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a disciplina induzida à distância

Certamente, há poucos lugares como a escola onde esse aprisionamento disciplinar pode se dar de maneira tão intensa e minuciosa. É claro que, nela, os seus “condenados” não deverão ter suas vidas resumidas aos seus atos criminosos – nem mesmo em todas as cadeias isso é verdade. Ainda que os desvios de conduta sejam sempre muito bem registrados, quanto mais “bem intencionada” for a escola, mais e mais aspectos serão lembrados, incluindo-se até mesmo os desejos, as tentativas, as problemas familiares, as dificuldades financeiras etc. Assim, justamente por isso, há quem insista quase que exclusivamente na importância da evolução escolar, com suas repartições espaciais e temporais, para a “construção social” ou para a “invenção” da infância e da adolescência modernas. Uma percepção que tem a incrível capacidade de aparecer ora como parte de uma crítica que aponta para o caráter fabril e autoritário da educação, ora como parte importante de uma história que conta os passos do reconhecimento da singularidade e dos direitos da criança e do adolescente.

Repare-se entretanto que, por aí, enquanto na pior das penitenciárias o condenado se vê tratado exclusivamente como um criminoso, na melhor das escolas – seja pela via crítica, seja pela do reconhecimento moderno – o aluno pode se ver reduzido essencialmente a uma “vítima” frágil e inocente que deve ser protegida daqueles que podem lhe causar algum mal. E os caminhos dessa vitimização não se limitam aos corredores escolares: eles conduzem justamente aos processos que impulsionam uma utilização muito mais ampla do meio disciplinar de governo. Assim, não é por puro acaso que, justamente naquele seu grandioso estudo a respeito Da

condição física e moral dos jovens trabalhadores e dos meios de aprimorá-los, Ducpétiaux

guarde alguns páginas para esboçar um projeto de uma Associação para o Progresso da Ciência e a Realização de Reformas Morais e Sociais, a qual teria como desafios:

– a extensão da instrução, o aperfeiçoamento da educação, – o solapamento da indigência, – a prevenção e a extinção do pauperismo, – a reforma industrial, agrícola e comercial, – a organização do trabalho, – a reforma penitenciária, – o estabelecimento da patronagem, – a organização de diversas esferas sociais.50

Cada uma dessas “obras” – que de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde, serão postas em prática – pontua o traçado diversificado do processo de generalização do meio disciplinar de governo. E em cada uma delas, a infância e a adolescência, principalmente as dos filhos do povo, ocuparão uma posição central. Certamente, não por caridade religiosa – essa relação de cunho pessoal que, segundo tantos reformadores sociais, privilegiaria apenas os mais velhos e carrega a forma do dom, engrandecendo mais o próprio doador e estimulando no povo uma postura de vagabundagem e mendicância que, além de pouco digna, se mostra altamente prejudicial para a sociedade51. Personagens tão comuns à Europa industrial no século XIX,

esses reformadores, como Ducpétiaux, sonhavam ser reconhecidos como “cientistas sociais”, e não como agentes de caridade. Eles estarão entre os principais agentes do processo de acumulação, organização e normalização do conjunto absolutamente disperso e variado de dados sobre a nova humanidade moderna – essa humanidade de “indivíduos” – e, inclusive, sobre as próprias experiências disciplinares e suas técnicas específicas de exame capazes de gerar esses dados. Eles trabalharão, assim, nos primeiros e difíceis momentos da grande construção moderna de “um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa ‘população’”52.

Quando então a infância e a adolescência – mas principalmente a primeira – são acionadas no interior de um conjunto extenso de “reformas sociais”, é preciso ver aí um verdadeiro esforço de espíritos que, apesar de religiosos, se preocupam acima de tudo com o bem e o progresso “da sociedade como um todo”. É em função dessa tarefa maior que os mais jovens dentre os filhos do povo – esses seres ainda “sem discernimento” – são localizados como peças valiosas para a engrenagem central que move a reprodução do caos e da peste popular. São, afinal, utilizados pelos seus pais, indivíduos que apesar de se demonstrarem “incapazes” de oferecer qualquer educação podem fazer deles, inclusive por direito, quase tudo o que quiserem. Os “casos” acumulados principalmente pelas casas de correção iluminam assim uma família popular que abusa de seus direitos e explora seus próprios rebentos. Um tema já clássico e

51 Para uma análise da caridade religiosa e de sua crítica pelos reformadores e filantropos esclarecidos, ver

Donzelot (1986).

ainda hoje bastante corriqueiro que, ao fim, proporciona sempre aos tecnólogos do “social” um instrumento precioso para a entrada e para o funcionamento de seus dispositivos nos espaços abertos e fechados que lhe parecem mais inacessíveis: os bairros e os lares populares. A expansão de uma escolaridade disciplinarizante, geralmente acompanhada pela progressiva proibição do trabalho infantil, é uma das soluções mais comuns. Na segunda metade do século XIX, ao menos na Europa, com o avanço das organizações populares sobre a política de Estado, com a emergência de uma nova revolução industrial, com a nova fase “imperialista” do capitalismo e com a nova estratégia nacionalista para as economias internas, a escola popular agora já merece uma outra atenção. Aos poucos vai perdendo sentido o contraste absoluto entre o mero exílio instrutivo e primário, concedido aos trabalhadores, e o privilégio disciplinar e secundário dos internatos, por onde passam os filhos da elite. Agora que os filhos do povo têm o direito àquilo que, por tanto tempo, as elites reservaram para si, o seu sentido já não é mais o mesmo. O disciplinamento já não serve tanto como instrumento para um racismo exclusivo das elites. Ao contrário, ele se torna meio por excelência de um novo racismo, essencialmente “inclusivo”, biopolítico, que ganhará muitos corações mundo afora ao longo da primeira metade do século XX.

