• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II PONDERAÇÃO DO “REAL” CONFLITO

3. Indispensabilidade do recurso à ponderação

Identificado o real conflito normativo a desafiar a aplicação da norma de direito social, depara-se a tutela judicial com uma posição de privilégio reivindicada por um indivíduo, cuja aplicação deflagrará um conflito direto com uma norma de igual estatura, identificada pela previsão normativa que confere a mesma concessão à generalidade das pessoas.

Este é mais um dos grandes dilemas na aplicação das normas de direitos sociais, sendo aparentemente mais simples tratar o tema como se fossem normas de categoria diferenciada, talvez com uma capacidade reduzida de aplicação ou mesmo uma característica própria que permitisse ser classificada como direito fundamental e, ao mesmo tempo, ser submetida a um regime de aplicação distinto e restrito.

É claro que a aceitação dos direitos sociais como normas de natureza jusfundamental não tem a pretensão de torná-las absolutas ou isentas de qualquer limitação, não sendo esta dogmática aplicável a qualquer dos direitos fundamentais402. Ao contrário, posicioná-las na categoria adequada permite seja conferido o tratamento correto, com as concessões necessárias de sua dimensão, mas também com a forma inevitável de sua aplicação.

Da mesma forma que as normas relacionadas aos direitos de liberdade desafiam uma atividade interpretativa que integre e preserve a unidade constitucional, especialmente nos casos de conflito direto entre os direitos fundamentais em questão, as normas de direitos sociais deverão ser submetidas a um crivo semelhante, a fim de que o julgador possa identificar a norma que deverá prevalecer na análise do conflito estabelecido.

Esta necessidade advem da constatação de que as normas em conflito, como identificado no item anterior, gozam de mesma natureza, não havendo como as regras tradicionais de solução de conflito suprirem a equação posta sob o crivo judicial403. Aliás, no âmbito dos direitos sociais, o conflito deflagra-se com a aplicação da norma em favor da generalidade das pessoas, o que alcança tanto a mesma norma reivindicada pelo titular, quanto todas as demais posições conferidas in tese aos indivíduos de uma forma geral.

Em situações como esta, impõe-se ao intérprete o recurso à ponderação das normas em conflito, sendo este método, como destaca Jorge Reis Novais, o melhor instrumento de análise das colisões de direitos fundamentais404. De fato, o cenário 402 Como adverte Konrad Hesse, “nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituição, pode alterar as

condições naturais”. Cf. KONRAD HESSE, A Força Normativa da Constituição, op. cit., p. 25.

403 Como reconhece Emerson Garcia, as normas constitucionais, embora com distinções axiológicas, “não ocupam plano existenciais distintos, hierarquicamente escalonados entre si”, pelo que não é possível que os conflitos normativos sejam “resolvidos no plano da validade”. Cf. EMERSON GARCIA, Conflito

entre Normas Constitucionais..., op. cit., p. 413.

constitucional moderno tem sido identificado pela forte atuação de princípios, os quais, invariavelmente, geram relações conflitantes entre direitos individuais e coletivos, tornando inevitável, como reconhece Gilmar Ferreira Mendes, “juízos de ponderação”405.

Com efeito, na moderna conjuntura constitucional, regida por normas garantidoras de posições de privilégio à generalidade das pessoas, os conflitos normativos são cada vez mais complexos, exigindo do intérprete solução que sobressaia a esfera de validade da norma406. Assim, não sendo suficiente, na análise dos princípios, o confronto da norma como mandamento definitivo, já que esta qualidade é restrita às regras407, impõe-se a ponderação como método de solução dos conflitos entre princípios408.

É bem verdade que a adoção da ponderação exige do Juiz uma avaliação mais complexa do caso, haja vista que a clássica confrontação do juízo de cumprimento e validade da norma, típico das regras, não mais oferece resposta suficiente no complexo conjunto de princípios. Agora, a tutela judicial depara-se com a necessidade de avaliar a solução do conflito mediante a importância e peso dos princípios colidentes no âmbito do caso concreto, atividade esta que requer uma “operação de índole valorativa”409, através do confronto racional de razões e contrarrazões410.

