos do assunto. Tal trabalho visa agregar através do filtro constitucional os ingredientes mínimos para que o controle jurisdicional seja realizado de forma mais adequada159 e que, de certa forma, acabe por contribuir para que, diante de um profuso caráter manipulativo, carregado de infinitas possibilidades, tornem- se concretas as normas jurídicas decorrentes de um sistema hierárquico de valores160.

Todo esse complexo protetivo articulado para a preservação da integridade da tutela jurisdicional, de acordo com os direitos constitucionalmente previstos, enquadra-se no conceito de “devido processo legal” (due process of law), originalmente concebido pelo sistema da common law e que, mercê da recepção pelos diversos ordenamentos jurídicos161, é atualmente percebido pela doutrina de forma híbrida162, ora como um direito fundamental, ora como uma cláusula geral163 e, destacadamente, como um

157 COMOGLIO, Luigi Paolo. Etica e tecnica del “giusto processo”. Torino: G. Giappichelli, 2004, p. 54 e p. 26.

158 CASTRO, 2010, p. 290.

159 COMOGLIO, Luigi Paolo. “Garanzie costituzionali e giusto processo (Modelli a confronto)”, in Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 23, abril-junho de 1998, n° 90, p. 90 e pp. 101-102.

160 CASTRO, 2010, p. 139.

161 No Brasil, a assimilação do instituto jurídico adveio da própria tradução literal da gênese cultural inglesa. No entanto, conforme identifica, Didier Jr, várias são as adaptações ao termo operadas pelos países que absorveram o raciocínio para o processo. Os portugueses, por exemplo, o denominam de “processo equitativo”, enquanto os italianos tendem a aproximar todo esse grupo de garantias processuais constitucionais de “processo justo”, diferentemente da ideia de “fair trial”, também usual nos demais países europeus. (DIDIER Jr., Fredie, Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e ao processo de conhecimento, 12ª ed. rev. ampl. atual. Salvador, BA: JusPODIVM, 2010, p. 45) 162 DEL CLARO, Roberto. Devido processo Legal – Direito fundamental, princípio constitucional e cláusula aberta do sistema processual civil. pp. 5-11.

163 Conforme esclarecimento de Judith Martins-Costa, uma cláusula geral seria um tipo de normatização jurídica onde o antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado, configurando-se com isso uma nítida indeterminação legislativa em ambos os

princípio cuja relevância revela um “verdadeiro termômetro de validade dos atos estatais”164.

Analisando sua positivação em nosso ordenamento jurídico, Luiz Rodrigues Wambier destaca que, embora as Constituições anteriores a 1946 não o tenham explicitamente perfilhado, já esboçavam claramente em seus artigos determinadas garantias de natureza processual que, no conjunto, demonstravam a adoção do princípio165. Mais adiante, dentro de uma renovada perspectiva democrática, o constituinte pós-Estado Novo, andou bem ao conjugar diversas medidas assecuratórias dos direitos fundamentais que, se não trouxeram expressamente o devido processo legal em seu teor, tiveram o mérito de consignar pela primeira vez a regra escrita da ubiquidade ou inafastabilidade da jurisdição166.

3.2 DEVIDO PROCESSO LEGAL: DA DITADURA MILITAR À