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Ao longo dos mais diversos processos de modernização – incluindo aí aqueles que ainda podemos presenciar – a infância, a adolescência e a juventude foram, de maneira geral, foco de preocupações específicas. Focos de preocupação servem correntemente como pontos de apoio para o desenvolvimento de saberes e táticas de governo. A infância, por exemplo, foi sempre um ponto de apoio central para a evolução das preocupações com a vigilância nas fábricas, nas escolas, nas casas de correção, nos lares burgueses e populares e nas ruas. Com isso, serviu também de instrumento para a emancipação do disciplinamento em relação aos espaços fechados e a todo um esquema religioso e elitista de lidar com o povo. A invenção da adolescência, por sua vez, trouxe consigo uma preocupação com a integração calculada na sociedade adulta. Historicamente, sem ela seria difícil para o meio participativo de governo ter a importância que teve como instrumento no interior de dispositivos de disciplinamento. Com a juventude, enfim, não foi diferente. Desde o princípio de sua valorização como personagem central para a política moderna, ela correspondeu a uma preocupação específica: aquela que diz respeito à “renovação” das sociedades. Não que as preocupações com a vigilância e a integração desapareçam quando se fala de jovens. Sabe-se bem o quão

impossível seria afirmar isso. Porém, é igualmente impossível não perceber o quanto essas outras preocupações são acompanhadas por um outro conjunto de questões quando se trata dessa categoria tão variável como a juventude – e não daquelas, muito mais determináveis, que são a infância e a adolescência. Outras questões que, de maneira muito geral, parecem estar permanentemente vinculadas ao tema da “renovação”.

Assim, ainda que de maneiras distintas, foi em função desse problema que tanto o saber nazista quanto aqueles que se dedicaram à construção da paz mundial no pós-guerra a puseram no centro de suas atenções. No primeiro caso, tal problema liga-se a uma estratégia explicitamente racista: renovar a sociedade é aí purificá-la e fortalecê-la para que possa sobreviver e cumprir uma nova etapa evolutiva da raça humana. O segundo caso é certamente muito mais complicado de ser analisado. Não por ser objetivamente mais complexo, mas pelo fato de ser um tanto mais íntimo e caro para os saberes que praticamos hoje – principalmente nós, cientistas humanos – quando precisamos lidar com o conjunto enorme de questões que cercam o tema da juventude.

Assim, justamente para tomar uma distância mínima em relação àquilo que em parte nos constitui, é interessante notar a maneira como esse novo saber começa a tomar forma ainda no entreguerras, num momento em que os problemas da paz e do dinamismo social tornam-se dois problemas maiores e irmãos para aqueles preocupados com o governo das nações – e das relações entre elas. Pois não é apenas o inglês Baden-Powell quem convoca seus boys para o novo desafio da paz, afirmando a necessidade de respeito às diferenças – inclusive quando se tratar daqueles “cujos crânios não são construídos para recepcionar os métodos escolares ocidentais modernos”96. Ainda que de maneira mais restrita, os responsáveis pelas relações

internacionais da Juventude Hitlerista não fazem de outra maneira. Nas palavras daquele que foi o líder máximo desse movimento de 1931 até a sua dissolução em 1945, Baldur von Schirach97, num material de divulgação preparado especialmente para os ingleses e intitulado

“A juventude alemã num mundo em mudança”:

96 Baden-Powell (1929: 28).

97 Vindo dos movimentos estudantis, em 1931 torna-se líder geral de todos movimento ligados ao Partido

A educação da juventude é um daqueles problemas que devem ocupar de maneira persistente a atenção de qualquer nação civilizada. E, para cada nação, a solução do problema é diferente por ser condicionado pelo caráter nacional. Além disso, eu sustento que não há outro ramo da ação pública tão bem apropriada para um intercâmbio internacional de ideias do que esse que é representado pelos educadores da juventude. Nas diversas nações civilizadas, quanto mais eles chegam a um entendimento mútuo a respeito de certos fundamentos principais da educação, maior é a probabilidade que a juventude de uma nação não desenvolva um espírito de rivalidade em relação à de outra nação, crescendo, antes, em relações amigáveis com os outros e preparando, assim, o solo para uma subsequente co-operação internacional. Pois a juventude de hoje será a liderança política de amanhã.98

