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Novos elementos da cultura digital: a ‘ameaça’ dos nativos digitais e novas demandas colocadas ao professor

1 TECNOLOGIAS, TRABALHO E EDUCAÇÃO: A SOCIEDADE EM REDE E A CULTURA DIGITAL SOB AS FACES DE JANO

1.4 DA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO À CULTURA DIGITAL: A RELAÇÃO TRABALHO-EDUCAÇÃO

1.4.1 Novos elementos da cultura digital: a ‘ameaça’ dos nativos digitais e novas demandas colocadas ao professor

É consenso que os últimos anos do século XX foram prodigiosos no que se refere à expansão e aprimoramento das TD e sua inserção em diferentes contextos do cotidiano, movimento que se intensifica a partir da consolidação da Web 2.0, nos últimos anos da década passada. Em conjunto, temos vivenciado a ampliação da comunicação e do tráfego de informações via internet, o que contribui para a emergência da cultura de conectividade e mobilidade (SANTAELLA, 2007; SANTAELLA; LEMOS, 2011). Sobretudo nos grandes centros urbanos, a partir da convergência das mídias (JENKINS, 2008; SANTAELLA, 2007), dispositivos móveis que passaram a agregar funções antes dispersas em dispositivos diferentes ficaram mais acessíveis a uma parcela maior da população nos últimos anos. Um número maior de serviços também está à disposição dos indivíduos, impulsionado, por suposto, pelo modo de produção vigente no qual a cultura digital se desenvolve: não é coincidência que enquanto a cultura digital se expande, algumas das corporações mais valiosas do mundo sejam do ramo de tecnologia, como a Microsoft, o Google e o Facebook; nem que nos últimos anos a lista de pessoas mais ricas do mundo seja frequentada por empresários da área – em 2015, os dois homens mais ricos do mundo foram, respectivamente, da área de informática (Bill Gates) e de telefonia móvel (o mexicano Carlos Slim).

No centro dessas questões, temos claro que uma parcela da população não dispõe de acesso às TD e que as práticas culturais instauradas sob a cultura digital não podem ser consideradas homogêneas,

apesar do fetiche ou das representações sociais em torno das TD, como apreendido por Girardello (2008), sobretudo entre os jovens. Nesse sentido, o mercado de tecnologia explora, no âmbito da cultura digital, a emergência de uma sociedade interconectada e promissora em termos de vida social, de possibilidades de experiências partilhadas, de ser e existir nessa ambiência, nos mesmos moldes dos discursos da sociedade da informação e do conhecimento. E, nessa nova ambiência, os mais jovens têm papel de destaque.

Em 2001, em um artigo intitulado Digital Native, Immigrant Native, Marc Prensky descreveu, utilizando a linguagem como analogia, a emergência do que chamou de “nativos digitais”: os (então) jovens nascidos a partir de meados da década de 1980, que falariam a linguagem digital por terem crescido e estarem imersos nessa cultura tecnológica. Já os nascidos antes dessa época, em meio a uma cultura analógica, seriam os “imigrantes digitais”: como qualquer imigrante, mesmo que se esforçassem para falar a nova língua, manteriam seu “sotaque” ligado à cultura em que nasceram/cresceram.

Embora Prensky estivesse se referindo a um grupo específico de estudantes de classe média norte-americana, suas ideias ganharam repercussão no Brasil, mesmo com as discrepâncias de trajetórias escolares, sociais e culturais relativas às possibilidades de acesso e inclusão digital/tecnológica da virada do século entre jovens brasileiros e norte-americanos. Um vídeo que circulou pela internet40 foi utilizado em

reuniões e formações pedagógicas de professores, que experienciamos, evidenciam esse movimento. No vídeo, uma criança desafia e intimida os professores com a pergunta: “você vai ser meu professor em uma escola?”, “você sabe usar um computador?”. E, em seguida, lança o desafio: “se você não estiver na internet [...] você não pode ser meu professor”, sugerindo que o professor que não está conectado “dê espaço para alguém que saiba usar a internet”. O tom intimidador aos professores é a expressão, na nossa perspectiva, de um paradigma que pressiona e tensiona o trabalho docente, sob a emergência do que se convencionou

40 O vídeo original You can't be my teacher foi publicado no YouTube em 2009,

no auge da discussão sobre a emergência de nativos digitais nos sistemas escolares, em razão da consolidação da Web 2.0 como um espaço novo e amplo de possibilidades. A versão legendada em português foi publicada em 2010. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=R1KaIH1_YbM>. Acesso em: 22 out. 2014.

chamar “nativos digitais” e que colocam em pauta a necessidade de novas demandas aos professores sob pena destes, como veiculado no vídeo, terem de ceder espaço a outros.

