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Capítulo I. DO SISTEMA JURÍDICO

1.5. Do direito natural ao neopositivismo ou “o novo direito

1.5.1. Do direito natural e a tributação

A primeira indagação que surge se encontra embasada na discussão se o direito é meramente posto, alinhando-se com a positivação, ou se é o justo, apresentando-se valorado, seja com a moral, seja com outro valor. Assim, o direito

Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 2. ed. rev. e aum. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 25-26, nota de rodapé nº 11).

43 ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 228.

44 De importância para o presente trabalho, é a aferição empreendida por Renato Lopes Becho do

consenso intersubjetivo na tributação, apoiando-se, de modo inequívoco, em dois pontos: o da Assembléia Nacional Constituinte, momento em que vários valores constitucional-tributários foram constitucionalizados, bem como na jurisprudência, que vem retratar, juridicamente, o consenso intersubjetivo ético aplicado ao direito, na mesma linha dos legisladores (v. Filosofia do direito

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justo é função de controle valorativo, submetido a critérios axiológicos, como o conceito de justiça.

Deste encontro, então, entre os elementos direito e justiça vai se ter a discussão entre o direito positivo e o direito natural ou jusnaturalismo. Nesse sentido, se tem que o direito, como dado cultural, não será encontrado na natureza ou se revelará alcançado pelos sentidos típicos.

Com relação à tensão aferível entre o direito natural e o positivo, três versões mais consistentes do direito natural hão que se verificar:

i.) Direito natural de origem divina

Estabelecem-se alguns elementos de relevância para a discussão entre direito positivo e direito natural, percorrendo: a) o problema da fonte, retratando a multiplicidade dos ejetores de normas e a decorrente instabilidade; b) a dificuldade presente no veículo ou suporte, na estrita referência às leis escritas ou não; c) referência temporal, na medida da existência de um direito atemporal ou imemorial. Nesses termos, afere-se que uma parcela do direito transcende a vontade do soberano, governante ou autoridade, apresentando como fonte aquilo que é divino e sobrenatural.

O direito natural, nesses moldes, teve um espaço de conformação e exposição na história, correspondente às mudanças trazidas pela Revolução Francesa, que, para sua sustentação e necessidade de afastamento da esfera de atuação das anteriores classes dominantes, clamava por um mecanismo dotado de maior objetividade e certeza das relações e normas, que veio a ser encontrada e reequacionada com o positivismo, com a evidente finalidade de afastar a concepção

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do direito de origem divina dos reis. É certo, contudo, que o direito natural de origem divina ainda hoje pode ser visualizado, como, por exemplo, ao se verificar dispositivos da Constituição do Irã45.

Pode-se, ainda, ter uma breve imagem da tensão entre o direito positivo, originado numa noção de autoridade, e as leis de um senso superior, distinto da autoridade, ao se percorrer a obra de Sófocles, Antígona. Nela, onde esta protagonista contrapõe um direito natural, de origem divina, presente no direito de enterrar o seu irmão morto, contra uma determinação posta pelo governante Creonte, de que o corpo do seu irmão, considerado um traidor da cidade, não poderia merecer os cuidados fúnebres46.

ii.) Direito natural de origem racional

45 Para o ponto, interessante aspecto pode ser aferido diretamente no artigo 1º da Constituição do Irã,

na consideração do direito natural de origem divina, na explícita menção ao Alcorão, como base mesma da República Islâmica do Irã: A forma de governo do Irã é de uma República Islâmica, apoiada pelo povo do Irã, com base em sua crença de longa data na soberania da verdade e da justiça do Alcorão, no referendo de Farwardin 9 e 10 no ano de 1358 do calendário solar islâmico, correspondente a Jamadi al-Awwal 1 e 2 no ano de 1399 do calendário lunar islâmico (29 de março e 30 de 1979), através do voto favorável de uma maioria de 98,2% dos eleitores, realizada após a Revolução Islâmica vitoriosa liderada pelo eminente Marji al-taqlid Ayatullah al-Iman Uzma Khumayni (Disponível em: <http://www.iranonline.com/iran/iraninfo/government/constitution-1.html>. Acesso em: 11 fev. 2013.).

46 Merece nota trecho do diálogo estabelecido entre Antígona e Creonte, no qual aquela sinaliza para

direitos que transcendem a estipulação normativa humana: “Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que tal édito tenha força suficiente para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!” (cf. SÓFOCLES. Antígona. Disponível em: <http://www.ingresso.ufu.br/sites/default/files/certificacao/ Teatro_%20Antigone_Sofocles.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2013, p. 30).

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Expõe Renato Lopes Becho47 que na tentativa de superar a explicação divina, ainda na Grécia, alguns, dentre eles Platão, trilhavam caminhos científicos, com o uso mesmo da dialética como método de verificação e alcance da realidade, na tradução do conhecimento por meio da razão. Em Platão, então, vai se ter que, em atendimento à visão vulgar de que é justo a prevalência do melhor sobre o pior, do mais forte sobre o mais fraco, o mais forte será a coletividade, que, de sua parte, deve prevalecer sobre o mais fraco, que são os interesses individuais.

