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Cibernética Social

4.4 Flusser e Pask: Um diálogo possível?

4.4.1 O diálogo em Vilém Flusser

Flusser discute a diferença entre diálogo e discurso e sua respectiva influência na sociedade. O autor acredita que a produção da informação se dá quando “homens trocam diferentes informações disponíveis na esperança de sintetizar uma nova informação”62 em uma comunicação dialógica. Por outro lado, “para

manter a informação, os homens compartilham informações existentes na esperança de que elas, assim compartilhadas, possam resistir melhor ao A Cibernética como arcabouço para a avaliação dos museus

59 HANKE, Michael. Vilém Flusser: A cultura dos ... 2009. p.76. 60PANGARO, Paul, Users to Designers, [n.d.].

61 HAQUE, Usman. The Architectural Relevance of Gordon Pask, 2007a p. 55.

89 enfeito entrópico da natureza”63, constituindo-se o discurso.

Flusser ainda explicita que ambos participam com igual importância da comunicação humana, porque o diálogo só acontece com informações recolhidas de discursos anteriores. Ao mesmo tempo, para que o discurso aconteça, o emissor deve produzir informações sintetizadas em diálogos anteriores64 (a informação é elaborada através do diálogo e transmitida a partir

do discurso65). Mas ainda assim, participar de diálogos e discursos é ato

completamente distinto, e, infelizmente, a sociedade contemporânea dispõe predominantemente de discursos. O funcionamento sadio da sociedade só acontece com o equilíbrio entre as duas formas de comunicação66.

A idéia que Flusser explora de diálogo é fortemente influenciada por Martin Buber67 que afirma que o diálogo entre os homens é o “médium do Outro para

todos os seres”68. O autor desenvolve um conceito de existência humana

baseada em diálogo e na relação entre o homem e Deus. Andreas Ströhl69

argumenta que uma leitura cuidadosa de Flusser pode revelar a secularização do pensamento de Buber:

Acredito que o que diferencia nossa cultura de outras é experiência do sagrado no homem. Nós podemos expressar isto de duas maneiras diferentes. Ou Deus é experimentável como homem, como um Outro, que nos diz “Vós” e a quem também nos dirigimos desta maneira, ou o homem é somente a imagem do Deus que temos70.

Fazendo o paralelo entre os dois, Ströhl afirma que enquanto Buber considera Capítulo 4

63 FLUSSER, O mundo codificado..., 2007 p. 97. 64 FLUSSER, O mundo codificado..., 2007 p. 97.

65 FLUSSER, Vilém. On the theories of communication. 2002. p. 18. 66 FLUSSER, O mundo codificado, 2007 p. 98.

67 HANKE, Michael. Vilém Flusser: A cultura dos ... 2009. p. 75-91; e STRÖHL, Andreas, Introduction,

2002, p.IX – XXXVII.

68 HANKE, Michael. Vilém Flusser: A cultura dos ... 2009. p. 89.

69 STRÖHL, Andreas, Introduction... 2002.

70 FLUSSER em STRÖHL, Andreas Introduction, PP. XV. O termo Vós foi escolhido para traduzir o termo

Thou, usado por Buber na passagem “Man becomes I through Thou” em original. “I believe that what differentiates

our culture from others is the experience of the sacred in man. We can express this in at least two different ways. Either God is experienceable as man, as an Other, who says “Thou” to us and whom we also address in this manner, or man is the only image of God that we possess”.

90 que a comunicação humana é sempre imperfeita, uma metáfora para o ato comunicativo final que é com Deus; Flusser usa o conceito de “Deus” como uma metáfora para o sagrado existente na comunicação entre homens71. Tal

intenção é esquecer a falta de significado e a solidão de uma vida em direção a morte72.

As idéias de político e social de Buber influenciam a maneira como Flusser explora os conceitos de discurso e diálogo. Buber distingue o político do social a partir da dicotomia propaganda e educação.

O propagandista de um partido político intenciona “inculcar no público uma vontade pré-fabricada, isto é, implantar em cada um a certeza de que essa é a sua própria vontade, nascida em seu próprio seio”73, que pode ser associado a

idéia de discurso de Flusser. Já a intenção da educação é de “despertar e desenvolver em cada um dos educandos a espontaneidade da sociabilidade, que existe potencialmente em todos nós, e que é perfeitamente compatível com a vivência e a reflexão individual”74; e tal perspectiva encontra eco no

conceito de diálogo.

Buber especifica a importância da educação em detrimento à propaganda, que reflete na dicotomia político-social. O social se relaciona à administração, enquanto o político se relaciona ao governo. A existência de uma sociedade sem a dominação (ou o “imperialismo da informação”) é diretamente proporcional a relação entre discurso e diálogo presente, à participação em detrimento à representação75.

Dentro da sociedade telemática prevista por Flusser, na qual novas possibilidades de diálogo são criadas, haverá uma mudança importante na relação entre as proporções de discurso e diálogo existentes. Além disso, a A Cibernética como arcabouço para a avaliação dos museus

71 STRÖHL, Andreas, Introduction. 2002, pp. XVI.

72 FLUSSER, Kommunikologie in STRÖHL, Andreas, Introdução. 2002, pp. XVI.

73 DASCAL, Marcelo, A ideia de Paz na Filosifia de Martin Buber. In Do Diálogo e do Dialógico, 2007. p.

27.