Os “nativos digitais” representam, segundo Prensky (2001), a primeira geração que cresceu com as novas tecnologias digitais: utilizam o tempo todo – e muitas vezes ao mesmo tempo – os mais variados tipos de equipamentos e recursos digitais, sendo caracterizados como multitarefas. Mais do que isso: ao interagirem com tecnologias e crescerem em um ambiente ubíquo, essas gerações estariam pensando e processando as informações de um modo diferente, teriam outras estruturas de pensamento e, de acordo com o autor, até mesmo fisicamente suas mentes já poderiam ter sido modificadas. Uma das principais linhas de argumento de Prensky sobre o declínio do sistema educacional baseia-se no “jeito tradicional” de dar aulas dos professores “imigrantes digitais”, em vez de utilizar recursos mais atrativos para os jovens, como softwares e games. O argumento de que os jovens aprendem muito mais com jogos digitais do que na escola é retomado por Prensky em 2010 no seu livro com o sugestivo título Não me atrapalhe, mãe – Eu estou aprendendo! – Como os videogames estão preparando nossos filhos para o século XXI – e como você pode ajudar!, uma espécie de guia para pais e educadores que se preocupam ‘demais’ com jovens que passam muito tempo conectados. Não por acaso, Prensky, além de professor universitário, era diretor de uma empresa que desenvolvia e comercializava games e softwares educativos. Os pressupostos de Prensky – ampliados e reverberados por uma gama de publicações posteriores – não são fator determinante, certamente, para sua incorporação nos processos educativos. Mas ajudaram a popularizar a importância da convivência com a cultura digital em contextos educativos e a legitimar tal proposta, trazendo para os processos de trabalho dos professores variados artefatos tecnológicos. Tal questão nos é importante porque a inserção de uma nova tecnologia, como a digital, nos processos de trabalho, pode causar uma alteração em maior escala do que simplesmente (re)aprender determinadas tarefas (BIANCHETTI, 2008).

Longe de ser consenso, discussões atreladas à emergência de nativos digitais têm repercutido atualmente em sociedades com intenso uso tecnológico. Consideramos questionáveis, por exemplo, argumentos sobre a mudança na estrutura cerebral dos nativos digitais, bem como a determinação de uma categorização por faixa etária que define, de forma homogênea, os usos das diferentes TD, sem levar em consideração outras experiências culturais e, principalmente, condições sociais e econômicas

que possibilitam o acesso – condição para a inclusão – digital. Além disso, a técnica temporal de ser multitarefa e também as atividades de jogos de computador, por exemplo, não trazem, segundo Han (2015), nenhum progresso no processo civilizatório: ao contrário, trata-se de um retrocesso, pois geram uma atenção ampla, porém, rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem que, na natureza, é obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades (caçar e não ser caçado, por exemplo). O autor complementa que “as mais recentes evoluções sociais e a mudança na estrutura de atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem” (HAN, 2015, p. 32).

De modo algum a discussão que fazemos aqui visa se opor ou ‘resistir’ à inserção de TD nos processos educativos, o que seria negar sua potencialidade cultural e educativa e negar a própria História, visto que, sendo tecnologias da inteligência, uma vez inseridas na cultura, permanecem. A questão central é discutir como colocar essas tecnologias a serviço da “melhoria” da qualidade dos processos de ensino e da aprendizagem – ainda que essa noção de melhoria seja um tanto vaga – e, ao mesmo tempo, não deixar em segundo plano, sob o aspecto do trabalho docente, as condições e circunstâncias nas quais ocorre esse movimento. Nem desconsiderar as consequências inter e intrageracionais que ocorrem quando as mudanças são profundas, amplas e rápidas, à velocidade de um “clique” – instaurando novos processos comunicacionais que constituem as múltiplas identidades dos sujeitos (SANTAELLA, 2010).

Um dos desdobramentos desse movimento para o âmbito da educação e para o trabalho docente em geral é que, para acompanhar o ritmo das inovações tecnológicas que conformam a sociedade, as políticas educacionais – sobretudo com a abertura de nichos de mercado para a produção e comercialização de tecnologias empregadas na educação – vêm enfatizando o uso das TD para as mais diversas finalidades. Por meio da preocupação (em geral, procedente) com as inúmeras possibilidades de emprego das TD nos processos educativos, costuma-se enfatizar a necessidade dos professores desenvolverem determinadas competências no e pelo uso das tecnologias, sob a alegação de que elas carregam as potencialidades para transformar a Educação (SANCHO; HERNÁNDEZ, 2006).

Essas competências digitais e midiáticas dizem respeito à autonomia e ao domínio das informações, dois dos três elementos centrais (juntamente com velocidade) identificados por Wolton (2007, p. 88) para que as TD se convertam em fontes de informação que gerem conhecimento. “O acesso a ‘toda e qualquer informação’”, pondera o

autor, “não substitui a competência prévia, para saber qual informação procurar e que uso fazer desta”. Essa questão é relevante para a Educação, pois pressupõe o essencial processo de mediação nas práticas pedagógicas, uma vez que o acesso direto não muda em nada a hierarquia dos conhecimentos: a questão central é o antes e o depois da informação. Além disso, “há certa bravata em acreditar que é possível se cultivar sozinho, por pouco que se tenha acesso à rede” (ibidem). Nessa perspectiva, reconhecemos o papel de mediação entre informação e conhecimento desempenhado pelo professor no contexto da cibercultura e da cultura digital. E nos alinhamos a Wolton ao postular que a força de emancipação, nessa ambiência, não consiste em suprimir o professor como um intermediário do processo de aquisição do conhecimento, mas reconhecer seu estatuto de mediador.