Para além de uma política (e de uma propaganda) nazista de boas vizinhanças num momento delicado de consolidação do partido nacional-socialista no Estado alemão (e, portanto, na Europa), é preciso ver aí uma expressão de um saber efetivamente posto em funcionamento – e, talvez, de uma maneira ainda mais sincera e transparente (se é isso que importa...) do que no caso do escotismo inglês. Afinal, para este último, o respeito às diferenças aparece de modo repentino como um novo meio de lidar com os povos colonizados por seu próprio Império – e com o objetivo de assim mantê-los, é claro. Os nazistas, por sua vez, falam ainda em nome de uma nação que se encontra em processo de reconstrução após terem sido punidos exatamente por aqueles a quem se dirigem respeitosamente como iguais – ainda que diferentes. Assim,

(…) a primeira condição a ser preenchida é a de que, todos aqueles que encontram-se engajados nesse trabalho devem estar determinados a renunciar ao pensamento de infectar com ideias políticas as mentes da juventude de nações estrangeiras quando estas lhes forem confiadas.99

98 Hitler Youth (1936: 27). Tradução livre para: “The education of the youth is one of those problems which

must persistently occupy the attention of every civilized nation. And for each nation the solution of the problem is different, because it is conditioned by the national character. Yet I hold that there is no other branch of public effort so well suited for an international exchange of ideas as that branch which is represented by the educators of youth. The more the educators of youth in the various civilized nations succeed in coming to a mutual understanding on certain fundamental principals of education, so much greater is the probability that the youth of one nation will not develop a spirit of rivalry towards that of another nation, but rather grow up in friendly relations with the others, and thus prepare the ground for subsequent international co-operation; for the youth of today will be the political leaders tomorrow”.

99 Hitler Youth (1936: 27). Tradução livre para: “(…) the first condition to be fulfilled is that all those who are

engaged in this work must be determined that when the youth of foreign nations are entrusted to them they will absolutely renounce the thought of infecting the minds of this youth with political ideas”.

Seria essa uma perspectiva estranha vinda de quem dentro de seu próprio país prega justamente a politização de sua juventude como caminho para a afirmação de sua superioridade racial? A resposta sempre será positiva se cobramos do sujeito do enunciado uma coerência abstrata, não situada, de “princípios”. Mas isso não ajuda a pensar como as coisas acontecem da maneira como acontecem. Como já dito, trata-se de um enunciado com direção, ou seja, determinado por uma relação que se dá num determinado momento. É preciso lê-lo em termos táticos, como variação de um saber numa dada situação. Assim, ao invés de procurar (e então encontrar) uma mentira, um blefe, é preciso ver aí algo como uma maneira de construir relações de aliança com outras nações. Uma maneira que, entretanto, supõe a identificação prévia de uma igualdade mínima entre os diferentes: a igualdade racial.

O novo posicionamento do escotismo inglês faz o mesmo com relação aos seus (assim chamados) “nativos”. Quando estes são incluídos entre os merecedores de respeito apesar de sua diferença frente a um inglês passar pela constituição biológica de seus corpos, o que está se operando é sua inclusão no interior de uma comunidade racial ou, em todo caso, natural. A partir daí a diferenciação já não será vinculada à dimensão espacial, à parte da Terra onde se nasceu, à nação da qual se faz parte. Ela será transferida para a dimensão temporal: os “nativos” agora já podem ser considerados, sem mais dúvidas, como uma parte da humanidade; eles apenas encontram-se fisicamente e intelectualmente atrasados em relação aos “ocidentais modernos”, vivendo ainda num estágio há muito ultrapassado por estes. Na prática, aquilo que varia entre os escoteiros ingleses e os nazistas alemães é somente o fato dos primeiros abrirem (ao menos por hipótese) a possibilidade de tais “nativos” terem sua evolução acelerada através da imposição de uma política imperial renovadora, enquanto que os segundos restringem essa possibilidade apenas a uma parcela seleta de brancos não contaminados por impurezas degenerativas – entre eles, uma parcela dos próprios ingleses. Entretanto, possível ou não, a renovação em questão é nesse momento colocada na posição de objetivo estratégico de governo. Pensada em função de um saber por demais disciplinado e disciplinador, ela é algo passível de ser planejado, uma evolução que tem um termo, um ponto de conclusão, mesmo que temporário. O que, então, pode acontecer a esse esquema quando a chamada sociedade moderna – cada vez mais identificada com o meio urbano e impulsionada

por um novo ritmo de renovação tecnológica – devém “dinâmica” do ponto de vista dos saberes que procuram definir os meios de seu governo? Pois é disso que se trata para uma série crescente de intervenções orais e escritas em países onde vigoram princípios democráticos ou republicanos e que ganham força na mesma medida em que se amplia a desconfiança com “verdadeiros propósitos” do nazismo e com o avanço do “socialismo real” mundo afora. No centro desse deslocamento, a juventude. E ao seu lado, a ciência que mais lhe acompanhou ao longo do século XX (certamente não por acaso): a sociologia.