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CAPÍTULO II – A NATUREZA DOS DIREITOS SOCIAIS

4. Relação entre direitos sociais e direitos de liberdade

O estudo da temática dos direitos fundamentais permite a conclusão segundo a qual as necessidades do indivíduo possuem relação direta com o “ser”, com a pessoa, de forma indivisível. A compreensão da impossibilidade existencial digna de um indivíduo com liberdade, mas sem igualdade, ou de uma pessoa com igualdade, mas sem liberdade, conduz ao inevitável reconhecimento de que a atenção em favor do indivíduo há de ser integral, alcançando as diversas fronteiras da vida humana, na medida em que o Estado deve agir “guiado pelo valor da justiça material”141.

Ao perceber esta situação de profunda ligação entre os direitos em causa, pode- se concluir que tanto os direitos de liberdade quanto os direitos sociais atuam em função do mesmo propósito, inexistindo relação de preferência ou primazia entre ambos. Em verdade, como adverte J.J. Gomes Canotilho, existe “uma relação indissociável” entre estas esferas de direitos142, sem a qual a oferta de uns direitos desacompanhada da proteção efetiva de outros inviabiliza o desfrute de quaisquer deles, tornando a vida humana limitada em seu conjunto.

141 Cf. INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais..., op. cit., p. 63.

Sem necessidade de maiores alongamentos acerca da relação intrínseca entre liberdade e igualdade, já que a matéria recebeu atenção específica em tópicos anteriores, importa observar, neste momento, que a materialização destes princípios em muito acontece através da garantia, proteção e promoção dos direitos de liberdade e sociais. Assim, longe de enfrentarem relação de distanciamento, diferenciação ou “contraposição”143, os direitos fundamentais não devem ser classificados internamente pelo suposto grau de preferência para a vida humana, mas sim em função da área de atuação que cada um alcança na elevação da existência do homem.

Nesta perspectiva, inexiste, ao certo, como reconhece Rui Medeiros, uma superioridade interna entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, nomeadamente porque ambos tem por fundamento e irradiam a materialização da dignidade da pessoa humana, não havendo como uns serem mais notáveis ou importantes que outros144. O que há, em verdade, é a necessidade individual de cada pessoa, num determinado espaço de tempo, frente a determinadas circunstâncias145.

Assim, se para uns a ofensa à dignidade decorre de uma privação injusta e ilegal de liberdade, é este direito fundamental que carece de proteção e exigência perante o Estado, porquanto é a privação do direito de ir e vir que está a limitar sua condição humana. Já no caso de uma pessoa que está a sofrer uma privação de saúde, por total desassistência estatal, é esta necessidade fundamental que precisa ser suprida, sob pena de experimentar o indivíduo uma condição degradante.

143 Ao perspectivar o tema, Rui Medeiros adverte para a inexistência de contraposição de ideias quando o estudo se trata dos direitos sociais e os direitos de liberdade. Para o autor, “a criação de condições para uma existência condigna” não se restringe à ideia de “igualdade social ou de solidariedade”, estando, em verdade, “igualmente orientada para a efetivação das liberdades fundamentais”. Cf. RUI MEDEIROS, “Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a diversidade”, op. cit., p. 660. 144 Nas palavras de Rui Medeiros, o sistema de direitos fundamentais, “num plano axiológico”, não permite

“a priori e em abstracto um primado dos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos sociais”. Cf. RUI MEDEIROS, “Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a diversidade”, op.

cit., p. 661.

145 Na visão de Jorge Miranda, os direitos de liberdade proporcionam uma garantia de “liberdade atual”, defendendo a vida imediata do arbítrio do poder, enquanto que os direitos sociais permitem uma “liberdade mais ampla e efetiva que se começa a realizar”, proporcionando a esperança de uma vida melhor. Cf. JORGE MIRANDA, “Estado Social, crise econômica e Jurisdição Constitucional”, in Revista

da Faculdade de Direitos da Universidade de Lisboa, Vol. LV – nº 1 e 2, Separata, pp. 375/403, Coimbra,

Note-se, em resumo, que em ambas as situações não há direito mais ou menos relevante, direito com maior ou menor grau de fundamentalidade do que outro. O que existe, sem qualquer dúvida, é uma necessidade específica de cada um que precisa receber a mesma atenção do Estado, embora, obviamente, a atuação estatal exija a adoção de medidas diversas para o enfrentamento adequado de cada uma das carências.

Esta constatação remonta à conclusão inicial, segundo a qual os direitos sociais existem para proporcionar igualdade fática, a fim de que o indivíduo possa autonomamente exercer sua liberdade de forma plena146. Neste paralelo entre liberdade e igualdade, Canotilho ressalta que os direitos sociais pressupõem uma “liberdade”, enquanto que os direitos associados à liberdade apontam para uma “igualdade real”147. Haveria, portanto, uma indissociável ligação entre a “liberdade igual” e a “igualdade real”.

Na visão de José Casalta Nabais, todos os direitos fundamentais estariam a serviço da liberdade148, inclusive os direitos políticos e os sociais. De fato, a considerar o próprio fundamento de existência dos direitos sociais e de liberdade como fundamentais, de logo se apercebe que não haveria distinção quanto à natureza dos mesmos, pelo que o Estado teria o dever de respeitá-los indistintamente149.

A diferença, portanto, gravitaria em função da medida a ser buscada, o que não significa qualquer vantagem ou desvalor de qualquer dos direitos fundamentais. Assim, na visão de Jorge Miranda, enquanto os direitos de liberdade estariam voltados diretamente para a proteção contra ofensas do Estado, despertariam no indivíduo o “direito de agir” contra a “agressão”. Por sua vez, os direitos sociais, situados na perspectiva da indispensável atenção devida ao indivíduo para o melhoramento de sua condição de vida, albergariam um “direito de

146 Na visão de Canotilho, a “liberdade-igual” pressupunha uma ordem “jurídico-constitucional de reciprocidade”. Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, “Metologia fuzzy e camaleões normativos na problemática actual dos direitos econômicos, sociais e culturais”, in Estudos sobre direitos fundamentais, pp. 97/114, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 106.

147 Cf. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e teoria da constituição, op. cit., p. 480.

148 Cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais”, op. cit., p.

87.

149 Melhor analisando a perspectiva do dever do Estado, cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais..., op.

exigir” em face do Estado150.