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A circunstância de que o caput do art. 5º da Constituição Cidadã enuncie a igualdade perante a lei denuncia um dos elementos propulsores de vários movimentos transformadores das estruturas sociais, presente explicita ou implicitamente nos ordenamentos jurídicos democráticos modernos. Nos ensinamentos de Humberto Ávila, a determinação configura-se simultaneamente como uma regra proibitiva de discriminações, um princípio-fim e um postulado de interpretação e aplicação do Direito66.

Com especial evidência, considerando que a experiência histórica tenha demonstrado a insuficiência da mera proclamação da igualdade perante a lei, em abstrato, o constitucionalismo contemporâneo tem se inclinado no sentido de que o Estado promova medidas jurídicas tendentes a equilibrar situações discriminatórias diante dos casos concretos, trazendo à materialidade a máxima aristotélica de tratamento igualitário aos iguais e diferenciado para os grupos ou cidadãos que verdadeiramente ostentem condições de inferioridade diante dos demais membros da sociedade.

Essa mudança de postura estatal aparece justamente como mais um dos efeitos da transição do Estado liberal para o Estado social, sobre a qual já tivemos a oportunidade de discorrer (vide supra item ‘1.2’). Com exatidão, Paulo Bonavides comenta que “a igualdade deixou de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se converter na igualdade material da nova forma de Estado”67. Muito mais relevante, essa outra compreensão do

fenômeno, na medida em que passou a incorporar as ideologias e valores vigentes, demonstra sua importância diante dos demais direitos fundamentais, a ponto de a igualdade alçar uma posição de destaque como “um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo”68.

66 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 150.

67 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20ª ed. Atual. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 376-377.

Conquanto na prática sua aplicabilidade e mesmo efetividade tenha um caráter abrangente, com extensão a todos os poderes políticos, nesse ponto o que realmente interessa é observar a igualdade e seus efeitos dentro da relação que envolve a atividade legiferante e o exercício da função jurisdicional. Assim, o mesmo legislador que detém uma discricionariedade balizada pelo respeito ao princípio da igualdade69, determina a sua aplicação no processo, impondo ao magistrado a necessidade da estrita observância à isonomia entre as partes. Por isso que, além da concessão de idênticas condições de atuação e paridade de armas aos litigantes70, é patente que o livre convencimento motivado, no decurso de todo o iter processual, tenha como um de seus condicionantes o dever de equacionar materialmente a informação prévia e participação bilateral em todos os atos processuais praticados (vide infra item ‘3.5.4’).

Não só isso. A conformidade com Estado democrático de direito reserva ao legislador, além do dever de não discriminar, igualmente a obrigação de promover medidas normativas que fomentem discriminações positivas na sociedade. São inequívocas as evidências nesse sentido, porquanto observemos a diversidade de preceitos constitucionais71 e infraconstitucionais72 que, de forma direta ou indireta, impulsionam tratamento diferenciado com vias a dar relevo à igualdade material. Por outro lado, essa atuação do legislador ao elaborar a norma como elemento regulativo da vida social não pode servir de pretexto para concessão de privilégios ou para dar margem a perseguições73.

De tudo é que, a aplicação da igualdade em toda a sua plenitude nos autoriza a conjecturar quais seriam os critérios seguidos pelo legislador para que a mesma lei que não discrimina injustificadamente, tenha também a função de determinar um regime diferenciado diante

69 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 9.

70 DIDIER Jr, Fredie. DIDIER Jr., Fredie, Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento, 12ª ed. Rev. Ampl. Atual. Salvador, BA: JUSPODIVM, 2010, p. 44.

71 Somente citando alguns exemplos, colhemos os seguintes dispositivos constitucionais: art. 5º, inc. XXXII e LXXVI; art. 145, § 1º; art. 146, inc. III, al. ‘c’ e ‘d’; art. 170, inc. VI, VII e IX.

72 Exemplificando, temos a Lei nº 12.990/2014 que reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas

oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

das situações distintas em concreto74. Em nosso contexto, a isonomia, como um dos

princípios a serem manejados pela técnica processual, deve atender às reflexões de Barbosa Moreira sobre a funcionalidade do sistema processual. Entende o processualista que, pelo papel a que se reservam os princípios, eles devem ser tomados como meios para um fim essencial, qual seja, a realização de uma boa justiça. Se os tivermos como inflexíveis, acabaremos indo no sentido contrário ao objetivo apresentado75.

No âmbito de uma crítica à técnica processual parametrizada pelo devido processo legal, aquelas indagações que deram origem a análise versada é bem provável que o primeiro passo seja verificar: "qual o critério legitimamente manipulável, - sem agravos à isonomia - que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos"76 E mais: "qual o estado de coisas o Poder Legislativo pretende objetivamente atingir ou manter com os efeitos que supostamente serão provocados com a diferenciação"77; e se, "há normas constitucionais que protegem, direta ou indiretamente, a finalidade objetivamente eleita pelo Poder Legislativo?"78.

Por outras palavras, se já tínhamos adiantado que essa medida de comparação não pode ser eleita aleatoriamente, nem tão pouco pode determinar-se por desequiparações fortuitas e injustificadas, ao reconhecermos a presença de um elemento tomado como fator de desigualação na técnica processual, devemos aferir se entre ele e a disparidade estabelecida pela desigualdade gerada existe, de fato, uma justificativa racional ou uma correlação lógica abstrata, e principalmente, se tal relação é compatível com os interesses prestigiados pela Constituição79.

Etapa seguinte, se é amplamente divulgado que o critério que vinculou o legislador seja a presença do interesse público e que, como tal, foram construídas as regras para a

74 Ibidem, p. 12.

75 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Les Principes Fondamentaux de la Procédure Civile dans la Nouvelle Constitution Brésilienne. In Temas de direito processual (quinta série). São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 39-47.

76 MELLO, 2007, p. 72.

77 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 72. 78 Ibidem, p. 73.

execução fiscal que desnivelaram ainda mais o credor e o devedor, é adequado expor a dimensão desse discrímen no Estado democrático de direito.