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organizar a juventude em movimentos

Do ponto de vista dos adultos, crise educacional, crise de adaptação dos métodos educacionais em relação às ‘novas necessidades’ impostas pelo grande Progresso da raça, ‘necessidades’ que ao mesmo tempo permitiriam às elites uma nova chave de diferenciação social. Entretanto, do ponto de vista de pelo menos alguns jovens, filhos queridos das eras vitoriana e bismarkiana, filhos das public schools, filhos da 2ª Revolução Industrial e da ‘era dos impérios’, filhos da nova religião do progresso, que é também a religião do ‘indivíduo’, a crise é civilizacional. Da posição desses jovens cujo destino já estava traçado, seja em direção à administração dos negócios da família, seja em direção aos cargos públicos, jovens verdadeiramente presos no interior de uma rede de vigilâncias sem fim, sem lado de fora, o progresso aparece como seu inverso, como ‘degeneração’.

Uma solução das mais famosas atualizadas por esses jovens foi a formação de pequenos bandos e a fuga, pelas mesmas vias utilizadas pelas organizações de lazer, em direção à ‘natureza’, movida a uma curiosa paixão pelas longas caminhadas e pelos acampamentos. A natureza, mais uma vez feita meio concreto de exílio, será também meio de regeneração e meio de condução de um êxtase coletivo, em volta da fogueira, numa comunhão à base de músicas populares ‘antigas’, poesias carregadas de ‘sentimentos verdadeiros’, histórias das mais diversas guerras descobertas em livros escritos por generais e outros heróis nacionais. Contudo, assim como os sujeitos envolvidos não se reivindicam como ‘adolescentes’ e, sim – na contramão das novas estratégias educativas – como ‘jovens’, o êxtase já não redunda numa função psicopedagógica – que inclusive era provavelmente pouco conhecida. O meio natural é aí meio de conexão com uma temporalidade mítica e, através dela, com um outro destino, menos familiar, menos individual, e mais ‘nacional’, mais coletivo e principalmente mais autônomo em relação à vigilância e ao comando dos mais velhos.

Eis que, em meio a essa crise educacional e civilizacional, geracional e política, acontece a criação de um ‘movimento’ – e não de uma ‘instituição’ – que promete ao mesmo tempo:

 Ser capitaneado pelo máximo possível de pessoas e instituições especializadas no trato com os jovens, por aqueles que querem e buscam o melhor para os jovens.

 Ser não sectário, não partidário, não religioso, não sendo ao mesmo tempo contra nenhum partido, seita, religião, ou seja, um movimento que promete não interferir “em nenhuma questão debatível”.

À família ou aos responsáveis, “um filho mais útil e appreciative [elogioso, agradecido]”, e principalmente que promete não tentar substituí-la, nem ameaçar interferir nas suas decisões internas, ou seja, que se propõe a entreter seus filhos até o serviço militar no máximo, não adentrando o período de contração de alianças matrimoniais, normalmente efetuadas após aquele serviço.

 À escola, recorrer à mais avançada psicologia para colaborar no treinamento do caráter, na educação moral, oferecendo-lhe “um estudante mais diligente [zeloso, cuidadoso, ativo, pronto, rápido] e obediente”, sem com isso concorrer com ela e sem deixar de conferir o “devido valor” à instrução científica.

 À comunidade, “uma ajuda mais valiosa na promoção de seu progresso material e

proteção”, garantindo a participação de seus membros mais ilustres no comando da empreitada, bem como um retorno civilizado dos bandos juvenis às suas ruas, agora como oposição exemplar aos bandos desordeiros e vagabundos de jovens trabalhadores.

 Ao Estado, “um jovem homem mais eficiente e melhor preparado no desenvolvimento

para a cidadania futura e para os prazeres e sofrimentos da existência madura”, procurando não apenas servir por fora, como organização privada (que portanto poderia oferecer oposição, dependendo da conjuntura), mas se ligar organicamente à aparelhagem de Estado, mesmo que não cogitando se transformar num elemento estatal; uma organização que promete fazer do rei (e não deste ou daquele líder político) seu verdadeiro ‘patrono’; que busque servir, portanto, ao Estado como corporificação da nação (e não a este ou aquele grupo que se encontra em sua direção); uma organização que, assim, colabore com seus setores mais avançados, como a polícia, os bombeiros, os hospitais, as campanhas, e que em regimes monárquicos faça do rei (ou o príncipe) a sua maior autoridade, seu ‘patrono’.

 Enfim, aos mais jovens, que seus desejos por aventura, pelas caminhadas, pela natureza, pela música tradicional, pelas histórias dos campos de batalha, por escapar à vigilância escolar e familiar para se congregar a seu bando de jovens – e com eles realizar aqui e agora um mundo menos degenerado – não serão satisfeitos apenas por alguns poucos momentos, mas a todo momento; que pertencerão continuamente a um ‘movimento’ no qual aprenderão todo um imenso conjunto de técnicas de sobrevivência na natureza e de ajuda no meio urbano; que portanto serão tratado como sujeitos ativos e autônomos, confiáveis e responsáveis, como sujeitos de comunicação e não objetos (mudos) de vigilância; como ‘jovens’ responsáveis que se preparam para serem homens e não como ‘adolescentes’ que precisam ser simplesmente entretidos; como verdadeiros “cavaleiros”, como os heróis medievais, entre companheiros, irmãos mais novos e mais velhos, e não como meros soldados, isolados perante olhos superiores.

Uma das primeiras organizações a se colocar nessa posição, a oferecer tal ‘serviço’ às nações, foi o Boy Scouts Movement, o Movimento Escoteiro, já na primeira década do século XX, principalmente na Inglaterra e nos EUA. Ele guarda até hoje consigo uma combinação estranha, muito específica, que se traduz numa trajetória igualmente estranha e específica. Surge como uma solução perfeitamente encaixável no interior do dispositivo de disciplinamento dos mais jovens, combinando a ‘abertura’ ao lazer juvenil e aos esportes com todo um sistema organizativo e simbólico militar e ainda com alguns dos princípios pedagógicos mais liberais e cientificamente informados do começo do século XX. Invenção tão perfeita que, mesmo após a 1ª Guerra Mundial calar um tanto do êxtase bélico europeu e tornar obsoletas as técnicas de sobrevivência ensinadas pelo movimento, ele se difunde mundo afora e ganha dois milhões de membros em pouco mais de uma década. Seu ‘método’ é admirado e reivindicado tanto pela Liga das Nações, pelo novo pacifismo dos Estados vencedores, quanto pelas organizações juvenis mais ‘autonomistas’ e ‘guerreiras’, como a Juventude Hitlerista. E, para finalizar esse estranho currículo, o escotismo continuou crescendo mesmo após a 2ª Guerra Mundial, quando uma série de valores e métodos disciplinares começaram a perder sentido, quando ele mesmo vai aos poucos se transformando num objeto de chacotas públicas. Hoje, ele sobrevive, muito bem por sinal, com 38 milhões de

membros registrados ao redor do planeta, apesar de já não ser, definitivamente, uma grande opção pedagógica em lugar algum.

Porém, o Movimento Escoteiro é apenas uma organização específica e concreta por meio da qual foi agenciado todo um conjunto mais ou menos organizado de técnicas que de maneira alguma lhe pertence com exclusividade. Como o próprio líder máximo do movimento, General Baden-Powell, chegou a afirmar:

Não havia nada especialmente original no Escotismo. Trata-se de uma evolução natural de muitas ideias reduzidas a um sistema, sendo o seu ponto principal o de reconhecer as necessidades básicas da nação e o de ter um sistema elástico por onde encorajar o futuro indivíduo cidadão a desenvolver em si mesmo as qualidades que são desejadas.64

É justamente esse sistema, ou melhor, esse meio – esse “where-through” – aquilo que mais se espalha ao longo das primeiras décadas do século XX, para muito além do escotismo. Concretamente, no caso desse movimento, a parte mais visível desse meio – ou seja, jovens organizados em pequenas ‘tropas’, quando não enfileirados, uniformizados num estilo parecido ao militar, com distintivos e armas penduradas... – pode conduzir hoje à percepção de que se trata simplesmente de uma disciplinarização autoritária e militarizada de adolescentes indefesos, no mínimo ingênuos. Algo que, com bastante frequência, se vê remetido ao fantasma do nazismo, que é um outro nome para o fantasma da desumanidade. Apenas um detalhe em qualquer foto dos mais antigos coletivos escoteiros confunde essa percepção: o permanente sorriso no rosto de cada escoteiro. Como se apenas por meio disso se pudesse encontrar algo como uma ‘humanidade’ juvenil. Mas as aparências enganam, como já enganavam desde o começo:

Eu fui frequentemente convidado a explicar o porquê de nós, de todas as organizações de meninos, nunca termos nos filiado ao Movimento de Cadetes. Nossa principal razão para nos mantermos distantes e continuar a treinar os meninos nas linhas do Escotismo, mesmo durante

64 Baden-Powell (1929: 10). Tradução livre para: “There was nothing specially original about Scouting. It is a

natural evolution of many ideas reduced to a system, the main point about it being to recognise the basics needs of the nation and to have an elastic system where-through to encourage the individual future citizen to develop in himself the qualities that are wanted”.

a guerra, era que a tendência do treinamento militar é a de instruir a partir de fora, pela imposição de instrução e ordens sobre a massa, ao invés de educá-los individualmente a partir de dentro, no caráter e na auto-disciplina – o que, após tudo, é a base da eficiência, seja no soldado, no marinheiro ou no cidadão. O objetivo do Movimento de Cadetes é, presumivelmente, como o de todos os Escoteiros, prover um ambiente e atividades no tempo de lazer dos meninos em linhas complementares à escola. Mas oferecer o velho estilo da instrução imposta não parece ser nem algo que mereça congratulações nem algo complementar aos métodos dos educadores modernos, como também não acompanha as necessidades dos tempos.65

Mesmo o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista, nunca permitiu que sua Juventude se submetesse aos métodos militares, e pelo mesmo motivo – a dita ineficiência de se impor algo desde fora aos mais jovens.

De fato, ao menos ao longo da primeira metade do século, movimentos juvenis como esses não pararam de estender, de intensificar e de diversificar um imenso dispositivo de disciplinamento. Mas isso não diz nada a respeito de seu diferencial frente as demais soluções que aparecem mais ou menos no mesmo período e que também não puseram os meios disciplinares completamente de lado para lidar com os mais jovens. Mesmo a escola nova e o marxismo renovado do italiano Gramsci, ainda tão louvados atualmente, não fogem a essa verdadeira regra prática.

Muito pelo contrário, se há algo que diferencia desde o início o meio agenciado pelos movimentos juvenis dos demais, e não apenas em relação à escola e à patronagem mas também ao exército, é algo que deixa com rastro justamente o sorriso escoteiro. Para ser mais preciso, trata-se de algo implicado entre esse sorriso e a palavra de ordem selecionada por

65 Baden-Powell (1929: 18). Tradução livre para: “I have frequently been called on to explain why we, of all the

boys’ organizations, have never affiliated ourselves to the Cadet Movement. Our main reason for holding ourselves aloof and continuing to train boys on Scouting lines, even during the war, was that the tendency of military training is to instruct from the outside, by the imposition of drill and orders on the mass, instead of educating boys individually from within in character and self-discipline – which, after all, is the basis of efficiency, whether in the soldier, the sailor, or the citizen. The aim of the Cadet Movement is presumably, like that of the Scouts, to supply an environment and activities in the boys’ leisure time on lines complementary to school. But to offer the old style of imposed instruction seems neither complimentary nor complementary to the modern educationists’ methods, nor in keeping with the needs of the times”.

Baden-Powell – “encorajar o futuro indivíduo cidadão a desenvolver nele mesmo as qualidades desejadas”. Trata-se da utilização de todo um conjunto de procedimentos muito distinto do disciplinar e que aqui gostaríamos de nomear como participativo.

Participar

Conforme apresentado na primeira parte desta tese, o disciplinamento faz uso corrente de quatro grandes técnicas, cada qual correspondendo à produção de um tipo de individualidade ou, como preferimos, de “individualização”. São elas: a construção de quadros, que corresponde a uma individualização “celular”; a prescrição de manobras, que conduz a uma individualização “ergonômica”; a imposição de exercícios, que se liga a uma individualização “genética”; e a organização de táticas, que demandam uma individualização “orgânica”66.

Cada uma se dá em relação a um domínio distinto de realidade: o da extensão, o da duração, o da relação humano-artefato e o da maquinação simultânea de todos os domínios anteriores. Trata-se tão somente do funcionamento mais abstrato de um meio de governo que pode ser colocado em ação de diversas maneiras.

Movimentos juvenis como o escoteiro são em grande medida como Mettray, “escolas” de disciplina, meios disciplinares nos quais a disciplina é também o principal aprendizado. Percebe-se isso, por exemplo, na centralidade que possui para eles o acampamento do tipo militar, um pequeno dispositivo que chegou a ser chamado de “modelo quase ideal” para os 66 Foucault (1987: 141).

observatórios humanos do tipo panóptico:

É a cidade apressada e artificial, que se constrói e remodela quase à vontade; é o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade, mas também mais discrição, por se exercer sobre homens de armas. No acampamento perfeito, todo o poder seria exercido somente pelo jogo de uma vigilância exata; e cada olhar seria uma peça no funcionamento global do poder. O velho e tradicional plano quadrado foi consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas. Define-se exatamente a geometria das aléias, o número e a distribuição das tendas, a orientação de suas entradas, a disposição das filas e das colunas; desenha-se a rede dos olhares que se controlam uns aos outros.

(...) O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral. Durante muito tempo encontraremos no urbanismo, na construção das cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de educação, esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta: o encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas. Princípio do "encastramento". O acampamento foi para a ciência pouco confessável das vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica.67

Além do agenciamento ótico de automatização da vigilância, ainda no acampamento podemos encontrar também as quatro operações centrais da disciplina moderna, bem como as quatro individualizações correspondentes a elas. Primeiro, o levantamento de um acampamento é a construção de um “quadro vivo”, de um pequeno jardim de barracas, cada uma se constituindo como uma individualidade celular que ocupa uma posição numa fila. E mesmo que o acampamento seja apenas uma espacialização física temporária, num sentido mais abstrato tal operação funciona continuamente no nível do controle de informações, ou melhor, do controle dos corpos pela escrita centralizada, cada indivíduo tendo seu número de inscrição, uma posição no rank escoteiro, uma ficha preenchida continuamente por um superior adulto, às quais são anexados os seus próprios textos-relatos.

Em segundo lugar, a própria montagem do acampamento, como nas marchas e apresentações e sistemas de sinalização à distância, envolve o treinamento de manobras, de maneiras de articular uma sequência de gestos corporais com os instrumentos de produção – uma 67 Foucault (1987: 144).

individualização orgânica. Em terceiro lugar, também decompõe o tempo em sequências, organiza e finaliza essas sequências em etapas e provas (“quem consegue montar uma tenda em menos tempo?”), e estabelece séries dentro de séries, prescrevendo em cada momento um posto no interior de um conjunto articulado de posições e tarefas – promovendo portanto uma individualização ‘genética’. Num nível mais geral, da mesma maneira que no exército, tal decomposição se confunde com a própria hierarquia do movimento, cada etapa correspondendo a um grau superior de autoridade.

Enfim, não restam dúvidas de que os acampamentos dos movimentos juvenis mais admirados são justamente aqueles em que a composição do tipo ‘tática’ ou ‘combinatória’ das forças individualizadas é empregada na mais perfeita regularidade, sob o mais discreto dos comandos superiores. Por sinal, os escoteiros são famosos por suas linhas de comunicação por sinais. Entretanto – como também já afirmado – tudo isso é insuficiente para descrever o funcionamento mais geral e abstrato das relações de governo que esses movimentos juvenis põem em funcionamento. Aquilo que permite à disciplina continuar operando mesmo após desfeito o acampamento, mesmo fora de qualquer exílio e, portanto, fora do alcance de quaisquer olhos superiores, é outra maquinação, outra diagramação das forças.