A esse “novo” papel mediador, a cultura digital, concomitantemente, coloca novos desafios ao professor no que se refere ao domínio das tecnologias e sua utilização, num contexto de convergência midiática e tecnológica (JENKINS, 2008). É nesse sentido que Rivoltella (2005) estrutura o conceito de competências midiáticas (e tecnológicas), que dizem respeito a um conjunto de elementos instrumentais e metodológicos capazes de fornecer ao professor uma “caixa de ferramentas” onde, além da análise do texto e do consumo, estejam integradas metodologias para leitura dos contextos; competências para o planejamento da intervenção formativa; técnicas para gestão da aula e dos grupos; competência de tutoria e avaliação; conhecimento das diferentes linguagens midiáticas e dos processos dos meios; e metodologias e práticas didáticas. Atrelado a esse conceito, na ambiência da cultura digital e da convergência midiática, emerge o conceito de alfabetização midiática, que se constitui como uma outra demanda aos professores. Nesse sentido, Fantin (2008) centra sua preocupação com o que significa ser alfabetizado no século XXI e os desafios ao professor, que precisa imergir na cultura e dominar os códigos de diferentes linguagens, os meios e as tecnologias disponíveis.

A ideia de alfabetização, numa perspectiva freireana, remete à constatação de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra escrita. Apesar desse entendimento, o termo que designa aprendizagem da leitura- escrita refere-se, prioritariamente, ao processo de aquisição do código alfabético, e não a uma função social da escrita. Nesse sentido, de acordo

com Fantin (2008), a palavra literacy41 e suas variáveis, literacia e letramento, são mais utilizadas para designar, para além da apropriação dos códigos alfabéticos, a função social da escrita. Por sua vez, o termo multiliteracies refere-se a uma ampliação do conceito de literacies, englobando gramáticas audiovisuais e digitais e envolvendo um certo nível de compreensão leitora e produtora nessas dimensões pelas quais circulamos e que transcendem a escrita e envolvem representações visuais, musicais, corporais, digitais e outras (FANTIN, 2008). Esse parece ser o termo mais adequado para designar o processo de alfabetização (no sentido de dimensão social), que dá conta de todas as TD e que supera a limitação que os termos “alfabetização” e “letramento” possuem, para dar conta de todas as novas linguagens, novas ferramentas e novas tecnologias que a cada momento vão surgindo.

No mesmo sentido, Rivoltella (2005) argumenta que, em uma ambiência de cultura digital, em que os jovens têm, na perspectiva do autor, acesso aos meios e às tecnologias cada vez mais cedo, a tarefa dos educadores não é mais simplesmente promover um comportamento crítico dos sujeitos frente aos meios – a capacidade de conhecerem as linguagens dos meios com os quais se relacionam – mas de transformar a autonomia do uso em competência, pois saber navegar na internet é diferente de saber o que estamos fazendo quando navegamos. Do mesmo modo, os sentidos culturais se organizam cada vez mais a partir das TD, protagonistas e mediadoras entre os sujeitos e a cultura mais ampla, modificando as possibilidades de interação (FANTIN, 2008). A questão do desenvolvimento de competências tecnológicas e midiáticas para atuar em diferentes ambiências permeadas por tecnologias, embora se conjuguem como demandas novas aos professores, não necessariamente representam um aspecto negativo ao trabalho docente. Deslocando a questão do plano tecnológico para o plano social, não se trata da necessidade de qualificar-se para o trabalho docente no âmbito da cultura digital – o que incorre na ideia de eterna obsolescência humana, imbricada nos discursos de “formação ao longo da vida” (RODRIGUES, 2008).

41 De acordo com Fantin (2008), a literacy refere-se à condição que o sujeito

adquire ao, além de saber ler e escrever, apropriar-se da dimensão social da escrita, incorporando-a em seu viver. Sua forma no plural, literacies, é utilizada pelo reconhecimento de que diferentes tecnologias de escrita criam e exigem diferentes literacies.

Trata-se muito mais das condições em que são exigidas essas qualificações e de que modo elas ocorrem.

É nesse sentido que compreendemos a inserção das TD no trabalho docente na PG como questão central em nossa investigação. Ao serem incorporadas (se forem) de modo compulsório como ferramentas nos processos de trabalho, as TD perdem seu estatuto cultural e podem demandar uma série de esforços e de estratégias por parte dos trabalhadores tensionados, de um lado, pela cultura digital, e de outro, e principalmente, pelas novas exigências organizacionais para inserção das TD nos processos de trabalho. Sob esse aspecto, a introdução de tecnologias digitais nos processos de trabalho docente difere somente em termos de formatação, de modus operandi em relação a outros processos de trabalho que mudaram da base analógica para a digital. Apreender esse movimento contraditório, as condições em que ele ocorre e as repercussões que dele emergem são nossa tarefa nos capítulos que seguem.

2 O TRABALHO DOCENTE NA PG COM O USO DE TD: