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CAPÍTULO II – A NATUREZA DOS DIREITOS SOCIAIS

2. Direitos sociais como direitos fundamentais

O processo de reconhecimento dos direitos fundamentais é algo que avança no curso do tempo. Numa perspectiva inicial, vê-se que os anseios sociais, em primeira ordem, buscavam a libertação das amarras e abusos do Estado, o qual não conhecia regras e limites. Esta circunstância, obviamente, impunha não apenas uma alteração de perspectiva do Estado, mas sobretudo uma mudança no respeito à pessoa humana.

86 Numa perspectiva da obra de Norberto Bobbio sobre a concepção dos direitos fundamentais, Fernando Luiz Ximenes Rocha aborda os direitos de liberdade, num primeiro momento, como oponíveis ao Estado, sendo que, após a Revolução Industrial, as movimentações e participações populares conduziram ao nascimento dos direitos sociais. Cf. FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, “Norberto Bobbio e os Direitos Humanos”, in Política e Direito em Norberto Bobbio: Luzes a liberdade, a igualdade, a democracia e a

república, pp. 131/149, Florianópolis, Conceito Editorial, 2014, p. 135.

87 Cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrático, op. cit., p. 17.

88 Cf. JORGE PEREIRA DA SILVA, Deveres do Estado de Proteção de Direitos Fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares, Lisboa, Universidade Católica

Como decorrência deste processo, os direitos de liberdade afloraram como conquista indissociável do Estado Liberal, disseminando-se como verdadeira marca revolucionária. Afinal, como afirmou Benjamin Constant, a liberdade moderna caracterizava- se pelo direito de ir e vir, dispor, escolher, enfim, não ser limitado senão pelas leis que regem a sociedade em geral89.

Em todo caso, a ampliação dos valores decorrentes da dignidade da pessoa humana manteve ínsita a necessidade de alargamento dos direitos a serem protegidos e respeitados pelo Estado, uma vez que apenas o formal reconhecimento dos direitos de liberdade não alcançava de forma universal e plena todos os indivíduos. Passou-se a reconhecer, portanto, que haviam outras necessidades do indivíduo que reclamavam o mesmo nível de proteção que os direitos de liberdade receberam, inclusive como forma de oportunizar o exercício amplo e a fruição plena dos referidos direitos.

Conforme já se teve oportunidade de analisar por ocasião da evolução do Estado, a normatização dos direitos sociais no decorrer do tempo, desde sua positivação em leis ordinárias nos finais do século XIX até a constitucionalização da matéria na primeira metade do século XX, decorreu, em geral, do processo de alargamento do sufrágio como instrumento que possibilitou a representação das massas perante os setores decisórios do Estado90. Neste contexto, alguns dos direitos sociais, especialmente os ligados ao trabalho, educação e saúde, passaram a ser tidos como indispensáveis à existência humana, já que eles seriam fundamentais na elevação da condição de vida, permitindo ao indivíduo o acesso a outros direitos.

Contudo, este não é, nem nunca foi, um tema pacífico, havendo, como adverte Jorge Miranda, fortes discordâncias quanto à compreensão dos direitos sociais como fundamentais, em especial por considerar que os direitos sociais teriam natureza diversa dos direitos de liberdade, o que permitiria ao legislador ampla margem de escolha sobre sua contemplação91. Neste sentido, em sua visão acerca dos direitos fundamentais, Carl Schmitt 89 Cf. BENJAMIN CONSTANT, op. cit., p. 77.

90 Cf. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional..., op. cit., p. 114.

91 Cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, op. cit., p. 122. Na visão de José

Casalta Nabais, o alargamento infinito dos direitos sociais acaba por banalizar os direitos fundamentais, ao invés de os fortalecer, o que seria uma “tendência para a panjusfundamentalização. Cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, in Revista de Direito Público da

reconhecia como detentores desta natureza especial apenas os direitos de liberdade, os quais seriam “anteriores e superiores” ao próprio Estado92.

Nesta perspectiva, ou seja, atribuindo aos direitos de liberdade uma posição de precedência e supremacia sobre a realidade do Estado, o autor alemão entendia que o Estado não teria qualquer margem de deliberação sobre a matéria, cabendo-lhe, tão somente, o reconhecimento dos direitos e a devida ação protetiva em favor do indivíduo. Assim, constituiriam os direitos de liberdade os únicos direitos fundamentais, pelo que estes se posicionariam exclusivamente como direitos de defesa em face do Estado.

Por sua vez, qualificando-os como “direitos socialistas” a prestações por parte do Estado, Carl Schmitt entendia ser um erro reconhecer a natureza jusfundamental dos direitos sociais, argumentando que estes seriam completamente diversos, na medida em que seriam limitados, relativos e condicionados. Ante estas características, concluía Schmitt que a estrutura lógica e jurídica dos direitos sociais seria contraposta aos autênticos direitos fundamentais93.

