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Necessidade do espectador ser ativo na produção da experiência 71

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5.4 Problemas relacionados ao uso de tecnologias de informação e comunicação nos museus

5.4.2 Necessidade do espectador ser ativo na produção da experiência 71

Contrapondo à necessidade do espectador ser sempre ativo, Jacques Rancière compara essa questão com a relação entre o mestre (schoolmaster) e seu ignoramus.

A distância entre o conhecimento e a ignorância entre os dois e a maneira como o mestre trata o ignoramus causa a estultificação, perda de entusiasmo e iniciativa como resultado de uma rotina tediosa ou restritiva. Para si, o mestre sabe o que é a ignorância, e o seu ignoramus não. Desta maneira, o mestre começa a ensinar o seu pupilo sobre a sua própria ignorância.

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69 PIAS. Claus. Zombies of the Revolution... 2005, par. 6. Within the framework of such narratives of progress, immersion could be integrated into an art historical masterplot. From baroque ceiling painting and 19th century panoramas to cinema, everything suddenly appeared as being a technically inferior preliminary stage of an approaching immersive completion through New Media Art. That makes the former more stupid than it ever was and ennobles the latter beyond all measure.

70 ZILIENSKI, Sigfried. ARTS AND APPARATUS... 2008 71 RANCIÈRE, Jacques. The emancipated Spectator... 2009.

Rancière associa a lógica do schoolmaster e seu ignoramus à relação dos artistas com seus espectadores atualmente. O autor supõe que a perda de ilusão dos artistas desloque a pressão da ação para o espectador. “Talvez o último [o espectador] saberá o que deve ser feito, no caso do teatro por exemplo, se a performance o retirar de sua atitude passiva e o transformar em participante ativo de um mundo compartilhado”72. Mesmo que não saiba o que

pode ser feito, o diretor acredita que o espectador deve atuar para superar a distância entre ser passivo e ativo. Mas o próprio ato de tentar superar essa distância pode ser a própria razão de ela ter sido criada.

O fato de existir um espectador passivo surge de dois pressupostos. O primeiro, de que ver está associado ao prazer das imagens e aparências. O segundo, que ignorar a verdade atrás da imagem e da realidade fora do teatro, assim como o ato de ouvir, são atitudes passivas opostas à fala, típica da ação. Mas como o próprio autor aponta, tal categorização é associada à própria atribuição de papéis, e tal atribuição varia ao longo da história.

O espectador é desacreditado porque não faz nada, enquanto atores no palco ou trabalhadores fora colocam o seu corpo em ação. Mas a oposição entre ver e fazer volta assim que opomos à cegueira do trabalhador manual e dos profissionais empíricos, atolados em urgência e rotina, à perspectiva ampla daqueles que contemplam idéias, predizem o futuro ou tem uma visão compreensiva do nosso mundo73.

Contrapondo à lógica de estultificação, na qual o schoolmaster, o diretor ou autor de uma peça espera ensinar algo ao espectador de forma direta e uniforme, existe uma atitude emancipadora em que o pupilo aprende algo com o schoolmaster que nem o último tem consciência. E embora exista um discurso disseminado entre os artistas de que eles não tem a intenção de Capítulo 5

179 72 RANCIÈRE, Jacques. The emancipated Spectator... 2009, p.11. “perhaps the latter will know what is to be done, as long as the performance draws them out of their passive attitude and transforms them into active participants in a shared world”.

73 RANCIÈRE, Jacques. The emancipated Spectator... 2009, p. 12. “the spectator is discredited because she does nothing, whereas actors on the stage or workers outside put their bodies into action. But the opposition of seeing and doing returns as soon as we oppose to the blindness of manual workers and empirical practitioneers, mired in immediacy and routine, the broad perspective of those who contemplate ideas, predict the future or take a comprehensve view of our world”.

instruir algo específico, existe sempre a expectativa da reação coincidir com a intenção inculcada na peça.

Emancipação começa com o princípio da igualdade. Ela começa quando dispensamos a oposição entre ver e agir e entendemos que a distribuição do visível em si é parte da configuração de dominação e sujeição. Ela começa quando entendemos que olhar é também uma ação que confirma ou modifica a distribuição, e que ‘interpretar o mundo’ já é um modo de transformá-lo74.

Já no museu, a utilização de texto para explicitar estratégias usadas pelo artista, arquiteto ou curador é uma prática curatorial corrente. O Museu Judaico em Berlim ilustra bem esta situação, porque nele diversas intenções do arquiteto Daniel Liebeskind foram afixadas nas paredes como forma de instrução direta de suas intenções e possíveis sensações provocadas por sua estratégia. A FIG. 59 mostra a explicação dada para o eixo do Holocausto.

