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Influência e interesses do poder sobre o processo

2.2 O INTERESSE PÚBLICO ADEQUADO À TÉCNICA PROCESSUAL

2.2.2 Influência e interesses do poder sobre o processo

2.2.2.1 Processo e os valores da sociedade

O direito, como objeto de conhecimento eminentemente cultural, pode ser, sem a menor hesitação, submetido a uma análise delimitada pela perspectiva ideológica, cultural e histórica106. Embora notável a persistência de uma certa timidez por parte dos estudiosos

no seu condicionamento por aspectos externos, sejam eles temporais, locais ou socioculturais107, assim como ocorre com as demais ciências humanas, falar em tempo

para o direito é realçar a noção de ‘tempo axiológico’ cuja configuração decorre de “uma experiência de valores, na qual atuam os fatores operacionais de escolha e de seletividade”108. O instrumento processual, pelo fato de ser um canal para a sua

viabilização, compartilha dessas mesmas condições.

106 GOMES, Camilla de Magalhães. História do processo – perspectiva histórico-cultural do direito processual. In: ZAGANELLI, Margareth Vetis (coord.). Estudos de história do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 37-41.

107 GOMES, 2009, p. 39.

É a partir de tudo isso que decorre uma permanente e indissociável influência entre a construção dos sistemas processuais e a ideologia vigorante em determinado tempo e lugar. Para tanto, devemos assumir que, ainda que seja um conceito com múltiplas acepções, a ideologia a que nos referimos para análise é aquela cuja definição se segue pela conotação advogada por Zaffaroni e Pierangeli ao compreendê-la como “a crença de um sistema de ideias que vincula determinada conduta dos comportamentos coletivos”109.

Se antes o estudo da técnica processual era realizado pela perspectiva de uma ciência isolada sem interferência do ambiente externo, foi com a identificação do cunho ideológico dentro do processo que Mauro Cappelletti expõe:

Está claro, hoje em dia, que já se passaram os belos tempos felizes, nos quais os processualistas podiam se contentar com um estudo puramente técnico, de práticas e normas locais ou nacionais. Agora, descobrimos, efetivamente que, incorporadas a essas práticas e normas, estão as grandes correntes da história do homem: as mudanças sociais e econômicas, as transformações intelectuais, as evoluções, os monopólios da civilidade110.

Só pela contingência de estar necessariamente mais próximo ao mundo da vida e da prática social, torna-se bem compreensível a carência metodológica que convive o direito processual ao ter que resolver as mais diferenciadas situações em uma sociedade que se encontra em constante transformação. Acaso possamos considerar isso uma desvantagem, o manejo com o direito material é bem mais suportável aos juristas, uma vez que por suas características seja bem menos volátil em relação ao meio social em que se insere111.

Por isso que, como uma decorrência dessa constatação, a acentuada sensibilidade dos influxos ideológicos sobre o processo provoca um incremento na responsabilidade de quem propõe e determina a técnica, na medida em que são esses os fatores sociais que deverão estar presentes no produto legislativo e nas finalidades esperadas da jurisdição. Sendo igualmente coerente com a questão que não possamos desconsiderar que a confluência de interesses seja um aspecto inerente à atividade legiferante, é natural que o debate no parlamento seja pautado sobre as bases das diferentes ideologias que querem

109 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5ª ed. Rev. Atual. São Paulo: RT, 2004, pp. 65-66.

110 CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 370.

111 BATISTA, Ovídio. Processo e ideologia. Revista de processo. Revista de Processo, São Paulo, v.110, abr. 2003, p. 991.

se fazer evidentes sobre a matéria legislada, tratando-se, na verdade, conforme a seguir, de um conjunto de aspectos que não podem ser ignorados, sob pena de uma aproximação parcial ou incompleta da técnica processual.

2.2.2.2 As diretrizes do poder e os modelos processuais

Na condição de que já tenhamos estabelecido a conexão entre ideologia e processo, há fundamentos para uma análise ainda mais capilarizada, onde poderemos relacionar o fruto da atividade legislativa com os interesses do poder e, por via de consequência, com as regras processuais a serem positivadas. Para essa abordagem, valemo-nos dos conhecimentos sociológicos, onde alguns estudiosos se ocuparam de tentar explicar o fenômeno do poder sem, no entanto, dissociá-lo da força que o direito através dele pode se manifestar.

O marco inicial geralmente escolhido para pesquisa é aquele que goza de amplo reconhecimento perante os juristas: o resultado da laboração normativa não se extrai apenas pela concepção de uma ciência jurídica autônoma, fechada e alheia às pressões externas e nem tão pouco trabalha exclusivamente com base nos fundamentos e valores sociais112.

O direito, mais que isso, conforme identifica o sociólogo francês Pierre Bourdieu, interpenetra-se na sociedade sob a forma de um sistema simbólico. Ao fazê-lo, empresta significação às palavras, constituindo-se como uma das espécies de estrutura de comunicação cujo poder, independente do uso da força física, tem a virtude de construir a realidade e dar sentido imediato ao mundo, na medida em que tende a estabelecer uma ordem racional para as relações que estruturam a sociedade113. A carga valorativa relacionada à norma jurídica nessa realização é elemento essencial para que o poder possa

112 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa, Portugal: Difel, 1989, pp. 209-210.

emprestar-lhe efetividade. Do contrário, enquanto puro juízo, estaremos diante de um quase nada jurídico114.