Assim, mais e mais jovens “desfavorecidos” viverão a graça e o sofrimento do meio disciplinar mais convencional: as classes seriadas e seu silêncio, as complicadas manobras sobre a carteira, a repetição exaustiva dos exercícios, mas também tudo aquilo que pode se dar nos entremeios, pelas costas de professores e inspetores, na confusão dos intervalos, no caminho de ida e na volta para casa. Mas não é apenas treinando seus filhos em novos moldes que a escolarização ataca o meio popular. Não é somente na sua volta para casa que a criança carrega algo que pode mudar o comportamento de seus pais: ela também carrega diariamente os vestígios da vida familiar para dentro da escola. Os funcionários sabem bem disso, mas os familiares também – além da própria criança, é claro. Afinal, a partir desse interesse da instituição escolar pela sua vida familiar, todo um jogo de visibilidades se instaura em torno do seu corpo e do seu comportamento – a sua pontualidade, os deveres-de-casa feitos, o uniforme limpo, o cabelo penteado, a manutenção dos instrumentos, além dos sinais de dedicação especial à saúde física e mental da criança.

Ocorre que, sozinha, a escola não é capaz de obrigar as famílias a aceitarem tudo disso. E nada indica que tudo se resolva pela “adesão aos valores burgueses”, por simples questões de status. Não é por mero acaso que o direito à educação tenha sido normalmente acompanhado também pela redução dos poderes do pai, que passa a sentir o peso da ameaça, sempre latente, da perda da guarda de seus filhos. Como também não surpreende que, ao longo de todo o século XIX, tenha se dado um lento processo de sedimentação de uma nova tecnologia de governo que assume primeiro a forma privada da filantropia e, mais tarde, a forma pública da “assistência social”. Esta terá como primeiro – e eterno – grande inimigo justamente o poder paterno, ao lado das relações sociais, dos costumes e dos direitos que o sustentam. Por outro lado, procurará fazer do poder materno um suporte mais confiável de governo à distância. Ou seja, seu passo fundamental será o de trabalhar sobre as diferenças de “interesse” que existem, mesmo que adormecidas, no interior de uma família. Uma das expressões mais bem acabada dessa reviravolta que tenta impor aos meios populares pode ser percebida no desenho da “habitação social”, oferecida geralmente em troca da garantia dos direitos trabalhistas e “sociais”. Nos termos precisos de um especialista contemporâneo, ela deveria servir de modo a

organizar um espaço suficientemente amplo para ser higiênico, pequeno o bastante para que só a família possa nele viver, e distribuído de tal maneira que os pais possam vigiar os filhos. Pretende-se que a habitação se transforme numa peça complementar à escola no controle das crianças: que seus elementos móveis sejam banidos para que nela possa imobilizar as crianças. A busca da intimidade, a competência doméstica proposta à mulher popular, são o meio de fazer aceitar, de tornar atraente esse habitat que passa, de uma fórmula ligada à produção da vida social, a uma concepção fundada na separação e na vigilância. Se o homem preferir o exterior, as luzes do cabaré, se as crianças preferirem as ruas, seu espetáculo e suas promiscuidades, será culpa da esposa e da mãe.53

Mesmo que mantendo uma devida distância, o novo sistema de assistência social induz a uma autovigilância das famílias populares sobre si mesmas convertendo questões de direito político em problemas de moralidade econômica, ameaçando assim direitos mais básicos, como a guarda dos filhos e a própria liberdade de seus membros. Para se fazer efetiva, ela arma um 53 Donzelot (1986: 46).

cerco de olhares que vão de sua própria vizinhança, passando pela escola, pela fábrica, pela Igreja, até o judiciário, de modo a transformar o lar numa verdadeira solitária coletiva de onde cada membro deve entrar e sair nas horas corretas, portando os objetos corretos, vestindo-se de maneira correta e normal, sob pena de ser repreendido não pelo Estado, mas mais imediatamente por outro membro da família. Desse modo, a assistência social demonstra o potencial de atualização do esquema panóptico para muito além da arquitetura fechada proposta por Bentham. Na impossibilidade desta, para garantir que a vigilância automática mantenha-se contínua, para iluminar o interior de uma habitação-solitária popular, ou mesmo (se modificarmos a escala) para iluminar o interior de um bairro popular “sombrio” onde sempre existem “interesses comuns”, ou seja, para induzir uma vigilância automática em qualquer interior onde habite uma multiplicidade enumerável de indivíduos ou coletivos dependentes entre si e que circula diferencialmente em espaço aberto, o dispositivo disciplinar aprendeu a associar sempre qualquer intervenção exterior aos conflitos ou diferenças de potencial (as diferenças de “interesse”, de “aspirações”...) nele existentes54.

Trata-se de uma das táticas mais propriamente covardes da história das técnicas de governo. Ela certamente não surge com a assistência social, bem como não foi utilizada apenas para controlar indivíduos no interior de uma família ou de um bairro. Serviu e serve para cortar laços de solidariedade no interior de presídios; para rachar movimentos populares, atiçando pequenas intrigas internas, via imprensa, via agentes infiltrados ou mesmo via chantagens e negociações a portas fechadas; pode-se também observar algo parecido nas relações entre Estados de primeiro e terceiro mundos, principalmente quando estes se vêm refém das decisões de poucas famílias... Mas nada se compara ao trabalho contínuo de conversão da multiplicidade popular urbana – organizada nas mais diversas formas, mas não em função de uma exigência de disciplina – num conjunto de famílias nucleares individualizadas e quase- independentes.