74 DASCAL, Marcelo, A ideia de Paz...2007. p. 27. 75 DASCAL, Marcelo, A ideia de Paz...2007. p. 22.

91 telemática introduz uma mudança essencial na sociedade: a impossibilidade de se ganhar ou perder com a informação. Se não há em que reter a informação, ela fluirá muito mais facilmente.

Certamente nova informação será continuamente produzida e a soma de informação acessível será continuamente aumentada. Mas esta inundação de informação não será transformada em útil, e ela não se transformará em lucro. Ela será “somente” celebrada76.

A sociedade telemática irá causar (ou será proporcionada por?) uma mudança de paradigma na programação, principalmente no que tange à maneira como a comunicação acontece. Ao mencionar aparatos que produzem imagens, Flusser afirma que a sociedade telemática proporcionará uma programação dialógica. Não haverá mais “emissores centrais, mas todos sentados na frente de um terminal produtor de imagem que poderão ditar seus próprios programas para os aparatos”77. Por serem compatíveis, haverá um diálogo constante entre

esses aparatos. Esse homem do futuro será diferente do funcionário atual, porque ao invés de julgar de acordo com o programa, ele julgará programando. O autor equipara sua colocação “programação dialógica” à “vida dialógica” de Buber78.

Neste período de transição, cada homem sente a necessidade de ter seu próprio programa, porque, como ressalta Flusser, a possibilidade de ter significa não ser possuído por outros que o tenham, enquanto que em uma sociedade da informação a noção do programa próprio não faria sentido. O problema é que, atualmente, estamos vivendo um “imperialismo da informação”, no qual

os emissores possuem os programas e nós somos possuídos por eles. Desta maneira, telematização seria a técnica de arrancar os programas das mãos dos emissores, para torná-los propriedade de todos os Capítulo 4

76 FLUSSER Vilém. Celebrating, 2002 p. 169. “Certainly, new information will continually be produced and the

sum of accessible information will continually be increased. But this flood of information will not be made useful, and it will not become profit. One will “only” celebrate it”.

77 FLUSSER Vilém. Celebrating, 2002. p. 169, “the centralized senders but everyone sitting in front of an image-

producing terminal who will be able to dictate his own programs to the apparatus”.

92 participantes. No estágio atual, ‘programa próprio’ significa ‘desapropriação’, a socialização dos programas imperialistas. É um slogan socializante79.

Após este período de tomada, Flusser afirma que não haverá mais ʻprogramas própriosʼ, porque não haverá operadores centrais. O que teremos neste cenário é uma programação dialógica.

Não é o caso de se ter um programa próprio, de forma que ninguém possa impor o seu sobre mim, mas de ter outros programas (os programas dos outros) e de poder mudá-los (recomendá-los para outros). Desta maneira, quando a sociedade telemática finalmente estiver aqui, não se falará mais de ‘programa próprio’ mas de ‘outro programa’ (para mim, um neologismo característico da sociedade telemática).80

Além de explicitar a importância do diálogo para o desenvolvimento da sociedade, Flusser ainda distingue a “conversação” da “conversa” (e do que chama de conversa fiada). A conversação acontece, por exemplo, nas relações cotidianas, como entre um vendedor e um comprador no mercado, tendo na ciência sua forma mais avançada. Neste campo, o diálogo e a troca mútua operam de forma a desenvolver o intelecto. A conversa fiada abrange a “fofoca” e o “bate papo” e, da mesma maneira em sua forma intensificada, a propaganda política, os comerciais, os filmes, revistas e romances kitsch (pseudo-artísticos)81.

A conversa parece idêntica à conversação, se vista superficialmente, porque é composta de “redes aparentemente formadas por frases e intelectos”, mas a conversa é constituída de

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79 FLUSSER Vilém. Celebrating, 2002. p. 170, “The senders possess the programs, and we are possessed by them.

Thus, telematization would be a technique for tearing the programs from the hands of the senders, to make them the property of all participants. In the current stage, ‘own program’ signifies ‘dispossession,’ the socialization of imperialistic programs. It is a socializing slogan”.

80 FLUSSER Vilém. Celebrating, 2002. p. 170, “it is not a matter of having one’s own program, so that no one can

throw his own down on me, but to have other programs (the programs of others) and to be able to change them (to recommend them to others). Thus, once the telematic society is finally here, one will no longer speak of “own program,” but rather of “other program” (to me, a neologism characteristic of the telematic society)”.

81 HANKE, Michael.!Vilém Flussers Sprache und Wirklichkeit von 1963 im Kontext seiner

93 detritos da conversação que penetram imperceptivelmente [...]. A expressão portuguesa conversa fiada exprime excelentemente essa situação. [...]. Frases formuladas por intelectos participando da conversação são apanhadas por pseudo-intelectos participando da conversa, sem jamais serem inteiramente apreendidos e compreendidos. Digo pseudo-intelectos porque nesta camada um verdadeiro intelecto não chega a realizar-se82.

Desta maneira, Flusser conclui que as redes de conversa são produtos da decadência das redes de conversação, “conversações frustradas”83.