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Dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade fática

CAPÍTULO II – A NATUREZA DOS DIREITOS SOCIAIS

3. Direitos sociais como concretização da dignidade da pessoa humana

3.2. Dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade fática

Fundado na concepção da igual dignidade de todos119, o princípio da dignidade da pessoa humana só teria repercussão prática se, efetivamente, o indivíduo fosse considerado em sua igualdade e sujeito, evocando, como pontua Jorge Reis Novais, uma “atribuição geral e universal de direitos”120. Nesta nova concepção, restariam jungidas ao passado as diferenças de tratamento em razão de hierarquia e privilégio.

A grande questão é que a nova perspectiva traçada pela dignidade da pessoa humana trazia um conteúdo não apenas teórico, mas, sobretudo, de exercício real, conferindo ao indivíduo uma capacidade de se auto desenvolver, exercitando sua autonomia e capacidades. É bem verdade que a liberdade alcançada nas revoluções liberais de finais do

117 Na visão de Jorge Miranda, apenas com o surgimento do Estado social de Direito, em especial após as Constituições e textos internacionais que vieram em seguida à segunda guerra mundial, é que foi estabelecida uma ligação “jurídico-positiva entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana”. Até então, o autor reconhece que as concepções doutrinais da dignidade, “de matriz religiosa ou filosófica”, não estariam acompanhadas de um catálogo de direitos fundamentais. Cf. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”,

in Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Coord. Jorge Miranda e Marco Antonio Marques da

Silva, pp. 167/176, 2ª ed. atualizada e ampliada, São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 168. 118 Cf. PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, op. cit., p. 562.

119 Cf. JORGE REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana, op. cit., pp. 31 e ss.

século XVIII em muito avançou nesta seara. Contudo, os direitos ali alcançados favoreciam uns poucos indivíduos que através de critérios de “pertencimento” se enquadravam nos requisitos exigidos para o exercício daquele mister121.

Não bastasse isto, a maior parte da população estava renegada a condições de sobrevivência desumanas, em especial pela exploração do trabalho, pela deficiência de moradia, pela inacessibilidade ao ensino e por total descuido no acesso à saúde. Não por acaso, pode-se concluir que os ganhos das revoluções liberais, como liberdade, segurança e propriedade122, em nada alcançavam ou beneficiavam o indivíduo que não dispusesse das condições financeiras que lhe oportunizasse o acesso aos serviços ali dispostos123.

Assim, o desafio àquela altura não era simplesmente consignar um rol de direitos em favor do indivíduo, haja vista que estes direitos somente poderiam ser exercitados ou desfrutados se houvesse o acesso do indivíduo às condições mínimas de vida que lhe proporcionassem a capacidade de fazer escolhas. Em verdade, de nada adiantaria considerá-lo igual se sua condição pessoal o excluía da capacidade de agir em igualdade de oportunidades.

É exatamente neste cenário, com vistas à elevação da condição do indivíduo, que a dignidade da pessoa humana teve papel fundamental na forma de encarar a igualdade. Não bastaria a previsão de uma isonomia legal e formal. Seria necessária a efetivação desta igualdade através de condições mínimas que conferissem ao indivíduo uma elevação de sua existência ao ponto de ter condições de se auto determinar, de exercer sua autonomia e, com isso, agir segundo os princípios e orientações de sua consciência124. Era necessário igualar para libertar125.

121 Destaca Paulo Bonavides que somente com a consolidação da crença de que todos os “homens nascem iguais”, inexistindo predeterminação da posição que cada um ocupará no espaço sociopolítico no curso da vida, é que o princípio da igualdade alcançou “a força e a legitimidade que desfruta até hoje”. Cf. PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, História Constitucional do Brasil, op. cit., p. 487.

122 De fato, no Estado Liberal os direitos fundamentais eram identificados, sobretudo, pelas liberdades negativas à disposição dos cidadãos autossuficientes, protegendo-os contra as ações do Estado. Cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais..., op. cit., p. 64.

123 Cf. SUSANA ANTAS VIDEIRA, Liberalismo e Questão Social em Portugal no Século XIX..., op. cit., p.

54.

