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2 AS MÚLTIPLAS “FACES” DO PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS (PAR) E SEU MECANISMO DE GESTÃO

2.3 O FEDERALISMO E O PAR: OS DESCAMINHOS DA DESCENTRALIZAÇÃO

Um dos objetivos fundamentados na implementação do Plano de Ações Articuladas é estabelecer o regime de colaboração entre os entes da federação, ou seja, entre a União, Estados; Distrito Federal e Municípios (CAMINI, 2009). E, diante da extensão territorial e diversidades regionais, Abrucio (2010) sinaliza que

o federalismo brasileiro se torna complexo quanto ao equilíbrio entre unidade e diversidade; e a redução das desigualdades.

Ademais, existem dois fatores discutidos por Carvalho (1993) que são imprescindíveis para se analisar o federalismo brasileiro. O primeiro diz respeito às origens e à natureza de nossa federação e considera os conflitos entre elites regionais, os quais fazem parte da formação histórica brasileira, pois mesmo no modelo unitarista do Império já havia disputas entre o centro e as províncias. Esse contexto federalista se institucionalizou com a adoção de um modelo de federação que teve enorme dificuldade de equilibrar as relações entre centralização e descentralização, além de ter mantido, ao longo do século XX, uma série de heterogeneidades socioeconômicas e de distribuição de poder territorial.

O segundo fator trata da herança mais recente da experiência federativa atual, que é o modelo editado pelo regime militar, o qual se caracterizava por uma forte centralização política, financeira e administrativa. O autoritarismo desse período (1964-1985), conforme Sano e Abrucio (2013) provocou duas conseqüências para o federalismo da redemocratização: a ausência de uma cultura de negociação entre os entes federativos; e a criação de “nichos burocráticos federais com lastro meritocrático” (p. 221) que tentaram manter seu poderio no processo de descentralização iniciado na década de 1980.

A partir do processo de redemocratização, pós-ditadura militar, predominou um federalismo baseado na ascensão e fortalecimento dos Estados e Municípios, enquanto a União ficou fragilizada política e economicamente; situação que, de acordo com Couto e Abrucio (2003), provocou pressões descentralizadoras, de um lado, e tentativas de reação do poder central, de outro.

Esse cenário começou a ser modificado a partir do sucesso econômico do Plano Real, o qual permitiu ao governo federal recuperar poder político e econômico, bem como “atacar o aspecto mais predatório do federalismo brasileiro, relacionado às contas públicas estaduais” (p.222); além disso, aumentou a sua possibilidade de ordenar o processo de descentralização de algumas políticas públicas que estavam fragmentadas (SANO e ABRUCIO, 2013). Contudo, vale ressaltar que esse processo de fortalecimento da União realizou-se sem comprometer a capacidade de auto-organização dos governos subnacionais.

A federação, conforme Abrucio (2003), é uma forma de organização peculiar, principalmente por assegurar direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais, que podem ser estados, províncias, cantões, ou mesmo municípios, como no Brasil. Nessa perspectiva, os referidos direitos não podem ser abolidos pela União de forma arbitrária, na medida em que são garantidos por uma Constituição escrita, considerado o principal contrato de validação do pacto político-territorial. Assim, a federação está assentada no princípio da soberania compartilhada, que deve assegurar, ao mesmo tempo, a autonomia dos governos e a interdependência entre eles. Essa relação entre autonomia e interdependência, por sua vez, precisa ser equilibrada para que a soberania compartilhada se mantenha no curso do tempo.

A Constituição Federal de 1988 pressupõe um federalismo cooperativo haja vista que prevê a organização conjunta das unidades subnacionais na proposição e gestão de políticas, no entanto, também mantém a estreita relação com o federalismo fiscal, visto a dependência dos governos subnacionais dos recursos vindos do governo central via transferências governamentais (ARRETCHE, 2002).

No seu artigo 211 a CF/88 determina que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”. Todos os fundamentos da CF/88 estão ancorados no federalismo cooperativo, o qual tem a intenção de “equilibrar os conflitos federativos e garantir a mesma qualidade de vida para todos os cidadãos, independente da região, estado ou cidade que habitam” (ARAÚJO, 2010, p. 755). A finalidade principal desse tipo de federalismo é o equilíbrio de tensões entre simetria e assimetria; unidade e diversidade; e união e autonomia. Na mesma perspectiva, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96 também determina em seus artigos 5º e 8º a organização dos sistemas de ensino em regime de colaboração, bem como descreve as funções de cada ente federado neste processo (Art. 9º ao 11º).

O Plano de Ações Articuladas é criado justamente na tentativa de estabelecer/concretizar o regime de colaboração entre os entes federados no Brasil, em matéria educacional o governo federal construiu e lançou o Plano de Ações Articuladas (PAR) (BRASIL, 2007). O PAR nasceu do Plano de Metas

Compromisso Todos pela Educação (PMCTE) que foi lançado concomitantemente ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

Nesse sentido, o PAR é previsto no PMCTE como o instrumento de cooperação entre os entes federados pela via do regime de colaboração. Sendo formulado pelos Estados e municípios, o Plano de Ações Articuladas reúne ações e metas necessárias à melhoria da qualidade da educação nestes locais. Segundo o MEC, trata-se de um planejamento multidimensional e é coordenado pelas secretarias municipais de educação, no entanto deve ser elaborado conjuntamente entre gestores, professores e comunidade local (http://portal.mec.gov.br).

Assim como a Constituição de 1988 fortaleceu a federação, trazendo avanços significativos no que concerne aos processos de descentralização, que na verdade assume caráter de “desconcentração”37, político-administrativa no âmbito educacional, o PAR também reforça a transferência de responsabilidades da União para os Estados e municípios. Nessa mesma direção, Souza (2005) reconhece que estados e municípios ganharam considerável autonomia administrativa, entretanto a capacidade dos municípios de legislar sobre políticas próprias apresenta-se limitada. A autora traça uma análise acerca das políticas públicas impostas pela federação às instâncias subnacionais, principalmente aos municípios, que desde a década de 1990 são responsáveis por políticas básicas de saúde e educação, o que evidencia a fragilidade dos mecanismos de cooperação existentes.

Embora o princípio da cooperação indique que as decisões sejam tomadas de forma conjunta a respeito do exercício das competências comuns e concorrentes, o que é evidenciado na prática é uma sobrecarga de responsabilização de estados e, principalmente de municípios, pela implementação de políticas formuladas e reguladas pela União, muitas vezes sem as devidas complementações financeiras.

37 Na desconcentração realiza-se a delegação regulamentada da autoridade, tutelada ainda

pelo poder central, mediante o estabelecimento de diretrizes e normas centrais, controle na prestação de contas e a subordinação administrativa das unidades escolares aos poderes centrais, em vez de delegação de poderes de autogestão e autodeterminação na gestão dos processos necessários para a realização das políticas educacionais (LÜCK, 2000, p. 18).

Acerca dessa transferência de responsabilidades da organização do sistema educacional, Oliveira (2010) analisa a configuração de dois modelos paradigmáticos:

O que se manifesta nos estados do Sul e Sudeste que assumiram a responsabilidade pelo atendimento educacional e construíram, ao longo do século XX, sistemas próprios de ensino, recorrendo subsidiariamente aos municípios; e o modelo dos estados do Norte e Nordeste em que estes se omitiram de construir um sistema de ensino de massas e tal responsabilidade foi precariamente assumida pelos municípios (p. 16).

As diferenças socioeconômicas que compõem o abismo entre regiões brasileiras foram aprofundadas na medida em que os Estados e municípios ricos construíram seus sistemas de ensino com recursos próprios enquanto os que não têm a mesma arrecadação financeira e que detém recursos escassos não alcançaram tal feito, ou construíram um sistema educacional precário, aumentando assim as disparidades entre os serviços públicos educacionais.

Essas diferenças são reforçadas com a mundialização do capital, e, além disso, o projeto neoliberal tem deturpado o processo de descentralização, efetivando, assim, um processo de desconcentração, compreendida conforme Oliveira (1999) como a delegação de determinadas funções a entidades locais ou regionais, dependentes diretamente do outorgante. Por outro lado, a autora reitera que a descentralização é o processo no qual entidades locais ou regionais, de forma autônoma, definem, organizam e administram o sistema de educação pública nas diversas áreas de atuação. Assim,

Observa-se, na atual situação brasileira, a existência de um processo contraditório em que, ao mesmo tempo, se descentralizam algumas ações (quase sempre relacionadas a execução) e se recentralizam outras de caráter mais estratégico, relacionadas ao processo de tomada de decisão, evidenciando, desse modo, uma dinâmica em que o fulcro do processo não é o favorecimento do principio da gestão democrática, mas, sobretudo, a busca de uma nova racionalidade centrada no gerenciamento dos recursos, objetivando o aumento da produtividade do sistema em moldes empresariais (p.84).

Na verdade, a suposta “descentralização” está se traduzindo no Brasil como um “descaminho” na medida em que ocorre, na verdade, um processo de municipalização das responsabilidades e execuções das políticas públicas educacionais, que é reforçado na implementação do Plano de Ações Articuladas, o qual tem se afastado do seu intuito de estabelecer o regime de colaboração entre os entes federados na medida em que simplesmente transfere responsabilidades para os municípios sem garantir a estes os recursos, a autonomia e a isonomia nas condições de efetivação das políticas prescritas pela União.

2.4 O PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS (PAR) E A GESTÃO