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O direito ao trabalho na rua versus a ilegalidade do trabalho nas ruas

No documento Direito ao trabalho na rua (páginas 178-181)

8 O DIREITO AO TRABALHO NA RUA

8.2 O direito ao trabalho na rua versus a ilegalidade do trabalho nas ruas

Já se sabe que trabalhadores de rua, assim como qualquer outro cidadão, têm assegurado constitucionalmente o direito ao trabalho digno (DELGADO, 2006). Todavia, esses mesmos trabalhadores não têm autorização para trabalhar em logradouros públicos, mais precisamente, para exercer suas atividades costumeiras nas ruas, sobre as quais são verdadeiros experts. Muitos desses trabalhadores, repentinamente, em virtude do Código de Posturas passaram da condição de licenciados para infratores à legislação municipal, como

relatou “I”. (BELO HORIZONTE, 2003). Nessa situação, não foi levada em conta a tradição

do comércio informal nas ruas da cidade, que como demonstrado neste trabalho, nasceu e se desenvolveu junto com Belo Horizonte, muito menos foram considerados os interesses desses trabalhadores. Como demonstrado na seção anterior, o direito ao trabalho na rua desses trabalhadores encontra-se infringido.

Da análise desse contexto é possível compreender que há um conflito entre o direito ao trabalho dos trabalhadores informais de rua e a lei que os impede de desenvolver o ofício que têm. Por causa disso, faz-se necessário entender o que é o Direito.

Efetivamente, Direito e lei são coisas diferentes, como ensinou magistralmente Lyra Filho (1990). Num pequeno texto sobre o assunto, o autor introduz sua argumentação por meio da demonstração de como diferentes línguas tratam a questão, usando termos distintos para designar direito e lei:

Se procurarmos a palavra que mais frequentemente é associada a Direito, veremos aparecer a lei, começando pelo inglês, em que law designa as duas coisas. Mas já deviam servir-nos de advertência, contra esta confusão, as ouras línguas, em que Direito e lei são indicados por termos distintos: lus e lex (latim), Derecho e ley (espanhol), Diritto e legge (italiano), Droit e loi (francês), Recht e gesetz (alemão),

Pravo e zakon (russo), Jog e törveny (húngaro) e assim por diante. Noutra passagem

deste livrinho, teremos de enfrentar a sugestão do grego, em que nomos (lei) também não se identifica, sem mais, como o Direito e Dikaion propõe a questão do Direito justo.

[...]

Os autores ingleses e americanos têm de falar em Right, e não em Law, quando pretendem referir-se exclusivamente ao Direito, independente da lei ou até, se for o caso, contra ela (isto não significa, note o leitor, que o verdadeiro Right não possa ser um Direito legal, porém que ele continuaria a ser Direito, se não o admitisse. (LYRA FILHO, 1990, p. 31).

Para Lyra Filho, não é possível afirmar que toda lei corresponde ao Direito. Com esse entendimento, o autor responde à indagação de Bisol (1990, p.35), que sinteticamente expressa um complexo ponto da filosofia jurídica: “qual é o critério que se deve privilegiar na determinação do que é e do que não é direito? É a sua forma (jurídico-normativa) ou seus conteúdos (pautados em um valor supremo ou historicamente determinado)?”

Nessa mesma linha que Lyra Filho (1990), Bisol (1990, p. 35) indica que “adotar a

tese do formalismo jurídico implica, entre outras coisas, limitar o direito àquilo que está contido no arcabouço jurídico-estatal, acatando como direito todo e qualquer conteúdo ali

previsto”, o que é um risco enorme, especialmente, para as minorias, como os trabalhadores

de rua. Isso porque a lei pode ou não ser um veículo condutor das melhores conquistas. Ela

pode abranger, “sempre em maior ou menor grau, Direito e Antidireito, reto e correto, e

negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuistas do poder

estabelecido” (LYRA FILHO, 1990, p. 32). Sobre isso, tentando deixar mais claro o seu

raciocínio, Lyra Filho ainda pontua:

A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Embora as leis

apresentem contradições, que não nos permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão os interesses daquela classe, também não se pode afirmar que toda legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível. (LYRA FILHO, 1990, p. 31).

Lyra Filho (1990) é taxativo ao defender o exame crítico da relação entre Direito e lei. Ressalta que a tentativa de tornar sinônimos tais termos, integra um repertório ideológico do Estado, “pois [...] ele desejaria convencer-nos de que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis”. (LYRA FILHO, 1990, p. 32).

Voltando à indagação de Bisol, falta ainda encontrar a resposta sobre qual conteúdo pode determinar o que é ou não direito. Para Lyra Filho, “quando buscamos o que o Direito é, estamos antes nos perguntando o que ele vem a ser, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social”. (LYRA FILHO, 1990, p. 33). Assim, pode-se entender que é mutante o conteúdo do Direito, historicamente construído. Bisol (1990, p. 36), por sua vez, confirma esse entendimento ao declarar que “não há valor absoluto de justiça, mas sim valores historicamente determinados e, por vezes, coexistindo nas contradições intrínsecas às relações sociais de uma determinada época”.

O fato que impede a emergência de que não há um valor unívoco de justiça é o domínio de uma posição sobre a outra, a respeito de qual é o próprio conteúdo do Direito. Essa situação, muitas vezes, é concretizada de forma autoritária, por meio da lei:

Numa sociedade plural, cheia de antagonismos emergentes da dominação do homem sobre o homem, seja ela de classe sobre classes, grupos sobre grupos, ou subgrupo sob subgrupos, isto é uma sociedade onde há pluralidade cultural e contracultural, social e política, necessariamente ali convivem vários direitos, várias concepções de justiça, enfim, constitui-se uma situação de pluralidade jurídica, onde as classes dominantes, com o controle da máquina estatal, cristalizam como direito positivo, isto é, como ordenamento jurídico estatal, os seus interesses setoriais e classistas, buscando ocultar por trás de um discurso unívoco a verdadeira situação de pluralidade jurídica. (BISOL, 1990, p. 36-37).

Levando em conta essas considerações, é possível afirmar que o Código de Posturas de Belo Horizonte representa o antidireito ao trabalho na rua. E, sendo, portanto, contrário ao direito, não é possível reconhecer sua legitimidade. E isso se dá não só pela proibição do trabalho dos camelôs e toreros em logradouros públicos, mas também pelo não cumprimento

efetivo da determinação, também constante no Código, de que esses trabalhadores seriam remanejados para locais específicos com viabilidade econômica (BELO HORIZONTE, 2003).

O manejo do comércio informal para os shoppings populares não representou a satisfação de interesses dos trabalhadores de rua. Ganharam com isso, especialmente, os comerciantes estabelecidos no centro da cidade, agora livres da concorrência direta dos camelôs, e aqueles que investiram na criação dos shoppings populares, espaços privados voltados para o lucro desses empresários.

No documento Direito ao trabalho na rua (páginas 178-181)

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