Em Platão, ainda, tem-se que o direito natural é conhecido por meio da razão. Por sua vez, já em Aristóteles, aponta-se para a concepção dualista, com a coexistência do direito natural, a par do positivo, ao invés da monista, com o predomínio do direito positivo, em momento pós-aristotélico. Por sua vez, agora segundo Bobbio, é que se apresenta uma vinculação entre o objetivismo da teoria dos valores e o direito natural48, razão, ainda, para a promoção da divisão em direito natural em graus, com a nota certa de se apontar a importância maior ou não de vários temas: em primeiro grau – voltado, por exemplo, para a tutela da vida -; e em segundo grau – voltado para as demais instituições humanas49.

Importante e conclusivo aspecto é levantado, na obra de Renato Lopes Becho, na medida em que a razão tanto pode levar ao cumprimento do dever

47 Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 157.

48 Bobbio apresenta, com base em Aristóteles, dois critérios para distinção entre o direito natural e o

positivo: o primeiro, relacionado com a eficácia, em que o direito natural se apresentaria em toda parte com a mesma medida de eficácia; e o segundo, inaugurando o objetivismo da teoria dos valores para o direito natural, na medida em que este prescreveria ações cujo valor independeria do juízo subjetivo do agente – as chamadas “ações cuja bondade é objetiva” -, ao passo que o direito positivo estebeleceria ações que antes de serem executadas poderiam ser executadas, indistintamente de um modo ou de outro, mas, uma vez reguladas, só poderiam ser desenvolvidas da maneira prescrita. (O

positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 17).

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estabelecido conforme o direito natural, quanto conforme o direito positivo, assim, a razão é tida como um elemento neutro, seja na teoria dos valores, seja na teoria do conhecimento50.

iii.) Direito natural valorado

Tem-se que a influência da valoração é o elemento distintivo entre as principais correntes da jusfilosofia, que modernamente, ainda, defendem a vitalidade do direito natural, com tal versão, em que se confrontam as leis postas pelas autoridades instaladas no poder com o senso de justiça, ou de outro valor moral, estudado pela ética. Indicam-se, então, duas versões para o jusnaturalismo: a definitória, na qual o direito injusto contrastante com a moral não é autêntico direito; e a justificatória, na qual independentemente de chamar-se ou não direito, o direito posto contrastante com a moral não deve ser obedecido.

Ainda segundo o jusnaturalismo valorativo, há a distinção entre a versão forte, na qual qualquer violação da moral implica a perda do caráter de jurídico; e a versão tênue, na qual não seria qualquer violação da moral que diminuiria a obrigação de obediência ao direito. Um ponto de destaque é que, para essa versão, o direito é de acordo com os valores supremos de uma sociedade, identificado por meio do consenso social (justiça, liberdade, igualdade, ou outro).51

50 Diga-se, ainda, que a razão, na condição de elemento neutro, suportando tanto o direito natural,

como o positivo, habilita Kant a romper com a visão clássica do direito natural, que trazia a razão como seu fundamento. (BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 161).

51 O que se tem, mais uma vez em evidência, é que a relação entre o direito e a moral se revela como

um dos problemas fundamentais da filosofia do direito. Assim, nessa ordem de valores, por versão forte vai se ter na medida do confronto entre o direito positivo e o direito natural, e, assim, ao se colher a falta de correspondência entre ambos, pode-se concluir, por esta tese, que aquele nem mesmo pode ser considerado como direito. Por sua parte, para essa tese da versão fraca, uma lei do

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Relembra Renato Lopes Becho52, cuidando da terminologia, que em Goffredo Telles Junior53 vai se ter o conceito de ancilosamento das estruturas jurídicas, na qual o direito posto passa a ser discordante dos ideais apontados pela coletividade, e o direito natural, vem ser conceituado pela negativa, como aquele que não é artificial.

Compartilhamos, ainda, a premissa de que as fontes do direito são entendidas como os locais em que os julgadores, e mesmo os operadores do direito, numa consideração de multiplicidade de intérpretes, extrairão o fundamento para decidir um caso concreto. Esse fato, em remetimento ao direito natural de origem divina, vai ter fundamento na concepção divina, já o direito natural de origem racional vai ter fundamento nos usos e costumes, na doutrina, na legislação e nas decisões dos tribunais, que se mostram como as fontes clássicas de direito.

Mas qual seria a exata dimensão do direito natural? Em resposta, colhe-se que o direito natural, desde Aristóteles, deve ser visto como uma estrutura dual,

direito positivo que viesse a contrariar disposição de direito natural poderia até ser considerada direito, contudo, poderia ser descumprida, uma vez que não atenderia aspecto determinado de justiça, suficiente para aferição da moral das normas jurídicas. Emerge, por certo, inspiração na posição naturalista de São Tomás de Aquino que afere que pode haver discordância entre o direito natural e o direito positivo, sem que este perca seu caráter jurídico, o que seria aceitável até certa medida, pois, ultrapassado este limite de injustiça, o direito positivo perde sua juridicidade. (v. verbete “Moral e Direito”, in ALLAND, Denis e RIALS, Stéphane; tradução Ivone Castilho Benedetti; revisão técnica Márcia Villares de Freitas. Dicionário da cultura jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 1027).

52 Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.163.

53 Goffredo da Silva Telles Jr., neste ponto, cuida do direito natural, definindo-o pela negativa, na

medida em que por direito natural há que se entender aquele que não é artificial, apontando antes, ao descrever o fenômeno apontado do ancilosamento das estruturas jurídicas, que cada direito objetivo é dependente de um sistema ético de referência e que este, na sociedade, pode avançar, renovando- se e evoluindo, apresentando, contudo, em confronto o próprio direito objetivo, que estagnado, envelheceu. (Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 8 ed. rev. – São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006, p. 354-345).

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existindo suas normas locais e temporais (próprias, portanto, do direito positivo) e uma determinação ou conjunto de disposições superiores (próprias, por sua vez, do direito natural), não sendo, pois, absolutas. Assim, o resultado final da indagação é que o direito natural não subsiste às regras particulares dos diversos ordenamentos jurídicos nacionais, regionais, culturais ou jurídico-religiosos.

Contudo, há que ser dito que o direito natural não ficou imune à crise. Apontando-se, de início, que o direito positivo, por sua parte, acabou promovendo a alteração do núcleo do direito, enquanto fenômeno cultural, modernizando-o, em razão mesmo de fatores tecnológicos decorrentes, sobretudo, da Revolução Industrial, momento em que os homens passaram a demandar respostas objetivas e previsíveis. Então, o que se colhe, conclusivamente, é que não é na natureza que se vai localizar o fundamento sociológico e filosófico para o direito, mas, antes, na detenção do poder.

O que se tem, de fato, da relação entre o direito natural e o direito tributário, num primeiro momento, é que a raiz valorativa do direito sustenta a supremacia dos princípios, considerados como veículos normativos dos valores, sobre as regras, região em que podem ser situados uma série de tributaristas. Para tal, não se faz necessária a eleição de um valor supremo, bastando que destaque e explore a superioridade dos princípios, tomados como valores normatizados, com força decisiva e eficácia legal, o que dá ensejo aos cultores dos direitos humanos (lastreados em valores humanísticos, e não autoritários). Portanto, o que se afere é que entre a dimensão de direitos humanos e direitos naturais, o que emerge, de fato, é a complementaridade.

Por fim, alinhamos uma nota jurisprudencial, destacando-se decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cuidando,

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especificamente, da relação entre direito natural e tributação, na medida do exame da possibilidade da compensação tributária como um direito natural entre devedores e credores, independente, portanto, de norma para sua disposição. Eis, por todos, trecho restringindo-se tão só ao apontamento do quanto decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sua ementa parcial, na razão encontrada de direito natural, quando do exame da apelação:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.151.345 - RS (2009/0143500-9) RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS

RECORRENTE : ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROCURADOR : MÁRCIA REGINA LUSA CADORE WEBER E OUTRO(S) RECORRIDO : SUL PET PLÁSTICOS LTDA

ADVOGADO : VALTRÍCIA BERTINATO

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – COMPENSAÇÃO ENTRE PRECATÓRIOS

(IPERGS) E DÉBITOS TRIBUTÁRIOS – ICMS – IMPOSSIBILIDADE – PRECEDENTES – COMPENSAÇÃO – AUSÊNCIA DE LEI – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

DECISÃO Vistos.

Cuida-se de recurso especial interposto pelo ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul assim ementado (fls. 409/410e):

"APELAÇÃO CÍVEL. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITO DE PRECATÓRIO EMITIDO CONTRA O IPERGS, OBJETO DE CESSÃO, COM DÉBITO TRIBUTÁRIO FACE AO ESTADO. POSSIBILIDADE. 1. Compensação

como direito natural. A compensação entre credores e devedores recíprocos é direito natural, quer dizer, independe de previsão normativa. É legal, supraconstitucional. [...] Assim, nas circunstâncias, a

compensação de crédito face ao IPERGS com débito face ao Estado é modo, in extremis, de compeli-lo a cumprir suas obrigações institucionais."

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É certo, contudo, que as decisões judiciais do Tribunal Estadual foram reformadas pelo Superior Tribunal de Justiça54, como mesmo apontado pelo precedente desse tribunal superior, mas, de sua parte, revela-se como a demonstração mínima da relação que se examinou entre a tributação e o direito natural.

1.5.2. Do direito positivo e do realismo jurídico e