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A DIÁSPORA COMERCIAL, POUCO A POUCO, SE IMPÕE COMO SISTEMA DE COMÉRCIO

No documento O trato as margens do pacto (páginas 135-138)

O TRÁFICO DE ESCRAVOS

NÚMERO DE NAVIOS BAIANOS ENVOLVIDOS NO TRÁFICO DA COSTA DA MINA E NO DE ANGOLA (1681-1710)

4.13 A DIÁSPORA COMERCIAL, POUCO A POUCO, SE IMPÕE COMO SISTEMA DE COMÉRCIO

Os comerciantes africanos promoveram a institucionalização das suas sociedades sempre levando em conta as práticas de comércio que haviam assimilado no decurso de muitos séculos e o quantum, bem como a respectiva distribuição, dos recursos materiais e do potencial humano disponíveis em seus territórios. Aonde esses mercadores conseguiram implantar e consolidar sistemas de trocas – como, por exemplo, ocorreu nas proximidades da costa de Loango e na bacia do rio Zaire, regiões nas quais eles conseguiram, aos poucos, impor-se comercialmente no seio das densas populações radicadas nos vales dos rios equatoriais e nas fímbrias das florestas –,

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Comenta Miller (1988:176), reportando-se às duas famosas categorias distintas de valor cunhadas por Karl Marx: “A vastidão da água existente entre a praia em Cabinda e os navios negreiros ancorados a uma dada distância dela expressava, nos mais fortes termos, toda essa divisão física existente entre os mundos [dos valores] de uso e de

desenvolveu-se, pouco a pouco, uma nova modalidade de organização comercial (a diáspora comercial), estabelecida através da montagem de redes, com crescentes áreas de abrangência e que promovia a articulação, por interesses comerciais, de novos e de já tradicionais povoados permanentes, cujos habitantes criavam entre si, pari passu com um progressivo grau de divisão social do trabalho, laços de parentesco (especialmente por meio de matrimônios), de amizade ou de negócios. Nas terras mais secas e por isso menos habitadas, que se estendiam para o sul e para o leste, onde – dado o estágio ainda pouco desenvolvido dos sistemas de trocas inter-regionais, o comércio de mercadorias importadas, bem como o transporte de escravos, eram ainda promovidos através de caravanas – a maioria dos cativos, capturados por meio de guerras localizadas ou de razias dispersas e esporádicas, era obtida num ritmo bastante irregular. Nestas condições tornava-se esta última modalidade de deslocamento de gente e de mercadorias (as caravanas) um modo eficiente de administrar a evacuação dos cativos em direção à costa (MILLER, 1988:173-174).

Foi a venda a crédito de bens importados, promovida pelo capital comercial europeu, que garantiu e acelerou a expansão e a crescente sofisticação dos originalmente restritos setores de troca da economia política africana. Nas partes setentrionais da costa, os sistemas de comércio regionais domésticos prosperaram a partir do acesso aos enormes montantes de capital comercial africano que foram então disponibilizados. Diante disso, alguns comerciantes de lá passaram a preferir, para a realização de seus negócios, deixar de lado as ofertas de créditos externos e utilizar os seus próprios ativos operacionais, conquistando, assim, maior grau de autonomia frente aos financiadores europeus.

Os comerciantes europeus que atuavam na praça de Loango passaram a comprar os escravos que lhes eram trazidos pelos agentes comerciais africanos na própria costa, de um modo que pouco diferia do prevalecente, até então, na Costa da Mina e em suas imediações. Enquanto isto, os portugueses, bastante carentes de capital, contavam, para poderem competir pela obtenção dos escravos de Luanda, somente com a injeção de grandes quantidades de crédito em mercadorias de troca, tendo que desenvolver, a partir do zero, redes de troca, e sendo obrigados a fazer suas compras de cativos no interior longínquo, situado bem além do alcance das ramificações comerciais atreladas às práticas comerciais mercantilistas das nações européias mais poderosas e ricas. Mais para o sul, o sistema de caravanas passou a ter acesso aos escravos não

mais somente através da provocação de guerras de apresamento, mas, também, pela via do endividamento; isto, entretanto, só pôde ocorrer a partir de um substancial aporte de capital europeu. Mais longe ainda, rumo ao sul, a combinação da densa população local existente no planalto do Ovimbundo e dos métodos de escravização calcados na violência permitiu que lá comerciantes portugueses pobres e seus coligados africanos pudessem financiar caravanas que eram encaminhadas para Benguela, sendo eles, todavia, a priori excluídos do desfrute de qualquer possibilidade de fácil acesso aos lucros extraordinários que eram realizados por ocasião da aquisição dos cativos, por baixíssimo custo, através das guerras africanas, como o faziam as caravanas financiadas pelo capital europeu. Se não fosse pelo financiamento africano implícito existente por detrás desse comércio, os compradores brasileiros, bastante carentes de capitais, cujos navios esperavam longo tempo fundeados em Benguela, teriam enfrentado desvantagens competitivas ainda maiores do que aquelas que sobre eles já pesavam (MILLER, 1988:174).

Além desses dois sistemas econômicos e sociais já mencionados, passou a ter crescente importância um terceiro sistema, a diáspora comercial, cujos praticantes conquistaram crescente autonomia. Ou seja, passou-se a desenvolver um comércio amplamente amparado pelos precedentes ideológicos africanos, que, “embora menos envolvido que o dos reis nativos com a criação de lealdades e dependências abstratas, ainda se enquadrava nos termos da economia política africana, uma vez que parte significativa dos seus lucros comerciais era investida na criação de dependentes humanos: escravos, agentes, agregados diversos, parentela e pessoas recebidas em penhor”100. Entretanto, esse terceiro sistema não deixava de estar vinculado à economia atlântica, na medida em que ele também mantinha estoques de mercadorias importadas e obtinha seus dependentes por troca. Parte das pessoas assim obtidas eram empregadas para trabalhar em redes comerciais em expansão, em vez de serem empregadas na agricultura, e outra

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Observa Miller (1988:105) que: “A maioria dos escravos da África central ocidental, e quase todos os provenientes de fora da limitada área sob controle direto dos portugueses, atingiam a costa como produtos complementares de estratégias político-econômicas que os reis africanos e os líderes de linhagem seguiam para atrair dependentes. Estes homens distribuem importações para aumentarem comitivas, não para vender gente. (...). Para atingir o seu objetivo primário de aumentarem suas entourages de clientes, súditos, parentes e escravos, os líderes tinham que se confrontar com a antitética necessidade de renunciar a uma parte dos seus duramente-ganhos lucros, expressos em pessoas [dependentes], em favor dos estrangeiros que lhes exportavam mercadorias cuja posse os tornava poderosos. Foram esses relutantemente cedidos dependentes que se tornaram os escravos do comércio atlântico.”

Na mentalidade que prevalecia entre os dirigentes dos estados africanos que produziam escravos, a contabilização dos resultados das operações, através das quais viabilizavam suas exportações de bens e de pessoas, era, pois, feita em termos do número, da qualidade e do grau de dependência das pessoas, que, como “lucros” ou “perdas” de natureza humana, eram agregadas ou subtraídas ao seu convívio.

parte era trocada por novos estoques de bens importados a serem empregados no tráfico (MILLER, 1988:174-175).

No documento O trato as margens do pacto (páginas 135-138)

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