A visão de Schmitt, embora bem argumentada filosoficamente, carece de uma maior contemplação histórico-jurídica. Em verdade, a importância de cada um dos direitos na elevação da condição humana - que justifica sua natureza jusfundamental - não está simplesmente relacionada à posição deste direito em face do Estado, mas sim à atuação e finalidade do Estado Moderno frente ao indivíduo. Assim, por conta do primado da dignidade da pessoa humana, não é mais o indivíduo que vive e atua em função do Estado, mas sim o Estado que existe e se legitima na medida em que atua em função do indivíduo94.

Economia – RDPE, pp. 61/95, Ano 6 - n. 22, abril/junho, Belo Horizonte, Fórum, 2008, p. 74.

92 Cf. CARL SCHMITT, Teoría de la Constitución, 1ª edición – 1982, 2ª reimpresión, Alianza Editorial,

Madrid 1996, p 169.

93 Cf. CARL SCHMITT, op. cit., p. 174.

94 Para Jorge Miranda, os direitos de liberdade e os direitos sociais “tem a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana”, sendo este princípio o responsável por conceber a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado”. Cf. JORGE MIRANDA, “A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais nas Constituições de Portugal e do Brasil”, in Liber Amicorum em Homenagem ao Prof.

Doutor João Mota de Campos, Coord. Antonio Pinto Pereira; Henrique Sousa Antunes; Manuel de Almeida

Sendo esta, portanto, a lógica da natureza jusfundamental, parece razoável aceitar que tanto os direitos de liberdade quanto os direitos sociais ocupam posição de primazia perante do Estado, já que os valores inerentes à dignidade da pessoa humana exigem uma postura do Estado que atenda às necessidades mais básicas do indivíduo, sem as quais não haverá que se falar em vida digna95. Assim, tanto os direitos de liberdade quanto os direitos sociais, na qualidade de direitos fundamentais, configuram normas cujo destinatário é o Estado96, a quem cabe zelar pelo seu efetivo cumprimento.

Ademais, o conceito adotado por Schmitt sobre os direitos de liberdade, atribuindo-lhes um caráter de precedência e antecedência em favor do Estado, além de insuficiente para definir a questão, restringe-se a um argumento filosófico. Neste sentido, é de se observar que o próprio conceito de liberdade em muito variou no curso da história, podendo-se afirmar, através das observações de Benjamin Constant, que a concepção de liberdade para os antigos era totalmente diversa daquela buscada pelos modernos97, cujo alcance tem sido ampliado especialmente nos últimos 200 anos, sobretudo pela compreensão de que estes direitos estão a concretizar a dignidade da pessoa humana.

A visão do assunto sobre este prisma torna mais clara a questão, na medida em que a natureza jusfundamental do direito se justifica pela sua indispensabilidade à elevação da condição humana, o que tem avançado no curso da história, sobretudo a partir dos anos 70, do século XX98. É exatamente o reconhecimento normativo desta questão - em especial discernir seu status constitucional - que posiciona os direitos sociais como direitos fundamentais99. Sem elementos mínimos capazes de reduzir a desigualdade social e garantir a igualdade de fato entre pessoas, os direitos de liberdade restariam inacessíveis e indesfrutáveis, razão pela qual

95 Cf. GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 135.

96 Cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais…, op. cit., p. 57. 97 Cf. BENJAMIN CONSTANT, op. cit., pp. 77/79.

98 Numa dimensão do Direito Internacional, Maria Luísa Duarte adverte que foi no século XX que se deu o “salto qualitativo no modelo de proteção de direitos fundamentais”, saindo da esfera estadual para alcançar um plano internacional, inaugurando um processo, ainda que em ritmo diverso, de concretização dos direitos em diferentes povos. Cf. MARIA LUÍSA DUARTE, “O Modelo Europeu de Proteção dos Direitos Fundamentais – Dualidade e Convergência”, in Revista de Estudos Europeus, Ano I – Nº 1, janeiro – junho, pp. 31/42, Coimbra, Almedina, 2007, p. 31.

seriam os direitos sociais indispensáveis para exercício dos direitos de liberdade100.

Como se observa, analisando a natureza dos direitos à luz do caráter de indispensabilidade em face da existência humana, vê-se claramente que não há como dissociar os direitos sociais e os direitos de liberdade, haja vista a interligação inevitável e incontornável entre ambos101. Por tal razão, Robert Alexy reconhece que o ponto crucial do reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais reside no próprio direito de liberdade102, haja vista que sem a possibilidade efetiva de o indivíduo tomar decisões, seria impossível a fruição do valor da liberdade jurídica103.