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2 COOPERATIVISMO, AGRICULTURA FAMILIAR E ABORDAGEM DA

2.8 DIREITOS DE PROPRIEDADE E ARRANJOS INSTITUCIONAIS

Os direitos de propriedade são os direitos para usar determinado ativo ou obter renda deste, ou ainda o direito de transferir esse ativo para outros atores econômicos. É quando se transferem os recursos ou direitos entre os agentes que ocorrem os custos de transações. A distribuição dos direitos de propriedade, na presença de racionalidade limitada e de contratos incompletos, ocasiona direitos residuais ao controle e direitos residuais aos resultados (HART, 199311; EGGERTSSON, 199012 apud BIALOSKORSKI NETO, 2012, p.37). Nesse caso, nas organizações cooperativas em que os direitos de propriedade estão restritos aos seus cooperados, estes têm direito ao retorno residual, que é pessoal e intransmissível, e os benefícios são distribuídos aos membros proporcionalmente às suas atividades com a cooperativa13. De acordo com Cook (1995), essas características resultam em uma estrutura de direitos de propriedade vagamente definidos; para o autor, são cinco os problemas de governança decorrentes de direitos de propriedade vagamente definidos:

a) problema do free-rider, quando os ganhos da cooperativa podem ser acessados de modo livre por terceiros14; por exemplo, quando um cooperado vincula-se à cooperativa para obter algum benefício, mas não tem interesse em participar dela ou em investir realmente na organização;

b) o problema do horizonte15, quando os resultados – residual clains – não têm a

mesma extensão de vida econômica do ativo; no caso, a cooperativa possui projetos que têm um horizonte de longo prazo de retorno, mas os cooperados pensam em ter

11 HART, O.D. Incomplete contract and the theory of the firm.In: WILLIAMSON,O.E,;WINTER,S.G.(Ed.). The

nature of the firm: origins, evolucion, and development. New York: Oxford Press,1993.Cap.9,p.138-158.

12 EGGERTSSON, T. Economic behavior and institucions. Cambridge: Cambridge University Press,1990. 13 Nas cooperativas brasileiras, de acordo com a Lei nº 5764/71, artigo 21, no estatuto social deverá constar a

forma de devolução das sobras registradas aos associados, ou do rateio das perdas apuradas por insuficiência de contribuição para a cobertura das despesas da sociedade.

14 Uma das características das sociedades cooperativas brasileiras, de acordo com a Lei nº 5764/71, artigo 4, é a inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade, neste caso para usufruir de algum benefício da cooperativa seria necessário cooperar-se.

15 Sobre a questão do horizonte, Milani (2017), em pesquisa com cooperativas de produtores de leite familiares no Rio Grande do Sul, apontou que esses produtores tinham uma visão de curto prazo quanto ao empreendimento, ou não estavam dispostos a assumir riscos na organização, focando sua preocupação na sua propriedade agrícola e não com a organização cooperativa. Já os resultados da pesquisa de Pivotto (2013), com 16 cooperativas de vários segmentos no Rio Grande do Sul, indicou o problema do horizonte, mas com diferentes intensidades nos segmentos. No caso, a maior concentração ocorreu nas cooperativas de grãos. Pivoto também encontrou correlação entre o problema do horizonte e do free-rider. Para o autor, o problema do horizonte pode estar relacionado à falta de uma estratégia de mais valorização das cotas-partes do cooperado. Como não percebe ou não existe valorização das cotas-partes ou distribuição de sobras, o produtor prefere o benefício do preço.

benefícios imediatos ou de curto prazo; nesse caso não apostam na cooperativa e sim em seus projetos pessoais;

c) o problema de portfólio, quando o investimento não reflete a mesma preferência do cooperado; pode haver divergência, assim como no caso do horizonte, entre os portfólios individuais dos cooperados e o que cada um espera da cooperativa, o que leva a organização a buscar uma estratégia de menor risco;

d) o problema de controle tem relação com os custos originados pelas divergências que se estabelecem entre proprietários e gestores das cooperativas16;

e) o problema dos custos de influência17, que ocorrem devido à influência na

distribuição da riqueza entre os membros. Nesse caso, os cooperados, individualmente ou em grupos, podem influenciar na decisão dos gestores e conselheiros em benefício próprio, gerando custos para a cooperativa.

Para Fulton (1995), as forças hipotéticas internas à cooperativa, especialmente as potenciais consequências negativas dos direitos de propriedade vagamente definidos, desafiam o crescimento organizacional cooperativo. Três opções estratégicas foram identificadas como potencialmente eficientes para solucionar essas questões: a opção de sair do setor ou da forma organizacional; continuar estratégica e estruturalmente, com mudanças moderadas na forma de organização; ou mudar para uma forma mais radical de estrutura organizacional. Com a justificativa de uma agenda de pesquisa para compreender a mudança organizacional no sistema alimentar e observando as estratégias adotadas pelas organizações cooperativas, Cook e Chaddad (2004) analisaram o design organizacional de cooperativas norte-americanas na década de 1990 e classificaram-nas em decorrência da alocação dos direitos de propriedade (ver Figuras 4 e 5). Para os autores, os desafios de crescimento organizacional para as cooperativas, além dos problemas de governança apresentados, relacionam-se também às questões externas, como a tecnologia, e internas, como o individualismo dos membros e as potenciais consequências negativas dos direitos de propriedade vagamente definidos. O desafio apresentado às cooperativas estaria ligado a

16 No Brasil, diferentemente das organizações norte-americanas, na maior parte das cooperativas é o próprio conselho administrativo formado por cooperados que realiza a gestão da organização cooperativa. Para Bialoskorski Neto (2004), quando há um grande número de cooperados e o conselho não consegue representar todos os membros, devem-se criar estruturas de núcleos de cooperados, estimulando a participação, pois isso teria impacto positivo para a solução do problema de controle.

17 Pivoto (2017) identificou que, com apenas uma entrevistada por cooperativa, é difícil perceber de forma clara esse problema nas organizações entrevistadas. Uma análise que abordasse também os cooperados poderia ter resultados mais satisfatórios nesse caso.

mudanças na arquitetura organizacional dessas organizações que lhes permitissem uma atuação mais agressiva e competitiva no mercado.

Figura 4 – Formas emergenciais de cooperativas a partir de uma abordagem de direitos de propriedade

Fonte: Adaptado de Cook e Chaddad (2004).

No estudo em referência, os autores apresentam arranjos institucionais discretos (tipologias das cooperativas) baseados em uma ampla definição de direitos de propriedade, que incluem direitos residuais de reivindicação e controle. A partir desse conceito, os modelos cooperativos poderiam ser distinguidos pela forma como os direitos de propriedade são definidos e atribuídos a agentes vinculados contratualmente à organização. Cook e Chaddad (2004) apresentam dois tipos de arranjos institucionais discretos: no primeiro, os direitos de propriedade são restritos aos membros e, no segundo, os direitos de propriedade não estão restritos aos não membros. Na Figura 4, são descritas quatro tipologias de cooperativas com direitos de propriedade restritos aos membros. O primeiro, ao topo, trata das Cooperativas Tradicionais: nelas os direitos de propriedade são restritos aos usuários membros; os direitos de devolução residual são intransferíveis, não apreciáveis e resgatáveis; e os benefícios dos membros são distribuídos na proporção do patrocínio, mas o investimento pode não ser proporcional ao patrocínio. Muitas dessas cooperativas estão desenvolvendo estruturas verticais de investimento, investindo em empresas de responsabilidade limitada, joint ventures ou outras formas de alianças estratégicas. Algumas também tentam fazer ou fazem a transição para uma cooperativa da nova geração (NCG).

O segundo tipo são as Cooperativas de investimento proporcional18: nesse modelo, os direitos de propriedade são restritos a membros, intransferíveis, não apreciáveis e resgatáveis, mas espera-se que os membros invistam na cooperativa na proporção do patrocínio, seria a forma original do design organizacional cooperativo agrícola dos EUA. O problema desse modelo é que, à medida que os membros tornam-se mais heterogêneos, o grau de direito de propriedade vagamente definido aumenta, transferindo a cooperativa proporcionalmente organizada para o status de cooperativa tradicional. Como solução, adotam políticas de gerenciamento de capital para garantir a proporcionalidade do capital gerado internamente, incluindo fundos de capital separados e planos de capital base com investimentos verticais na forma de joint ventures, LLCs e alianças estratégicas.

O terceiro tipo trata das Cooperativas de membros investidores: nele, os retornos são distribuídos proporcionalmente às participações dos membros, além do patrocínio. Isso é feito com distribuição de dividendos na proporção de ações e/ou valorização da cooperativa. Nesse caso, o membro tem a dimensão não só de usuário, mas também de investidor. Os investimentos verticais nesse modelo podem ocorrer na forma de joint ventures e são estabelecidos com parceiros em todo mundo, cooperativas e não cooperativas.

E o último tipo, na base da Figura 4, traz a Nova Geração de Cooperativas (NGC)19: no modelo clássico da NGC, os direitos de propriedade estão na forma de direitos de entrega negociáveis e apreciáveis restritos aos membros atuais. Além disso, os membros devem adquirir os direitos de entrega com base no patrocínio esperado, de tal forma que o uso e o investimento de capital sejam proporcionalmente alinhados. Esses direitos de propriedade, geralmente, não são resgatáveis. Na forma vertical, fazem parcerias, sendo a NCG o principal

18 A Lei nº 5764 de 1971 prevê, no artigo 4º item III, a limitação do número de cotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais.

19 A Lei nº 5764 de 1971 não prevê a admissão como associados de pessoas jurídicas de natureza mercantil, prevê somente, no capítulo III – artigo 8º, Parágrafo único, que, para a prestação de serviços de interesse comum, é permitida a constituição de cooperativas centrais, às quais se associem outras cooperativas de objetivo e finalidades diversas. Restrições à parte, tem sido prática comum das cooperativas brasileiras que os mesmos cooperados criem sociedades empresariais e trabalhem em forma de parceria, como é o caso da Cooperativa Agrícola de Produtores de Cana de Rio Branco Ltda (COOPERB), CNPJ 15.059.231/0001-48, que trabalha com o plantio de cana-de-açúcar no Mato Grosso e possui em seu quadro de cooperados sócios comuns à Agropecuária Novo Milênio, CNPJ 04.165.520/0001-05, que industrializa a produção da cooperativa. Exemplo similar é o caso da Cooperativa Agroindustrial de Piscicultura Psices (COPISCES), que trabalha em parceria com a Empresa Tilápia Pisces Produtos da Aquicultura Ltda. As informações públicas referente à estrutura societária dessas organizações pode ser consultada no site da Receita Federal do Brasil: https://www.receita.fazenda.gov.br/pessoajuridica/cnpj/cnpjreva/Cnpjreva_qsa.asp.

investidor. Também atuam em um modelo colaborativo com as cooperativas tradicionais nas quais estas têm participação acionária20 na NGC ou o inverso.

Cook e Chaddad (2004) apresentam ainda três tipologias emergentes de cooperativas, cujos direitos de propriedade não estão restritos aos usuários (Ver a Figura 5). O primeiro modelo trata das cooperativas com entidades para a captação de recursos, no qual os investidores adquirem direitos de propriedade em uma entidade legal separada, total ou parcialmente pertencente à cooperativa e o capital do investidor externo não é introduzido diretamente na empresa cooperativa, mas em empresas fiduciárias, alianças estratégicas ou subsidiárias. O segundo é um modelo intermediário, composto por cooperativas com ações para investidores, nas quais esses investidores recebem direitos de propriedade, além dos direitos tradicionais de propriedade cooperativa mantidos pelos usuários-membros. O terceiro e último modelo é a firma orientada ao investidor, na qual a organização deixa de ser cooperativa e converte-se em uma estrutura de propriedade corporativa21. Essa transformação tem implicações nos direitos de propriedade e no desempenho da organização.

Utilizando-se do estudo dos direitos de propriedade vagamente definidos, as tipologias apresentadas por Cook e Chaddad (2004) ajudam a compreender a evolução das organizações cooperativas à medida que desenvolvem novos mecanismos para adquirir capital próprio, muito embora os autores tenham como referência as cooperativas norte-americanas; excluindo-se o que não é permitido pela Lei nº 5764 de 1971, acredita-se que possam ser

20 No Brasil, não é prevista a composição acionária para cooperativas, de acordo com o Código Civil de 2002, Título II, artigo 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais. Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa. A Lei das Sociedades Anônimas prevê ainda, no Capítulo I, artigo 1º, que a companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas e no artigo 2º, que pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.

21 A possibilidade de transformação de cooperativas em outros tipos de sociedade está prevista na Lei nº 5764/71. O que tem ocorrido são divergências quanto ao entendimento do texto, que consta no Capítulo XI, que trata da Dissolução e Liquidação, artigo 63º, que prevê que as sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito, e uma das motivações, conforme o ítem IV, é devido à alteração de sua forma jurídica. Há pedidos de transformação negados, questionando-se que deveria primeiro ser dissolvida a cooperativa e criado posteriormente o novo tipo de sociedade. As decisões sobre os casos não são homogêneas e a apelação tem sido justificada pelo Código Civil de 2002, Capítulo X, que trata da Transformação, da Incorporação, da Fusão e da Cisão das Sociedades artigo 1.113º, que autoriza o ato de transformação societária independentemente "de dissolução ou liquidação da sociedade”, resguardando, apenas, a observância dos “preceitos reguladores da constituição e inscrição do tipo em que vai converter-se. Para mais detalhes sobre um caso específico, ver: https://www.jurisite.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2017/08/REsp-1.528.304-RS.pdf. Também há exemplos de casos de mudança em cooperativas agropecuárias, como o caso da Coopermaçã Indústria e Comércio de Maçãs LTDA, CNPJ 07.884.092/0001-69, que se converteu em Sociedade Empresária Limitada, conforme consulta realizada aos dados públicos do site da Receita Federal do Brasil: http://www.receita.fazenda.gov.br/PessoaJuridica/CNPJ/cnpjreva/Cnpjreva_Solicitacao.asp.

observadas características comuns aos empreendimentos brasileiros ou sinalizações de evolução nos modelos locais a serem estudados.

Figura 5 – Formas emergenciais de cooperativas com direitos de propriedade não restritos aos membros

Fonte: Adaptado de Cook e Chaddad (2004).

Sobre o tema, Costa, Chaddad e Azevedo (2012) realizaram uma pesquisa sobre separação entre propriedade e decisão de gestão em cooperativas agropecuárias no Brasil com amostra de 77 cooperativas com faturamento a partir de 100 milhões. Nesse caso, os autores verificaram que não havia um arranjo organizacional predominante, mas, sim, diferentes modelos que coexistiam. Nesse grupo de cooperativas, havia uma parte com governança concentrada e grupos que já adotavam modelos de governança promovendo a separação parcial de jure ou de facto entre propriedade e decisão de gestão.

Bialoskorski (2012) também realizou um estudo comparativo entre os arranjos existentes nos EUA e no Brasil e constatou que várias características dos modelos brasileiros devem-se ao fato de o cooperativismo brasileiro ter suas origens no modelo europeu de Rochdale, enquanto as iniciativas americanas tiveram um desenvolvimento autônomo. Na síntese do autor, as principais diferenças em estruturas de governança entre EUA e no Brasil são:

a) a presença de maior separação entre propriedade e gestão nos EUA e a frequência e importância de um CEO profissional na gestão dos negócios;

b) a importância dos programas de restituição de capital incluídos nos EUA e as dimensões da percepção dos direitos de propriedade;

c) formas flexíveis;

d) tendência, nos EUA, de novas formas organizacionais, para amenizar os problemas de direitos de propriedade vagamente definidos por meio de relações contratuais formais, das relações de capital, de governança profissional, incluindo a presença do investidor e a maior facilidade em estabelecer alianças estratégicas com empresas não cooperativas.

Para o autor, três considerações gerais devem ser estabelecidas na análise de instituições cooperativas:

a) as características culturais da sociedade são importantes para entender como os direitos de propriedade são percebidos;

b) a percepção dos direitos de propriedade pelos associados é algo importante para analisar o projeto de governança organizacional;

c) e a lógica dos contratos pode ser diferente em função da cultura e das instituições. Nesse sentido, considerando que as análises do autor também foram baseadas em modelos tradicionais de cooperativas brasileiras que já possuíam grande diferença dos modelos americanos, durante esta análise uma das premissas é não perder de vista a especificidade local do objeto de análise, e sua distinção em relação aos casos já analisados anteriormente. Haja vista que se trata de cooperativas da agricultura familiar e que seu segmento por si já se diferencia do modelo da agricultura empresarial em sua forma de reprodução social e econômica e sobrevivência ao longo do tempo.

Assim, dando continuidade no desenvolvimento da pesquisa, na seção que segue, serão apresentados os pressupostos metodológicos e de que forma foi realizada a coleta, análise e discussão das informações da pesquisa de campo.