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Dinâmicas entre trabalho, tecnologias e educação: as teses da sociedade da informação e do conhecimento em xeque

1 TECNOLOGIAS, TRABALHO E EDUCAÇÃO: A SOCIEDADE EM REDE E A CULTURA DIGITAL SOB AS FACES DE JANO

1.2 DO DETERMINISMO AO FETICHISMO TECNOLÓGICO A análise dos discursos atrelados à ideia de um determinismo

1.3.2 Dinâmicas entre trabalho, tecnologias e educação: as teses da sociedade da informação e do conhecimento em xeque

Na célebre trilogia36 da qual faz parte A Sociedade em Rede,

Castells (1999) anunciou a emergência de uma sociedade interconectada em que, graças ao adventodas tecnologias de informação e comunicação

36 A Trilogia A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, de Manuel

Castells, é composta de três volumes: A Sociedade em Rede (1999), O Poder da

(TIC), o informacionalismo levaria a uma maior produtividade baseada em conhecimentos, em escala global, e à superação do trabalho degradado pelo avanço tecnocientífico e hegemonia do trabalho complexo.

Nos extensos capítulos da obra, Castells anuncia – no âmbito da emergênciade uma nova economia de serviços unificada por um modelo mais rico de comunicação produtiva – uma revolução no mercado. Sinaliza, no contexto da sociedade informacional, a difusão de empregos qualificados com forte autonomia no trabalho, jornada de trabalho flexível, trabalhadores ativos reorganizados em relações sociais sob a forma de redes (e não mais de modo verticalizado) e modelos mais ricos de comunicação produtiva nas empresas, organizações, governos e cultura por meio da consolidação de valores comuns, unindo trabalhadores e gerência.

Por sua vez, e acompanhando a argumentação de Antunes e Braga (2011) sobre esse contexto emergente, temos que o modo como se apresenta esse modelo de sociedade pode ser analisado por outra perspectiva. Sob os auspícios do capital, as sociedades ditas “da informação” geram empregos nem sempre qualificados, empurrando os trabalhadores para o setor de serviços e para o trabalho informal, contrapondo a noção de informacionalismo anunciada por Castells (1999), na qual o trabalho degradado (característico das sociedades industriais e do modelo fordista de produção) seria superado pela difusão de empregos alicerçados na criatividade e na autonomia, características do trabalho ligado à concepção e planejamento de processos e produtos. Nessa perspectiva, nos alinhamos à crítica feita por Antunes e Braga (2011, p. 8) sobre esse modelo pretensamente hegemônico de informacionalismo, que “carrega consigo a promessa segundo a qual a inserção ocupacional emancipada no e pelo trabalho complexo é algo potencialmente acessível a todos”.

A predominante naturalização da ideia de sociedade da informação ganhou notoriedade entre organismos internacionais ligados ao financiamento da economia mundial e ao trabalho e, na perspectiva de Antunes e Braga (2011, p. 8),

nos governos tanto de países capitalistas avançados quanto semiperiféricos, tornando-se moeda corrente também entre os ideólogos e gestores globalizados do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das Organizações das Nações Unidas (ONU). Integrar essa nova

“utopia planetária” passou a ser questão de vida ou morte para esses governos submetidos ao jogo da concorrência global.

E serviu de argumento para a UNESCO considerar que a razão de ser da sociedade global da informação é alcançar um objetivo maior: “a construção, em escala global, de sociedades do conhecimento que possam ser fonte de desenvolvimento para todos, principalmente para os países menos desenvolvidos” (BINDÉ, 2007, p. 41. Grifos nossos). Sob o lema “Rumo às Sociedades do Conhecimento” e o pressuposto de que “a noção de sociedade da informação baseia-se nos avanços tecnológicos” (BINDÉ, 2007, p. 22), que tem aumentado a quantidade de informação disponível e a velocidade de sua transmissão, a UNESCO renova um ideário de que estamos em uma fase de transição sem precedentes – a representação de Jano como divindade da passagem – mascarando as permanências.

Nesse movimento, educação, trabalho e tecnologia entrelaçam-se no contexto da lógica histórica (THOMPSON, 1981, p. 58, grifos do original), na qual “não se trata da observação de fatos isolados em série, mas de conjuntos de fatos com suas regularidades próprias; da repetição de certos tipos de acontecimentos; da congruência de certos tipos de comportamento em diferentes contextos”. Considerando o pressuposto de sociedade do conhecimento dentro do conjunto de documentos formulados pelos organismos multilaterais, como a OCDE, o FMI, o Banco Mundial, dentre outros, bem como a filiação teórica dos autores que fundamentam esse ideário, temos a reprodução de consensos já presentes em autores do mundo empresarial37 pela UNESCO, que

reafirma as significativas “mudanças resultantes da terceira Revolução Industrial – a das novas tecnologias”, que teria criado uma nova dinâmica no que se refere a evoluções constantes na formação de indivíduos e grupos. Opera-se, como se vê, um deslocamento crucial da relação

37 A expressão “sociedade do conhecimento” foi utilizada pela primeira vez por

Peter Drucker, em 1969, em seu original The Age of Discontinuity: Guidelines to

our changing society. Ganhou notoriedade nos anos de 1970 e foi aprofundada

na década de 1990, coincidentemente ou não, com a difusão da internet e dos sistemas informáticos. Em 1998, no âmbito da Comissão das Nações Unidas sobre Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento, a expressão foi agregada por Mansell e When (1998).

capital-trabalho, retirando a centralidade do ser social nessa dinâmica e deslocando para as TD a responsabilidade por este processo “revolucionário”, esvaziando o conceito de revolução.

