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Todas as primeiras grandes revoluções burguesas, como se sabe, deram-se contra os excessos dos poderes soberanos. Não apenas contra os abusos no exercício de seu direito de morte e contra o aumento do excedente extraído na produção, mas também contra o crescimento de sua presença na vida dos menores povoados, concretizada por meio das primeiras instituições voltadas tanto ao cumprimento das leis quanto ao governo, à administração das vidas familiares locais conforme as necessidades do Estado – instituições que em tantos lugares ganharam o nome de polícia. O saber liberal desenvolvido pelos mais ilustrados dentre os descontentes, nos mais variados lugares, em diversos períodos revolucionários, se acostumou a responder a esse avanço do domínio soberano colocando um problema: como “economizar” a inspeção, como fazer com que ela se reduza à mais estrita utilidade e não apenas do ponto de vista de alguém, mas para “todos”, para a “sociedade”, para a Humanidade?

Uma famosa e “simples idéia de arquitetura”, relatada em 1791 por um ilustre jurista e filósofo inglês, Jeremy Bentham, pode ser tomada como a concretização limite dessa necessidade de economia. “Panóptico” é o nome da invenção e, como já afirmava há mais de trinta anos um de seus mais arrojados analistas, “o princípio é conhecido”:

na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível.16 (Foucault 1987: 165-6)

Por meio do cálculo perfeito de um jogo de luzes que dissocia a correspondência entre ver e ser visto, nessa arquitetura-limite, a inspeção simplesmente não necessita de qualquer inspetor para ser absoluta. Ou seja, no interior de um edifício como esse, essa dissociação não faz da inspeção um ato pontual e insuspeito de espionagem; ao contrário, ela serve precisamente para fazer com que todos suspeitem a todo momento que estão sendo observados, automatizando um assim chamado “monitoramento”.

Para dizer tudo em uma palavra, ver-se-á que é aplicável, penso eu, sem exceção, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, num espaço não demasiadamente grande para que possa ser controlado ou dirigido a partir de edifícios, queira-se manter sob inspeção um certo número de pessoas.

Mas – para quais funções concretas, mais exatamente, serviria colocar “um certo número de pessoas” sob inspeção automática no momento em que a inspeção soberana se vê questionada?

Não importa quão diferentes ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de punir

o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em

qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões

de confinamento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas.17

16 Foucault (1987: 165-6).

Em primeiro lugar, nota-se a existência de dois conjuntos de funções. Punir, encerrar e confinar são funções negativas assumidas por prisões e penitenciárias num momento em que essas instituições ainda não são preenchidas pela carga humanista da “correção” ou da “ressocialização”. Não por acaso, dirigem-se a casos extremos: o “incorrigível” e o “insano”, como pólos opostos respectivamente à natureza e à razão, que só podem ser completamente exilados de qualquer contato com outros humanos, e o “suspeito”, ou seja, aquele que ainda não pode ser punido. São funções que, ao fim, exploram pouco ou quase nada do potencial do “dispositivo” visto que a própria inspeção se torna inútil frente a única necessidade de enjaular. Apesar de recorrer a celas, a inspeção assim organizada serve mais propriamente para funções positivas: reformar, empregar, manter, curar, instruir, treinar. São essas também as que mais interessam a Bentham e, dentre elas, especialmente as funções de instrução e treinamento.

Se a possibilidade de realização dessas funções no interior de um edifício panóptico é central, é justamente porque em torno dela convergem simultaneamente a crítica aos abusos soberanos e os mais incríveis efeitos positivos. No caso de um confinamento por apenas algumas horas de estudo, conforme o relator, não haveria motivos de objeção – lembrando-se que aí pequenas “partições” e telas seriam suficientes. A dúvida aparece, entretanto, com força quando o regime de internato é posto como possibilidade. Seria algo excessivo? Seria pressão demais? Acarretaria numa “perda de energia”?

A resposta é dupla. Por um lado, o único meio de julgar de fato a pertinência de tais questionamentos tipicamente liberais seria pela sua confrontação com um resultado no qual a única medida deve ser a felicidade dos internos – “chamem-los de soldados, chamem-los de monges, chamem-los de máquinas: enquanto forem felizes, não devo me preocupar”. Por outro lado, Bentham admite: Rousseau não colocaria Emílio numa “casa de inspeção” como essa. “Mas imagino que ele ficaria feliz em ter uma escola desse tipo para Sofia”18. Não que a

educação de Emílio não demande uma certa vigilância, mas no interior de uma arquitetura como essa coloca-se apenas quem está destinado à “docilidade” e à “obediência” – e que, supõe-se, pode ser enjaulado por algum tempo, que pode ser submetido a uma série indefinida 18 Bentham (2008: 77-8).

de “experiências” importantes do ponto de vista do próprio Esclarecimento sobre a humanidade. É nesse ponto do relato, preenchido com as mais variadas fantasias laboratoriais, que o potencial mais abstrato encarnado por esse dispositivo arquitetônico aparece em toda a sua grandeza.

