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O avanço da compreensão da dignidade da pessoa humana no século XIX e os

CAPÍTULO II – A NATUREZA DOS DIREITOS SOCIAIS

3. Direitos sociais como concretização da dignidade da pessoa humana

3.1. O avanço da compreensão da dignidade da pessoa humana no século XIX e os

Tamanha é a importância do princípio da dignidade da pessoa humana na história dos direitos fundamentais que Jorge Miranda afirma ser “inseparável” sua compreensão nesta seara, seja como “um valor, um princípio, um metaprincípio”111. De fato, quer na expressão dos direitos de liberdade, quer na elevação da condição humana através do oferecimento de direitos sociais, não há como negar que a adoção pelo Estado, ou melhor, a formação do Estado com base nesta orientação é fruto de um valor supremo e universal que tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana112.

Mesmo sem se distanciar do enfoque do presente trabalho, já que a história aprofundada da dignidade da pessoa humana remeteria a um amplo estudo que não se justificaria nos limites deste tema, há de se perceber os contornos sociais alcançados pelo princípio da dignidade da pessoa humana após o século XVIII, sobretudo com o pensamento de Kant. Neste sentido, partindo da premissa que as pessoas não teriam valor, mas sim

110 Acerca da garantia jurídica a bens reconhecidos como fundamentais pela concretização da dignidade da pessoa humana, aos quais a Constituição atribui uma “protecção máxima, forte e estável”, cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais..., op. cit., p. 309.

111 Cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, op. cit., p. 78.

112 Segundo Paulo Otero, apesar de a dignidade da pessoa humana constituir a base do sistema constitucional de direitos humanos e dos correlativos deveres, há graus diversos de “conexão material entre os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana”, razão pela qual há direitos com maior proximidade e relevância em face do princípio em análise. Nesta perspectiva, distingue o autor dois tipos de direitos ligados à dignidade da pessoa humana, apontando, primeiro, aqueles que seriam “essenciais” à dignidade humana, e, segundo, aqueles que seriam “complementares” à dignidade da pessoa humana. Assim, na categoria do direitos e deveres essenciais, Paulo Otero inclui três grupos distintos, incluindo “os direitos e deveres pessoais”, “os direitos e deveres sociais” e “os direitos e deveres políticos”, revelando que a marca dos direitos fundamentais, à luz da dignidade da pessoa humana, tem a ver com sua relevância para a existência humana. Cf. PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, op. cit., pp. 572/574.

dignidade113, o autor alemão elevou o pensamento social acerca da temática, considerando que a dignidade não se resumiria ao conteúdo romano do termo dignitas114. Antes, porém, como ressalta Jorge Reis Novais, a dignidade consistiria no resultado das conquistas sociais alcançadas com base no alargamento a todos os cidadãos do “estatuto e dos privilégios outrora reservados só a alguns”115.

É exatamente por conta desta ampliação de entendimento acerca do valor e relevância da pessoa humana, segundo o qual cada indivíduo deve ter autonomia116 e tratamento de igual forma, independente da origem, classe social e ocupação, que as condições sociais de vida passaram a ser alvo de preocupação e responsabilidade do Estado, ainda que de forma tímida no século XIX.

De qualquer forma, o reflexo da dignidade da pessoa humana vem a ser perspectivado com o indivíduo sendo considerado como finalidade do Estado. A partir de então, uma série de outras transformações foram sentidas, nomeadamente no que concerne à regulação do trabalho operário, melhoramento das condições sanitárias e, mais

113 Após estabelecer o indivíduo como fim em si mesmo, Kant, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes de 1785, assenta que tudo teria “ou um preço ou uma dignidade”, sendo que somente a humanidade, “enquanto capaz de moralidade”, seria a única detentora de dignidade. Cf. IMMANUEL KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tradução de Paulo Quintela, Lisboa, Edições 70, 1995, pp. 77 e ss. Neste ponto, importante fazer o registro do pensamento de Giovanni Pico Della Mirandola, para quem a “natureza indefinida” do homem o diferenciava das demais espécies da criação divina, permitindo-lhe ser o “árbitro e soberano artífice” de si mesmo. Para o autor renascentista, o poder de escolha era inerente ao homem, cuja liberdade teria sido deixada na própria criação divina. Cf. GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a dignidade do homem, Edição Bilingue, tradução de Maria de Lurdes Sirgado Ganho, Textos Filosóficos, Edições 70, 1989, pp. 51/53.

114 Segundo Jorge Reis Novais, a noção de dignitas, na Roma antiga, estava relacionada ao status ocupado por alguém em razão de um “estatuto pessoal superior”, exigindo-se, por tal circunstância, uma posição de respeito em face do demais. Cf. JORGE REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana, Vol. 1,

Dignidade e Direitos Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2015, p. 34. No mesmo sentido, cf. INGO

WOLFGANG SARLET, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de

1988, 10ª ed. rev. atual. e ampl., Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2015, pp. 33 e ss. De se

registrar, embora o conceito de dignidade advenha, sobretudo, do século XVIII, que a compreensão do homem já no início do Cristianismo, à imagem e semelhança de Deus, conferia-lhe, como reconhece António Truyol y Serra, um “resplendor divino”. Segundo o autor, “pela sua alma espiritual e imortal, o homem converte-se em pessoa, ser dotado de valor próprio, de dignidade intrínseca”. Cf. ANTÓNIO TRUYOL Y SERRA, História da Filosofia do Direito e do Estado, 7ª edição, tradução portuguesa de Henrique Barrilaro Ruas, Madrid, Alianza Editorial, S.A, 1982, p. 194.

115 Cf. JORGE REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana, Vol. 1, op. cit., pp. 36/37.

116 Ao consignar que a dignidade é responsável pelo respeito à liberdade da pessoa, por sua autonomia, Jorge Miranda elenca vários dispositivos das Constituições portuguesa e brasileira que refletem esta força na proteção dos direitos fundamentais. Cf. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais nas Constituições de Portugal e do Brasil”, op. cit., p. 516.

profundamente, com o alargamento do sufrágio, ocasião em que o indivíduo passaria a exercer sua autodeterminação e autonomia.

Inobstante as alterações já sentidas no século XIX, fruto da incidência da nova corrente de pensamento que buscava a materialização da dignidade da pessoa humana, tem-se, contudo, que somente com a positivação do princípio nas Cartas Constitucionais do século XX foi que este valor absoluto passou a regular com mais determinação as diversas relações do indivíduo. Isto decorreu, sobretudo, em face do tratamento dispensado pelo Estado Social 117, o qual, agora, passou a ser orientado pelo indivíduo como finalidade em si mesmo, compreendendo-se a dignidade como garantia no melhoramento das condições de vida118.