O fato de existir um texto tão explicativo em relação à estratégia utilizada pelo arquiteto dentro da torre do Holocausto já sugestiona o visitante a buscar as intenções pretendidas a priori e enfraquece suas possibilidades de criar a sua própria experiência do lugar. As interpretações do cômodo serão sempre carregadas do peso dos horrores praticados na Segunda Grande Guerra.

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74RANCIÈRE, Jacques. The emancipated Spectator... 2007, p. 277. “emancipation starts from the principle of

equality. It begins when we dismiss the opposition between looking and acting and understand that the distribution of the visible itself is part of the configuration of domination and subjection. It starts when we realize that looking is also an action that confirms or modifies that distribution, and that ‘interpreting the world’ is already a means of

transforming it”.

FIGURA 59 – placa explicando as intenções de Libeskind na Torre do Holocausto

“O eixo do Holocausto sobe um pouco e termina em um cômodo vazio de 24 metros de altura, a Torre do Holocausto. O cômodo não é nem climatizado nem iluminado artificialmente. Somente por uma fenda passa luz. De fora penetram ruídos. Libeskind chamou este cômodo “Voided Void”. Somente depois este cômodo foi interpretado como um lugar de memória das vítimas do holocausto. A arquitetura de Libeskind é também aberta para a própria, diferente interpretação”.

Fonte: Autora, 2007

É para evitar este tipo de controle que, como na situação de emancipação do pupilo de seu mestre, a relação entre espectador e artista deve se dar em um terceiro lugar, uma “terceira coisa” que não é possuída a priori nem por um nem por outro, e que existe somente entre eles. Tal atitude exclui qualquer mensagem direta ou relação de causa e efeito direto. Este argumento de Rancière encontra eco nas próprias idéias da cibernética de segunda ordem, já tratada no capítulo anterior, na qual a construção do diálogo entre os participantes de um sistema é própria deles, e só é possível sob a condição de co-habitarem uma mesma situação em que um é observador do outro.

Além disso, o diálogo ganha importância e se opõe ao próprio discurso que o autor se refere como “transmissão uniforme”, em que uma mensagem pretendida a priori é simplesmente repassada. A tentativa de mediação deste terceiro elemento, é, para Rancière, uma ilusão fatal de autonomia. A performance tenta exatamente abolir a exterioridade presente no teatro, a partir do deslocamento dos espectadores para o palco e dos atores para o auditório, a partir do fim da separação entre os dois, transferindo a performance para outros locais – tomando conta da cidade, da vida.

Finalmente, o autor critica a crença de que a existência de pessoas que se dirigem a outras em um mesmo espaço físico é suficiente para criar uma idéia de comunidade e que se opõe à situação de pessoas sentadas em frente à televisão.

O que exatamente acontece entre os espectadores do teatro que não pode acontecer em outro lugar? O que é mais interativo, mais comunitário, sobre esses espectadores que uma massa de indivíduos assistindo um programa de televisão no mesmo horário?75

Rancière argumenta que assim como em museus, escolas e nas ruas, a massa de espectadores em um teatro é formada de indivíduos que traçam seu próprio caminho entre coisas, atos e sinalizações que os confrontam em seu ambiente. O poder coletivo que dividem não vem do fato de participarem de uma mesma Capítulo 5

181 75 RANCIÈRE, Jacques. The emancipated Spectator... 2009, p. 16. What exactly occurs among theatre spectators that cannot happen elsewhere? What is more interactive, more communitarian, about the spectators than a mass of individuals watching the same television show at the same hour?

comunidade, mas sim do poder que cada um tem de traduzir suas percepções no seu próprio caminho e se aproximar dos outros.

O que nossas performances – sejam elas ensinar ou jogar, falar, escrever, fazer arte ou olhar para ela – verificam não é nossa participação em um poder imbuído na comunidade. É a capacidade de pessoas anônimas, a capacidade que transforma todos iguais a todos os outros. Essa capacidade é exercitada através de distâncias irredutíveis; é exercitada por uma interação imprevisível de associações e dissociações76.

O autor conclui que ser um espectador não é uma ação passiva que deve ser transformada em atividade, porque enquanto espectadores somos também capazes de criar nossas próprias conexões. O cerne do problema não está na forma de participação, mas sim nos pontos de partida da criação das relações. E como solução deste problema, é necessário negar a distribuição forçada de papéis, negar a criação de fronteiras entre territórios e entre aqueles que agem e aqueles que olham. É, em suma, necessário reconhecer a atividade peculiar existente em um espectador.