Homens de partido, polemistas de todo o tipo e todos os outros epicuristas, cujas bocas salivam diante das benesses do poder, poderiam, aqui, proporcionar para si próprios um rico banquete, adaptado a seus vários gostos, livre do gosto amargo da contradição. Dois mais dois poderia, aqui, ser menos do que quatro; ou a lua poderia ser feita de queijo verde, se qualquer fundador piedoso, suficientemente rico, optasse por tê-la feito daquele material.19

Em outros termos, um tal dispositivo concretiza uma função política altamente abstrata: impor

uma tarefa ou um comportamento quaisquer a uma multiplicidade qualquer de indivíduos, sob a única condição de que a multiplicidade seja relativamente pouco numerosa e o espaço delimitado, relativamente pouco extenso20.

Ocorre que a máxima economia no plano da inspeção não corresponde necessariamente a uma economia no plano monetário. Como se pode imaginar, o custo de construção de edifícios panópticos não é pequeno. Logo, não estranha que tal empreendimento tenha sido utilizado apenas de maneira excepcional e justamente para a “correção” dos indivíduos mais “incorrigíveis” do povo trabalhador, principalmente mulheres e crianças – estas muitas vezes encaminhadas por seus próprios pais. Em todo caso, ao menos desde Bentham e durante o século XIX inteiro, descobrir maneiras de automatizar a vigilância e impor tarefas e comportamentos quaisquer foi provavelmente uma das ocupações mais comuns aos mais ilustres “reformadores sociais”. Assim, não é por mero acaso que a função abstrata do esquema panóptico seja posta em funcionamento das mais diversas maneiras justamente no

19 Bentham (2008: 80).

20 Propomos aqui uma pequena variação na definição proposta por Deleuze em uma de suas mais certeiras

análises da obra de Foucault. Nela, o diagrama panóptico é definido pela função de “impor uma tarefa ou um comportamento quaisquer a uma multiplicidade qualquer de indivíduos, sob a única condição de que a multiplicidade seja pouco numerosa e o espaço limitado, pouco extenso” (Deleuze, 2005: 80). Consideramos que ao relativizar as dimensões quantitativa e extensiva da função garantimos de maneira mais precisa o seu caráter abstrato. Afinal, historicamente, podemos observar sua aplicação em multiplicidades de indivíduos que se contam em dezenas ou em milhares. Em relação ao espaço, na medida em que podemos encontrar essa mesma função operando em espaços abertos, a noção de “delimitação” nos parece mais apropriada.

momento em que ganha força a crítica aos exageros de sua versão mais ideal. É em meio a essa diversificação que os mais desfiliados dentre os filhos do povo e os mais protegidos herdeiros das elites se encontram, ao fim, submetidos ao mesmo meio de governo. Dentre toda a população, serão eles os alvos centrais daquilo que ficou conhecido como disciplinamento. Grande ou pequena, central ou periférica, a burguesia – que já não cultivava grandes preocupações com a ancestralidade – inaugura uma preocupação com a descendência, com a herança de seus bens, e não de seus nomes, de suas famílias ou sua maneira de viver. Aquilo que a classe esclarecida dos proprietários fará com seus herdeiros pode talvez ser percebido como a primeira solução positiva contra a principal “peste” que lhe preocupa e que, com nojo, chama de “povo”. A este faltará sempre algo como uma “economia social”, um mínimo de “moralidade”, de “boas maneiras”. Justificativas mais do que suficientes para que as igrejas se engajem em suas obras – enquanto garantem sua centralidade na vida burguesa, onde participam das decisões referentes às alianças matrimoniais. Mas justamente na medida em que os próprios lares burgueses se vêem povoados e empesteados pela presença constante de serviçais (como amas-de-leite), a preocupação com a descendência se atualiza num diagnóstico que aponta para a ausência de uma economia do corpo. É em torno desta que surge o médico da família – inimigo por excelência do padre. Tanto contra a liberação irresponsável quanto contra o confinamento total, contra a “artificialidade” de ambas essas soluções e as doenças causadas por elas, desenvolve-se uma estratégia própria de “liberação protegida”21.

liberar ao máximo a criança de todas as suas constrições, de tudo o que entrava a sua liberdade de movimento, o exercício do corpo, de modo a facilitar ao máximo o possível o crescimento de suas forças, protegê-la ao máximo dos contatos que possam feri-la (perigo físico) ou depravá-la (perigos morais, das histórias de fantasmas ao rapto sexual), portanto, desviá-las da linha reta de seu desenvolvimento. Daí a vigilância dos serviçais, a transformação da moradia familiar num espaço programado com o objetivo de facilitar as brincadeiras da criança, de controlar facilmente os seus movimentos.22

21 Donzelot (1986: 15-49). 22 Donzelot (1986: 24).

A preocupação com um controle “econômico” dos corpos infantis conduz a casa burguesa a se tornar um dos primeiros “estabelecimentos” a terem seus funcionamentos regularizados com base numa série de pequenos truques panópticos – que ainda hoje qualquer criança “de família” conhece. Repartida por domínios de intervenção religiosa e médica, ela adquire a aparência de uma estufa aquecida, de um útero expandido. Afinal, trata-se de fazer com que tudo se passe da maneira mais “natural” possível.

Quando então, numa idade um pouco mais avançada, mesmo esse novo útero, esse corpo expandido da mãe que é o lar, já não se mostra suficiente para proteger a criança, e quando a instrução mais fundamental já parece concluída, tem vez um processo de “educação”, “treinamento” ou “formação”, o qual envolve, normalmente, o recurso a um longo exílio em regime de “internato”. Ali os futuros dirigentes, industriais e intelectuais experimentariam uma carga pesada de leituras. Muitas e muitas “letras”, além de teologias e ciências. Ali construiriam amizades – ainda que extremamente vigiadas – e ali teriam um pouco de divertimento. Ali cultivariam belos jardins. Ao fim, independentemente do credo e dos focos de instrução, relativamente diversificados, ali seus corpos seriam submetidos a uma “economia” muito mais meticulosa, a uma verdadeira “disciplina” e, sobretudo por isso, dali deveriam sair quase-homens – restando apenas o serviço militar e o matrimônio.

Uma grande parte dos “grandes homens” do século XIX – e, entre eles, os brasileiros – foram assim educados. Por um momento, eles foram “internos”. Após isso, um corpo nunca mais é o mesmo. Ainda que não seja assim formulado, não é muito dizer que se trata de um primeiro “racismo” das elites modernas. Racismo exclusivo, que opera por produção de um corpo diferenciado, um corpo à prova da peste popular.

Porém, “internos” foram também alguns “jovens homens” do povo, principalmente entre os mais desfiliados – os mais “incorrigíveis”. Nesse caso, o regime de internato disciplinar poderia ou não entrar em meio à sequência de pequenos exílios forçados. Para os que lhes ofereciam a mais rígida disciplina, tratava-se acima de tudo de um desafio cujos resultados positivos seriam publicados como resposta aos que insistiam em negar ao povo o “privilégio” de ser fisicamente e moralmente disciplinado. Os reformadores sociais – que atualizam o humanismo de Bentham e apostam nas virtudes dos confinamentos panópticos para induzir de

maneira suave à disciplina individual – não fazem pouco ao defender sua causa. Eles simplesmente contestam o caráter exclusivo do “racismo” das elites, apostando, ao contrário, no seu potencial inclusivo. Para os próprios internos, entretanto, podia ser o pior dos castigos. E não se trata de algo incompreensível para um doutor em Direito que dedica algumas dezenas de páginas para elogiar uma colônia agrícola dedicada a disciplinar pequenos vagabundos ainda “sem discernimento”.

uma grande quantidade de crianças, nos primeiros dias de suas chegadas em Mettray, demandam instantaneamente serem reintegrados nas casas centrais; lá eles estavam em torno de uma boa panela com hábitos quentes e além do mais com a fuga ao alcance; lá, pelas suas piores palavras e pelas suas piores ações, eles estavam mais livres e não temiam as punições contínuas.23

Como já dito, o meio disciplinar opera a imposição de tarefas e comportamentos. Mas não é simplesmente isso o que causa tanto pavor naqueles que se vêem mergulhados no seu interior. Para experimentar de maneira mais detalhada sua força, atentemos em seguida para as quatro operações que, segundo sua mais famosa análise24, definem a maneira como esse meio,

agenciado panopticamente, impõe aquilo que se deseja: a construção de quadros vivos, a prescrição de manobras, a imposição de exercícios e a organização de táticas.