639. De se registrar a advertência de Carlos Blanco de Morais, para quem os próprios defensores da ponderação buscam, “sem grandes resultados palpáveis”, parâmetros na tentativa de objetivar o método e evitar o “arbítrio do intérprete”, revelando de forma ainda mais evidente a fragilidade do recurso interpretativo, sobretudo no campo dos direitos sociais”. Cf. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de

Direito Constitucional, op. cit., p. 595. Já no sentido de reconhecer a necessidade de estabelecer estrutura

e critérios ao método de ponderação, cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, da definição à

aplicação dos princípios jurídicos, 4ª ed. 3ª Tiragem, São Paulo, Malheiros, 2015, p. 94.

405 Cf. GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 633.

406 Sobre a concepção de Constituição como ordem de valores a desafiar a concretização por parte do Estado,

cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, Juízo de ponderação na jurisdição constitucional, São Paulo,

Saraiva, 2009, p. 61.

407 De se destacar a posição de Humberto Ávila, para quem a ponderação seria necessária inclusive em casos de aplicação de regras, já que, por vezes, podem ser encontrados casos em que o intérprete terá de sopesar a aplicação de regras. Cf. HUMBERTO ÁVILA, op. cit., p. 44.

408 Cf. ROBERT ALEXY, Constitucionalismo Discursivo, op. cit., p. 64.

409 Cf. EMERSON GARCIA, Conflito entre Normas Constitucionais..., op. cit., p. 415.

410 Por conta deste novo cenário, onde o Juiz terá de conduzir a decisão de acordo com a atribuição de preferência em detrimento de outra norma, tendo como limite a racionalidade, Ramón Ruiz destaca a advertência de Prieto Sanchís, para quem “la aplicación de principios comporta mayores riesgos de

subjetividad valorativa que la aplicación de reglas”. Cf. RAMÓN RUIZ, “La ponderación en la resolución de colisiones de derechos fundamentales. especial referencia a la jurisprudencia

Assim como ocorre corriqueiramente no conflito entre direitos de liberdade, sobre os quais a “metodologia ponderativa”411 busca identificar, racionalmente, a prevalência de um princípio sobre outro, também se exige esta postura na tutela judicial dos direitos sociais, exatamente porque o ordenamento jurídico não dispõe de respostas definitivas acerca da validade dos princípios ou sua relação de superioridade diante de outras normas.

Nestas condições, na hipótese de uma demanda judicial com vistas à internação hospitalar ou mesmo o fornecimento de um medicamento pelo Estado, sob o manto da norma de direito social que confere o direito à saúde, carece o ordenamento de uma resposta simples para a padronização da tutela pretendida412. Simplesmente consta uma previsão normativa, cuja norma confere uma posição de privilégio em favor do indivíduo a ser suportada pelo Estado.

Em casos como este, que poderia ser enfrentado na perspectiva de qualquer outro direito social, inexiste resposta constitucional fundada em regras objetivas que apontem para um resultado auferido pela equação “tudo ou nada”. Em verdade, os dilemas nesta seara exigem uma análise profunda do alcance da norma, da razoabilidade da pretensão, da repercussão na posição de terceiros e de todas as demais peculiaridades que envolvem o caso concreto. Assim, como destaca David Duarte, inexiste outra forma de resolver o conflito que não seja através da ponderação413.

Os desafios da tutela judicial são inúmeros, especialmente porque no campo de identificação da norma prevalecente inexiste um princípio que imponha, previamente, a cedência de uma ou outra norma, sendo este o dilema a ser enfrentado pelo Juiz. Se por um constitucional española”, in Revista Telemática de Filosofía del Derecho, Nº 10, pp. 53/77, Ano

2006/2007, p. 59.