Trabalhando por uma perspectiva direcionada a captar a dinâmica da coerção através das diversas conexões hierárquicas que regem o cotidiano de cada indivíduo (micro poder), Michel Foucault compreende o poder como uma relação entre dominante e dominado e não como algo que se possa tomar para si, tal como se estivéssemos diante de um objeto115. É por essa mesma linha de submissão que Tércio Ferraz Júnior e Calmon de Passos defendem que o Estado relacione-se com a sociedade na posição de poder originário ou macro poder116.

Esse encadeamento que a priori pode parecer pernicioso, não quer dizer que o fenômeno político, ainda que extrajurídico, coordene suas ações divorciado do respaldo da sociedade. A autoridade jurídica monopolizada pelo Estado configura-se como a forma por excelência da violência simbólica legítima117. Funciona como um instrumento de dominação não arbitrário, onde tanto os agentes dotados da competência para legislar, como os atores sociais sujeitos à legislação, reconhecem sua legitimidade, porém desconhecem sua presença como meio de imposição equivalente à força física ou econômica118. Complementa Calmon de Passos que, “se a sociedade é pressuposto

essencial à condição humana, o poder, devemos também reconhecê-lo, é pressuposto essencial à sociedade”119.

Como instrumento de dominação legítima, tal qual uma das formas equacionadas por Max Weber, poderemos entendê-lo como decorrente de práticas consuetudinárias (poder tradicional); como originário de um laço de afetividade entre dominante e dominado

114 CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, poder, justiça e processo: julgando o que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48.

115 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 24ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 179.

116 Explica Tércio Sampaio Ferraz Júnior que o poder é uma comunicação regulada por um código, cuja capacidade de transmitir influência, afasta-o da condição de mera coisa a ser apropriada. (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. -. São Paulo: Atlas, 2003, p. 41). No mesmo sentido: CALMON DE PASSOS, 2000, pp. 24-25.

117 BOURDIEU, 1989, p. 146. 118 Ibidem, p. 14.

(poder carismático) ou associá-lo ao enquadramento de um sistema de leis (poder legal). Assim, segundo sua perspectiva, a previsibilidade e a eficiência das leis no Estado moderno seriam condições necessárias e suficientes para a compreensão de um ordenamento jurídico legítimo120. Respeitando o ponto de vista do notável sociólogo, compreendemos que tal raciocínio não apresente a amplitude esperada para explicar a legitimidade da dominação. Até porque, se assim fosse, estariam plenamente justificados os governos ditatoriais e totalitários.

Muito mais coerente com a problemática é examinar a questão na contemporaneidade, de acordo com a percepção adotada por Bourdieu ao agregar um sentido peculiar para a legitimidade da atuação dos legisladores. Segundo ele, a aceitação das normas jurídicas pela sociedade afasta-se tanto de seu caráter de universalidade, como não pode ser considerada como efeito da adesão inevitavelmente obtida através do registro dos interesses dominantes. A ação jurídica tida como legítima exsurge da confluência das relações objetivas entre o campo jurídico, o campo do poder e o campo social121.

Linha de raciocínio semelhante é defendida no Brasil por Ferraz Júnior, cujos apontamentos definem que nem os esquematismos contidos na lei (“lícito/ilícito”, “permitido/não permitido”, etc.), nem tão pouco a força física poderia apreender o poder legitimamente constituído122.

Ambos os pontos de vista são aderentes à realidade democrática contemporânea, todavia não expurgam o pensamento de Weber. De fato, a legitimidade pressupõe o direito como ferramenta necessária à limitação e ao controle do poder, por isso dele não pode se distanciar. O Estado moderno, operando na base da autolimitação, não vislumbra sua atividade apartada da indissolubilidade do binômio direito-poder123. Contudo, há que se ver que a esperada segurança jurídica complementa-se pelo fato de “não pode prescindir de um mínimo de aquiescência dos dominados e da redução, ao máximo, da possibilidade

120 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4ª ed. Brasília, DF: Editora UNB, 2000, p. 526.

121 BOURDIEU, 1989, pp. 240-241. 122 FERRAZ Jr., 2003, pp. 33-35. 123 FERRAZ Jr., 2003, pp. 40-41.

de resistência”124, o que em outros termos deve se traduzir em “um certo grau de

satisfação do dominado – um grau mínimo que seja capaz de possibilitar a paz social”125.

Igualmente sustentável que, diante da pertinência um poder legítimo, porquanto não possamos subestimar a força dos interesses dominantes126, passa a refletir como característico que os ideais do grupo que se ocupam de gerir os rumos do Estado, em maior ou menor intensidade, possam exercer papel de prevalência nas ações dos agentes autorizados à produção do direito. Naturalmente que admitir que o poder possa interferir no direito não é o mesmo que considerar uma confluência de interesses viciada por um ambiente antidemocrático e, nesse sentido, seus efeitos possam ser absorvidos pela técnica processual que, como um produto do ofício legislativo, não necessariamente irá conjugar de forma equânime os valores ideológicos da sociedade.

2.3 ASPECTOS PREPONDERANTES NA CONFORMIDADE DA TÉCNICA DA