124 Cf. IMMANUEL KANT, op. cit., pp. 85 e ss.

125 Cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, op. cit., p. 123. De se ressaltar que

esta compreensão quanto à intrínseca relação entre igualdade e liberdade já era reconhecida por Condorcet antes mesmo das revoluções liberais. Ao destacar o pensamento de Condorcet, Susana Videira

3.2.1. Igualdade como necessidade do indivíduo

Como visto, mesmo após as revoluções liberais, grande parte da população não tinha encontrado respostas para melhoria da qualidade vida. As conquistas alcançadas limitavam-se a direitos de liberdade, acreditando-se que a limitação do Estado pelo novo sistema de regras imposto seria suficiente para proporcionar um avanço e melhorar a qualidade de vida do indivíduo, já que, agora, teria o direito de ir e vir, bem como liberdade de comércio, segurança e proteção da propriedade.

Inobstante estes avanços alcançados pelas revoluções liberais, não demorou muito para se aperceber que a vitória era parcial e auferida apenas por uma pequena parte da população, já que aquelas conquistas em nada beneficiavam o indivíduo que necessitava de moradia, ensino, saúde e proteção em suas relações sociais, nomeadamente o trabalho. O conceito de independência individual - que para Constant seria “a primeira das necessidades modernas”126 - não era alcançado apenas com a promessa de respeito à liberdade, já que o exercício deste direito dependia de uma condição social mínima do indivíduo127.

Era necessário proporcionar um mínimo de condição do indivíduo desassistido para que, efetivamente, houvesse condição de exercer seus direitos128. Isto somente seria possível se a promessa de igualdade formal se materializasse através de medidas e políticas capazes de conferir uma igualdade de fato, já que sem moradia, saúde, ensino e trabalho seria impossível ao indivíduo exercer seus direitos em igualdade de condições.

Como se observa, a discussão que se travava não era uma questão de primazia ou preferência entre os direitos postos. Em verdade, a insatisfação social representava uma

ressalta que “sem igualdade não existe liberdade nem, tão pouco, paz e felicidade”. Cf. SUSANA ANTAS VIDEIRA, Liberalismo e Questão Social em Portugal no Século XIX... op. cit., p. 229.

126 Cf. BENJAMIN CONSTANT, op. cit., p. 92.

127 De fato, a irradiação da dignidade da pessoa humana vai além da proteção contra condutas capazes de gerar um tratamento degradante. Na perspectiva dos direitos sociais, a força da proteção conferida pelo princípio em causa decorre da salvaguarda de condições de vida capazes de “assegurar liberdade e bem- estar”. Cf. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais nas Constituições de Portugal e do Brasil”, op. cit., p. 517.

necessidade indissociável da independência do homem, cujo alcance somente seria possível se a liberdade e a igualdade caminhassem em convergência, como vetores de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, valor maior que reclamava a elevação da existência humana129.

Com efeito, o alcance pleno da condição humana sem os dois direitos materializados é uma promessa vazia, não havendo sucesso no alcance de um sem a correspondente elevação do outro. Neste sentido, na hipótese de um cenário de liberdade sem igualdade, pode-se antever profundas disparidades em detrimento dos menos assistidos. Em contrapartida, um ambiente de igualdade sem liberdade impõe ao indivíduo o julgo do autoritarismo, deixando, em ambas as situações, um défice na existência humana. Assim, inexiste a possibilidade de a dignidade da pessoa humana ser respeitada em um Estado cuja promoção da liberdade e da igualdade não ocorra na mesma medida.

Se a liberdade representava o grande desejo no primeiro estágio do Estado de Direito, sem dúvida a busca por igualdade figurou como a maior necessidade tão logo as expressões de liberdade passaram a ser usufruídas. Esta relação indissociável, como lembra Susana Videira ao ponderar os argumentos de Condorcet sobre a igualdade, conduzia a uma mútua vinculação entre os conceitos, surgindo a igualdade não apenas como condição de liberdade, mas também “como seu sinônimo”130.