No mesmo sentido, nos discursos da sociedade do conhecimento, o trabalho, nas atividades ligadas às áreas de tecnologia da informação, é concebido quase como sinônimo de não trabalho, o que representam as duas faces do mesmo rei, tal qual o personagem mitológico Jano: de um lado, prometem ao trabalhador melhores condições na execução de suas atividades, mas, por outro, mascaram a apropriação dos resultados da inserção tecnológica nos processos produtivos, bem como a precarização, a exploração e as condições de desemprego tecnológico estrutural aos quais trabalhadores são submetidos ou a prolongação de jornadas de trabalho sem a respectiva remuneração.

Por sua vez, o ideário de sociedade do conhecimento, calcado na preponderância das TD, repercute em políticas educacionais para todos os níveis de ensino, que, por sua vez, repercutem nas condições de trabalho e na formação de professores, bem como na função social das instituições de ensino, dentre os quais a universidade. Em especial, na emergência da sociedade do conhecimento, a UNESCO dispensa atenção particular à educação superior, o que impacta diretamente no trabalho docente nas universidades. Além disso, a UNESCO defende a “liberalização dos serviços educativos” numa “forma de ‘mercado’ do ensino superior, em que os consumidores seriam os estudantes e os produtores, os professores” (BINDÉ, 2007, p. 154-155), desdobrado em questões de financiamento, de redes universitárias “por inventar” e das “novas” missões do ensino superior, entre as quais são elogiosas as práticas de privatização do ensino superior de alguns países com base em relatórios da OCDE, que criticam a despesa pública no ensino superior de toda a América Latina. Esse conjunto de ideias converge com a revisão de literatura acerca do trabalho docente na universidade, em um contexto de mundialização do ensino superior, mercantilização do conhecimento, bem como novas qualificações demandadas aos professores, evidenciando o caráter mercadológico e pragmático que a educação, as universidades e os professores passam a assumir, na perspectiva da sociedade do conhecimento baseada em tecnologia, que valoriza a flexibilidade, a criatividade, a polivalência, a capacidade de desenvolvimento de personalidades produtivas bem equipadas para a vida e o trabalho nesse modelo de sociedade (BINDÉ, 2007). Características essas que, conforme podemos evidenciar, estão presentes em diversas políticas educacionais (SILVA, 2015) e que coincidem com as

características dos trabalhadores desejáveis na “cultura do novo capitalismo” (SENNETT, 2006).

Outro elemento que nos diz respeito, no caso do trabalho docente na PG, é a necessidade dos sistemas educacionais desenvolverem indicadores para medir o conhecimento da “sociedade do conhecimento”, como meio de definir prioridades políticas. Para a UNESCO, é “aconselhável forjar, tanto quanto possível, ferramentas de estatística que podem ser usadas para quantificar os conhecimentos, reunindo dados que não impliquem só variáveis econômicas” (BINDÉ, 2007, p. 337). A arquitetura discursiva (MILANEZ; SANTOS, 2009) dessa recomendação resume o conhecimento a um dado que possa ser quantificado e omite a quem interessa quantificar conhecimentos e quais interesses estão subjacentes a essa quantificação. Ao mesmo tempo, joga com a subjetividade no que se refere às estratégias para a quantificação do conhecimento – o que pode resultar em mecanismos de avaliação, regulação e controle tão criticados em nosso sistema educacional, como a avaliação em larga escala e metas de produtividade em si mesmas.

Pela construção da UNESCO, a proliferação da informação por meio das redes informáticas nasce “do desejo de trocar conhecimentos através de uma transmissão mais eficiente” e permanece “presa ao tempo e ao utilizador” (BINDÉ, 2007, p. 25), justificando, assim, que a sociedade da informação se converta em sociedade do conhecimento pela simples liberação da circulação da informação – questão que, como já abordamos, é bastante problemática e se constitui fonte de disputa política. Nessa perspectiva, podemos pensar com Wolton (2007, p. 138) a crítica ao ideário existente na sociedade e renovado pela UNESCO, que vê nas redes informacionais a possibilidade de, no século XXI, partilhar conhecimentos de forma homogênea e livre entre diferentes sociedades, consubstanciando um novo tipo de desenvolvimento “inteligente”, humano e sustentável.

De onde vem esse mito de um sistema de informação gratuito e infinito, livre de todas as problemáticas de poder, inverdades e erros? De onde vem essa representação de um cidadão ocidental completamente curioso, esperando apenas estar equipado com um terminal para se tornar um tipo de sábio? [...] como louvar essa abundância de informações oferecida a todos gratuitamente, e esquecer que, há uns trinta anos, os economistas viam na acumulação da informação a nova origem da riqueza e do poder? Como

explicar esta disjunção: de um lado, a informação, livre de todo o poder e toda hierarquia nas redes e, de outro lado, a informação como nova origem da hierarquia econômica, política e social?

Praticadas as elisões acerca das relações sociais de produção (sob a lógica do determinismo tecnológico) e distorcidas as concepções de conhecimento (e suas consequências), o ideário de sociedade de informação de Castells converge para o de sociedade do conhecimento perpetrado pela UNESCO, que desnuda uma sociedade igualitária e promissora para todos, em que a educação e as TD têm papel fundamental. Consubstancia, dessa forma, o convencimento de que seguir as recomendações expressas é o melhor rumo para as sociedades em desenvolvimento, constituindo-se como uma armadilha ideológica à espreita da continuidade do modo vigente de produção das relações sociais e como forma de neutralizar a luta de classes.

1.4 DA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO À CULTURA DIGITAL: