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O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e a Redefinição do Papel do Estado Brasileiro

1 A GESTÃO EDUCACIONAL E AS INTERFACES DO ESTADO NAS REDEFINIÇÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

1.1 A GESTÃO EDUCACIONAL: DA GERERE AO GERENCIALISMO

1.1.2 O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e a Redefinição do Papel do Estado Brasileiro

A partir do movimento neoliberal e de reestruturação produtiva que atingiu os países capitalistas, o Estado Brasileiro inicia na década de 1990 um processo de redefinição do seu papel social, político e econômico que repercutiu diretamente na gestão da educação.

Na verdade, o papel do Estado passa a ser redefinido a cada crise que a sociedade capitalista enfrenta e o sistema capitalista vem sofrendo crises globais violentas ao longo dos anos, principalmente em decorrência do caráter contraditório do seu processo de produção. No século XIX ocorreram as primeiras crises provocadas pelo subconsumo. Entre os anos de 1880 e 1890, o sistema entrou em mais uma crise após a queda da taxa de lucro. Por sua vez, as crises dos anos 1914 e 1929, bem como das décadas de 1970, 1990 e dos anos 2000 têm a mesma característica estrutural, porém materialidades e espectros diferentes (CHAVES, 2011).

As crises do Estado são momentos de desagregação/renovação do modo de dominação e provocação das relações de forças em que a classe hegemônica utiliza o seu poder de Estado para esmagar as classes subalternas (GRAMSCI, 1991).

Nos anos de 1970 uma nova crise do capital é desencadeada, associada à queda da taxa de lucro e à saturação do modelo de produção

taylorista/fordista, resultando em greve dos trabalhadores e na crise do Estado de Bem-Estar-social. Com isso, emerge um processo de reorganização do sistema ideológico, político e de produção do capital: o Neoliberalismo. Este, por sua vez, acarreta uma série de consequências como a privatização; a desregulamentação dos direitos trabalhistas; privatizações; redução de políticas sociais; demissões em massa etc. (ANTUNES, 2005).

Harvey (1993) atribui à rigidez do modelo fordista a resistência da classe trabalhadora, que nesse momento de crise pressionava o Estado para aumentar os programas de assistência social (seguridade social, direitos de pensão, etc.). Em oposição ao fordismo é construído um novo modelo de acumulação denominado pelo referido autor de “acumulação flexível”, com as seguintes características:

O surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (...) envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual tanto entre setores como em regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços” (...) parece implicar níveis relativamente altos de desemprego “estrutural”, rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos de salários reais e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista (HARVEY, 1993, p. 140-141).

A “acumulação flexível” que o autor trata é marcada fundamentalmente pelas inovações tecnológicas e comerciais, as quais superam a produção em massa e rígida do modelo fordista, deslocando a produção para o modelo toyotista, ou seja, com pequenos lotes de produtos os quais são mais refinados e com estoque reduzido, decrescendo o custo e aumentando, portanto, o lucro. “Esse novo modelo de acumulação flexível impõe uma reforma do Estado, passando de interventor a gestor, transferindo funções específicas do setor de serviços para o mercado” (CHAVES, 2011, p.32). Trata-se da privatização e da vertente neoliberal que domina o pensamento econômico a partir do que

Mészáros (2009) nomeia de “crise estrutural”14 do capital iniciada nos anos 1970.

Em defesa dessa vertente neoliberal, Cardoso15 (2003) propõe que “(...) a produção de bens e serviços pode e deve ser transferida à sociedade, à iniciativa privada, com grande eficiência e com menor custo para o consumidor” (p.15). Na mesma perspectiva, Bresser-Pereira (2003) afirma que o Estado do século XXI deverá garantir direitos principalmente através da contratação de entidades públicas não-estatais, mais competitivas, mais eficientes, e mais bem controladas pela sociedade.

Em consonância com essas ideias, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) foi implementado no Brasil no ano de 1995, impulsionado pelas instituições financeiras multilaterais16, as quais exigiram políticas de ajuste estrutural para superar a “crise”. No PDRAE, a crise do Estado é definida como:

1) uma crise fiscal, caracterizada pela crescente perda do crédito por parte do Estado e pela poupança pública que se torna negativa; 2) o esgotamento da estratégia estatizante de intervenção do Estado, a qual se reveste de várias formas: o Estado do Bem-estar social nos países desenvolvidos, a estratégia de substituição de importações no Terceiro Mundo, e o estatismo nos países comunistas; e 3) a superação da forma de administrar o Estado, isto é, a superação da administração pública burocrática (BRASIL, MARE, 1995, p.15).

Fundamentada na ideia de que a responsabilidade pela crise é do próprio Estado, o PDRAE propõe a mudança em muitos aspectos da política administrativa brasileira, fortalecendo o papel regulador do Estado e transferindo alguns serviços públicos estatais para o setor público não-estatal,

14 Crise estrutural do capital, segundo Mészáros, significa que pela primeira vez na história, o

sistema sociometabólico vigente “confronta-se globalmente com seus próprios problemas”, e que qualquer tentativa de resolução de tais ‘problemas’ dentro dos limites do capital aproxima a humanidade de sua real possibilidade de destruição, tanto no plano ecológico quanto militar (MÉSZÁROS, 2009).

15 Fernando Henrique Cardoso, presidente da república de 1994 a 2002, responsável pela

implementação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995).

16 O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial - Banco Internacional para a

com a justificativa de que o setor público é marcado pela ineficiência e por privilégios.

No contexto da redefinição do papel do Estado, o Plano Diretor da Reforma institui um modelo no qual a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico e social é transferida para o setor privado ou público não-estatal. Por outro lado é fortalecida a função reguladora e coordenadora do Estado, que Peroni (2003) destaca ser contraditório haja vista o controle político e ideológico assumido pelas organizações públicas não-estatais, o que acaba transferindo também a regulação e coordenação dessas organizações para o mercado.

Frigotto (2010) assinala que esse pensamento é utilizado para justificar a redução do Estado e a eliminação de todos os direitos trabalhistas conquistados pela sociedade. Desta forma, as conquistas sociais como o direito à educação, saúde, transportes públicos, segurança, entre outros, devem ser “comprados e regidos pela férrea lógica das leis do mercado. Na realidade, a ideia de Estado mínimo significa o Estado suficiente e necessário unicamente para os interesses da reprodução do capital” (FRIGOTTO, 2010, p.83-84).

Essas mudanças e redefinições do papel do Estado podem ser compreendidas em dois momentos: o primeiro é voltado para as questões macroeconômicas, implementadas para superar a crise do modo de produção capitalista, trata-se das reformas de primeira geração, contempladas no Consenso de Washington; enquanto que as reformas de segunda geração foram destinadas às questões institucionais.

As reformas de primeira geração, de ordem macroeconômica, a partir do Consenso de Washington17, visava superar a crise financeira da década de 1970. John Willianson, economista inglês e diretor do Institute for International

Economics, onde ocorreu o encontro, escreveu o artigo que deu origem ao

“consenso”, traduzindo-se como um conjunto de “recomendações” para os

17 Receituário no qual foi referendada, sob a tutela do governo dos EUA, a recomendação da

implantação das políticas neoliberais como condição para conceder “cooperação” financeira externa, bilateral ou multilateral. Na gestão Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Brasil investe num alinhamento com os EUA e num projeto de globalização liberal, acatando, conforme Fiori (2003), a internacionalização dos centros de decisão brasileiros e a fragilização estatal, em troca de um projeto de governança global rigorosamente utópico.

países da América Latina visando garantir a abertura econômica e comercial, aplicação da economia de mercado e controle fiscal macroeconômico. Negrão (1998) destaca algumas regras universais concluídas nesse encontro:

Disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação, eliminando o déficit público; Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infra-estrutura; Reforma tributária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributária, com maior peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos; Liberalização financeira, com o fim de restrições que impeçam instituições financeiras internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor; Taxa de câmbio competitiva; Liberalização do comércio exterior, com redução de alíquotas de importação e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização da economia; Eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto estrangeiro; Privatização, com a venda de empresas estatais; Desregulação, com redução da legislação de controle do processo econômico e das relações trabalhistas; e Propriedade intelectual (NEGRÃO, 1998, p.41-42).

As “recomendações”, portanto, ressaltam a política neoliberal de menor intervenção do Estado na economia e fortalecimento do capital financeiro. E embora afirmem que não se trata de uma imposição, as instituições financeiras, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), já utilizavam e a cartilha neoliberal como uma condição para a concessão de novos empréstimos e cooperação econômica.

Já as reformas de segunda geração, ocorridas a partir dos anos de 1990, pretendiam reformar o contexto institucional. As medidas, então, visavam melhorar a qualidade da administração e do sistema judicial e político; com isso, a administração pública começava a se reformular preocupando-se com o desenvolvimento e resultado das políticas, pautando-se em três pressupostos básicos de caráter gerencialista: eficiência, eficácia e produtividade (CASTRO, 2007).

No caso das reformas de segunda geração, em 1995, o governo brasileiro, presidido por Fernando Henrique Cardoso (FHC), instituiu o Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE), nomeando Luís

Carlos Bresser-Pereira para institucionalizar a reforma da administração pública por meio do PDRAE.

A justificativa utilizada para a efetivação de um conjunto de reformas no aparelho do Estado brasileiro era a ideia de que este estava em crise, sendo necessário, segundo Bresser-Pereira:

A recuperação de poupança pública e superação da crise fiscal; redefinição das formas de intervenção no econômico e no social através da contratação de organizações públicas não- estatais para executar os serviços de educação, saúde, cultura; e reforma da administração pública com a implementação de uma administração pública gerencial (BRESSER-PEREIRA, 1996, p.17).

Evidencia-se, portanto, a proposição de uma gestão pública gerencial, além de incentivar a contratação de organizações públicas não estatais para executar serviços básicos como os de saúde e educação. Dessa forma, o Estado assume um papel regulador e passa a estimular as privatizações e terceirizações.

Com o objetivo de “reconstrução do Estado, de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas” (BRASIL, 1995, p.16), a reforma prevista no Plano Diretor considera inadiável, dentre outros, o ajustamento fiscal duradouro; as reformas econômicas voltadas para o mercado; a reforma da previdência social; e a reforma do aparelho do Estado. Todas essas medidas que focalizam na administração pública federal, trazem consequências para a sociedade, e para a democratização do sistema público.

Nessa perspectiva neoliberal, além de transferir direitos fundamentais da sociedade para o setor privado, há a interferência direta da Reforma do Estado nas políticas públicas de gestão educacional. O pensamento neoliberal baseia- se na competitividade, individualismo e contenção dos movimentos de luta operária, e impõe uma nova forma de administração pública que utiliza o termo mercadológico “gestão” já assumindo os valores do processo produtivo e o “gerencialismo”18 nos sistemas públicos.

18O gerencialismo baseia seus princípios vinculados aos interesses do mercado capitalista e

respaldados pela política neoliberal, de modo que não possibilita a participação de todos (RIBEIRO; CHAVES, 2015)

Acerca das mudanças ocorridas no Estado a partir dessa Reforma de cunho neoliberal, Peroni (2011) ressalta que:

O papel do Estado para com as políticas sociais é alterado, pois com o diagnóstico neoliberal, pactuado pela Terceira Via, duas são as prescrições: racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituições democráticas são permeáveis às pressões e demandas da população, além de serem consideradas como improdutivas, pela lógica do mercado. Assim, a responsabilidade pela execução das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade: para os neoliberais através da privatização (mercado), e para a Terceira Via pelo público não-estatal (sem fins lucrativos) (p.27).

Isso reitera que o ideário neoliberal se contrapõe aos princípios democráticos na medida em que, além de diminuir o papel do Estado na execução de políticas sociais, transfere para o mercado e para o setor público não-estatal o poder de execução das políticas públicas. Na verdade, o que aparentemente seria uma proposta de Estado mínimo, configura-se na realidade como de Estado mínimo para as políticas sociais e de Estado máximo para o capital (PERONI, 2003).

Na perspectiva neoliberal, a democracia também é mínima, reduzida ao que Gentili (1998) chama de “simulação democrática” (p.45) a serviço do capital. Na maioria das vezes, a democracia fica restrita às regras para a eleição dos governantes, sendo considerada prejudicial ao livre andamento do mercado por alguns teóricos neoliberais, como Hayek19.

A Terceira Via vem com uma proposta alternativa ao neoliberalismo e à antiga social democracia. Ela apresenta como proposta a democratização da democracia. Isso pressupõe um Estado democrático caracterizado pela descentralização; renovação da esfera pública e eficiência administrativa, uma vez que os seus teóricos creem que a crise está no Estado por gastar mais do que deve em políticas sociais e provocar crise fiscal (PERONI, 2006).

O significado de democracia exposto pela Terceira Via é digno de indagação na medida em que consiste na convocação da sociedade civil apenas para executar tarefas, as quais caberiam ao Estado, não se traduzindo

19 Friedrich August von Hayek formulou a concepção neoliberal pela primeira vez, no ano de

1947. Sua teoria partia do princípio de que o mercado deveria servir como base para organização da sociedade (PERONI, 2006).

na participação nas decisões e no controle social, característicos de um sistema realmente democrático (PERONI, 2006).

Giddens (2001) analisa positivamente a Terceira Via e a redefinição do papel do Estado, substituindo o termo “Estado de Bem-Estar” para “Sociedade de Bem-Estar”, de modo que o Estado com parcerias com órgãos da sociedade (empresas) cada vez mais se desobriga das funções sociais (saúde, educação, emprego, etc.). Na prática, o autor afirma que o Estado não precisa enfrentar o problema da distribuição de renda já que pode solucionar suas dificuldades pela privatização dos direitos sociais, os quais são transformados em serviços sociais regidos pela lógica do mercado.

A Terceira Via, conforme Peroni (2006) se distingue do neoliberalismo na utilização do Terceiro Setor, pois, enquanto a política neoliberal utiliza a privatização e propõe o Estado mínimo; a via alternativa propõe reformar o Estado e repassar as tarefas para a sociedade civil, sem fins lucrativos. Em suma, os dois visam racionalizar os recursos públicos e diminuir os gastos do Estado com as políticas sociais, bem como diminuir o papel das instituições públicas. No caso da Terceira Via, a proposta é repassar para a sociedade civil as políticas sociais executadas pelo Estado e que são frutos de lutas da sociedade civil organizada em sindicatos e movimentos sociais.

O Terceiro Setor, conforme Montaño (2002) apresenta-se como uma nova modalidade no trato social a partir da transferência da responsabilidade da questão social do Estado para o indivíduo; da perda do princípio universalista das políticas sociais, as quais passam a ser focalizadas; e da descentralização administrativa, o que torna as políticas ainda mais precarizadas na medida em que são transferidas as competências sem os recursos suficientes para executá-las.

A partir dessa contrarreforma do Estado brasileiro, novos mecanismos de gestão foram institucionalizados a partir de um discurso de “modernização” nos moldes das empresas privadas. E esse discurso foi estendido para a educação, aplicando medidas neoliberais, destacadas por Gentili (1998):

Os governos neoliberais esforçam-se em enfatizar que a questão central não está em aumentar o orçamento educacional, mas para “gastar melhor”; que não faltam mais trabalhadores na educação, mas docentes mais bem formados

e capacitados; que não falta construir mais escolas, mas fazer um uso racional do espaço escolar; que não falta mais alunos, mas alunos mais responsáveis e comprometidos com o estudo.

( p.19).

O problema, nesse ponto de vista, é a ineficiência da gestão e não a insuficiência de recursos financeiros e humanos. É o indivíduo que não é comprometido com os estudos e não a exclusão social que provoca o fracasso escolar. Esses discursos neoliberais acabam transferindo para os indivíduos as responsabilidades enquanto desobriga o Estado de garantir os direitos dos cidadãos, garantidos por Lei. Nessa perspectiva, Harvey (2008) faz um balanço da teoria neoliberal, destacando que o mercado passa a regular o bem-estar humano, sendo a competição o mecanismo regulador, tornando o sucesso e o fracasso virtudes individual.

Os direitos dos indivíduos passam a ser “mercadificado”, termo que Wood (2003, p.178) utiliza ao referir-se ao poder de comando que a sociedade civil “cedeu” aos donos dos meios de produção, um poder reforçado pelo Estado, o qual se isenta de qualquer responsabilidade em relação aos direitos sociais.

Essa transformação dos direitos sociais em mercadoria é evidenciada também no campo da educação uma vez que a contrarreforma do Estado influenciou diretamente nas políticas educacionais, orientadas pelos organismos internacionais. A seguir, discutiremos o modelo de gestão gerencial presente na contrarreforma do Estado brasileiro.