129 Ao analisar o princípio da dignidade da pessoa humana à luz da Constituição portuguesa de 1976, Jorge Miranda reconhece que, direta ou indiretamente, tanto os “direitos, liberdades e garantias pessoais” quanto os “direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Cf. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”, op. cit., p. 169.

130 Cf. SUSANA ANTASVIDEIRA, Liberalismo e Questão Social em Portugal no Século XIX... op. cit., p.

3.2.2. Igualdade formal e igualdade fática

O grande desafio seria, portanto, efetivar a igualdade indispensável à concretização da dignidade da pessoa. Enquanto, àquela altura, entendia-se como objetivo o simples reconhecimento dos direitos de liberdade, pois bastaria a positivação legal para o exercício do “direito de agir”, percebeu-se que a igualdade não era atingível por uma mera declaração legal, havendo necessidade de medidas estatais com vistas a tornar o cenário individual mais próximo do necessário ao livre exercício das “potencialidades” humanas131.

Assim, se para os direitos de liberdade bastaria a proteção legal, através do reconhecimento do direitos de ir e vir, da proteção da segurança e da garantia da propriedade, franqueando, no máximo, uma estrutura capaz de apreciar eventual pleito neste sentido, a igualdade dependia de algo mais amplo. Além de ser positivada na Lei, a igualdade exigia um mínimo de condições que permitisse o indivíduo fazer, autonomamente, suas escolhas132, porquanto, segundo o pensamento de Jorge Miranda, uma sociedade igual somente é alcançada se seus membros tiverem “o direito de ser iguais”, sem o qual a própria “igualdade ficaria privada de efeito”133.

Apesar de, atualmente, estas considerações pouco terem relação com o contexto social, sobretudo em países mais desenvolvidos134, o certo é que o cenário do século XIX e início do século XX convivia com um sistema de profundas desigualdades,

131 Cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, op. cit., p. 123.

132 Na visão de Catarina Santos Botelho, ao refletir sobre os amplos aspectos do princípio da igualdade e seu conteúdo constitucional, haveria uma relação de profunda ligação entre a igualdade e a existência de direitos sociais. Cf. CATARINA SANTOS BOTELHO, Os Direitos Sociais..., op. cit., p. 469.

133 Cf. JORGE MIRANDA, “Sobre o Princípio da Igualdade”, in Democracia e Direitos Fundamentais, uma homenagem aos 90 anos do professor Paulo Bonavides / organização Emanuel Andrade Linhares, Hugo

de Brito Machado Segundo e Alcimor Rocha Neto... (et al.), pp. 423/451, 1ª. ed., São Paulo, Atlas, 2016, p. 428.

134 Ainda que os problemas sociais sejam mais afetos aos países menos desenvolvidos, Ingo Wolfgang Sarlet adverte que a crise da “falta de efetividade dos programas sociais” também tem alcançado os países ricos, inclusive a Europa. Destaca, para tanto, o desemprego, o aumento da criminalidade, grande número de pessoas dependentes de programas socais, etc. Cf. INGO WOLFGANG SARLET, “Breves notas sobre o regime jurídico-constitucional dos direitos sociais na condição de direitos fundamentais, com ênfase na 'aplicabilidade imediata' das normas de direitos fundamentais e na sua articulação com o assim chamado mínimo existencial”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. III, pp. 881/914, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 883/884.

impossibilitando o livre exercício dos direitos de liberdade de forma ampla e universal135. Por tais razões, em especial pela promoção da dignidade da pessoa humana, o Estado passou a ter como tarefa a efetivação da igualdade fática, entendida como um conjunto de serviços minimamente ofertados ao indivíduo que lhe permitissem agir em igualdade de condições nas diversas circunstâncias da vida.

Para tanto, o reconhecimento dos direitos e sua normatização eram passos importantes, porém insuficientes. Além de positivada, a efetivação da igualdade carecia da adoção de medidas concretas no sentido de promover o acesso do indivíduo a recursos e bens palpáveis, muitas vezes dispendiosos, a fim de que pudesse desfrutar de uma condição de existência humanitária digna, capaz de lhe oportunizar o exercício de seus direitos de liberdade136.