411 Acerca da metodologia da ponderação no controle da observância “dos limites aos limites dos direitos fundamentais”, cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de

Direito Democrático, op. cit., p. 124. Sobre o uso da metodologia da ponderação na solução dos conflitos

constitucionais na aplicação das normas de Direito Administrativo, cf. PAULO OTERO, Manual de

Direito Administrativo, Vol. 1, Reimp., Coimbra, Almedina, 2014, p. 436.

412 Reconhecendo os princípios como “direitos prima facie e não direitos definitivos”, Gomes Canotilho reforça a necessidade da ponderação e concordância das condições do caso concreto. Cf. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, op. cit., pp. 1273 e ss.

413 Cf. DAVID DUARTE, “Drawing Up the Boundaries of Normative Conflicts that Lead to Balances”, in Legal Reasoning: The Methods of Balancing, pp. 51/62, ARSP Beiheft Nr 124, Stuttgart, Franz Steiner

lado não há norma que, de forma objetiva e antecipada, reduza o campo de abrangência do princípio, também não há por outro lado norma que restrinja, ab initio, a concessão em favor de terceiros, exigindo-se, assim, que o Juiz adote uma decisão lastreada nas condições internas e externas do caso concreto414.

Por esta razão, como reconhece Gomes Canotilho, a ponderação como método de solução de conflito “visa elaborar critérios de ordenação”, diante dos dados normativos e circunstâncias factuais, permitindo o alcance da “solução justa para o conflito de bens”415. É através da ponderação que o Juiz poderá encontrar a medida adequada da aplicação da norma em face da complexa relação conflituosa formada pelas normas em sentido contraposto.

Embora o recurso à ponderação sofra objeções416 ou mesmo não signifique que a solução será um resultado de fácil alcance, já que dependente de uma avaliação racional de argumentos favoráveis e contrários ao peso de cada norma em conflito, conclui-se, à luz do Estado Constitucional repleto de normas fundamentais com “elevado grau de indeterminação e generalidade”417, que este é o método mais adequado para proporcionar ao intérprete o alcance da justa medida da norma, algo fundamental para o exercício da tutela judicial418. 414 No enfrentamento da natureza dos direitos fundamentais, Alexy reforça que, na qualidade de “direitos

abstratos”, os direitos humanos colidem inevitavelmente com outros direitos humanos e com bens coletivos como a proteção do meio ambiente ou a segurança pública. Cf. ROBERT ALEXY, “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, op. cit., p. 831.

415 Cf. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, op. cit., p. 1237.

416 Acerca das críticas no sentido de que a ponderação seria um “método irracional”, cf. ROBERT ALEXY, “Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade”, op. cit., p. 833. Sobre as críticas “metodológicas” e “funcionais”, cf. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “Direitos fundamentais e liberdade legislativa: o papel dos princípios formais”, in Estudos em homenagem ao prof. Doutor José Joaquim

Gomes Canotilho, Vol. III, pp. 915/938, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 917. Abordando as críticas

de Habermas à ponderação como defendida por Alexy, cf. LUÍS PEREIRA COUTINHO, “Sobre a Justificação das restrições aos direitos fundamentais”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor

Sérvulo Correia, Vol. I, pp. 557/574, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 560/561. Ainda sobre as

críticas apontadas à ponderação, cf. EMERSON GARCIA, Conflito entre Normas Constitucionais..., op.

cit., p. 416.

417 Cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrático, op. cit., p. 87.

418 Registre-se que o próprio Alexy, ao firmar a “Lei da Ponderação” advertiu para o risco de crítica acerca da sua fórmula do peso, nomeadamente pela possível alegação de impossibilidade de o raciocínio jurídico ser reduzido a cálculos. Contudo, entende o autor que tal entendimento seria um equívoco, na medida em que os números apenas representariam as proposições sobre a colisão dos princípios. Assim, sua fórmula do peso estaria ligada ao discurso do peso. Para o autor, a fórmula do peso “não é uma alternativa ao argumento moral, mas uma estrutura de argumentação jurídica e moral”. Cf. ROBERT ALEXY, “Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade”, op. cit., pp. 823 e 827.