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“Nenhuma ruptura nos muros, nada passa, tudo se perde. Sente-se que a limpeza e a regularidade são mortais.; o ar, circundando à vontade, empesteia a baixa tirania na divisibilidade de seus poderes. Caminha-se sem fazer eco; antes dos carcereiros, as coisas fazem sinal para se calar e mandam sofrer […] o oxigênio exterior […] é indulgentemente substituído por uma saída de ar que, pela disposição do cano, faz desaparecer a voz do detento, se este tenta uma comunicação através dele. O lugar da latrina, que cada cela possui, também é construído segundo esse método da surdez, que enterra a voz e a vida sem matá-las.

[As portas das celas] são atravessadas por um buraco de cinco centímetros, guarnecido de vidro, e coberto com um disco opaco que, conforme a vontade do vigia, desaparece na espessura da madeira, para poder espionar furtivamente o interior da cela minúscula41. Esse

olho da porta, cego e vidente ao mesmo tempo, invade inesperadamente as ações do detento, que, cheio de tédio e de inquietação, se sente amarrado pela corrente desse olhar abominado […] à noite um bico de gás ilumina o condenado, que, perturbado durante o sono por essa

41 O exemplo é bom justamente pelo fato da prisão em questão não seguir estritamente o projeto arquitetônico,

concreto, de Bentham, no qual “a circunferência interna da cela é formada por uma grade de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor” que se encontra na torre central (Bentham 2008: 21). Como diagrama, o panóptico se atualiza por diferenciação (Deleuze 2005).

chama de suplício, amaldiçoa mais uma vez seu destino e, sem poder se adaptar ao seu inferno, percorre com o olhar a sua cela, procurando encontrar o olho traiçoeiro do carcereiro, que mexe no buraco da porta. (Gauny apud Rancière 1988: 93-4)

Trata-se do relato de Gauny, um operário da construção civil que nas horas vagas atreve-se a escrever ficções como essa, em que o narrador é um “trabalhador rebelde” que consegue uma visita na recém inaugurada prisão de La Roquette, mais uma grande novidade arquitetônica que, em fins da década de 1830, atualiza mais uma versão da grande solução panóptica. É o resultado de um primeiro encontro com um mundo – e não apenas um edifício – totalmente construído conforme as necessidades do disciplinamento. Nele não se encontra a conhecida denúncia da ausência de aplicação do caráter humanista do projeto – que até hoje causa indignação aos mais ilustres visitantes humanistas que, entretanto, geralmente carregam a certeza de que nunca irão viver ali. Ao invés disso, nele é realçada uma realidade onde “a limpeza e a regularidade são mortais”, onde a voz e a própria “vida” podem ser enterradas sem serem mortas, onde o mero olhar do vigia pode funcionar como a corrente de um carrasco. Uma leitura atenta desse relato desdobrou da seguinte forma essa sua percepção:

O dispositivo panóptico tem menos o efeito de assegurar a tomada de conhecimento pelo aparelho penitenciário dos fatos e gestos do detento, que o de despojá-lo daquilo que escapa

ao conhecimento, daquilo que o faz existir em outro lugar e de uma forma diferente daquela que existe no olhar do patrão.

Aos discursos modernos que opõem o conhecimento penitenciário sobre o indivíduo e a recuperação do espírito delinqüente ao escândalo antigo dos suplícios, o olhar do operário rebelde replica com uma outra imagem, na qual a vigilância não tem outra função a não ser a do suplício. O vigiado não é um homem que se observa e corrige, é um refém que se empareda. A arquitetura celular realiza essa nova tortura.42

A exclusão simples operada pelo exílio pode prender o corpo físico, mas isso não é tudo. Se a fuga física encontra-se bloqueada, o que resta não é somente um “indivíduo” com sua interioridade particular e subjetiva. Existe ainda sempre a possibilidade de uma fuga

“espiritual” do corpo, existem suas capacidades extáticas, aquilo que lhe permite “existir em outro lugar e de uma forma diferente daquele que existe no olhar do patrão” – ou do carcereiro, ou do professor, ou de qualquer outro agente disciplinar.

Tema aparentemente constante para os que sofrem e os que convivem mais diretamente com essa “nova tortura” que vem preencher o vazio da “pena de detenção”. Podemos reencontrá-lo, por exemplo, quase dois séculos depois, quando ouvimos um rapper, então detido por um dos maiores sistemas carcerários do mundo, que é o do Estado de São Paulo, se recusar a chamar a si próprio de “preso”, dizendo-se “exilado sim, preso não”43. Ou ainda, quando outro rapper,

um dos mais famosos do Brasil, ao “mandar um salve pra comunidade do outro lado dos muro”, escolhe lembrar que “as grades nunca vão prender nosso pensamento”44. Um

“pensamento” que as grades por si mesmas não permitem prender mas que a tecnologia política disciplinar nunca deixa em paz.

Mas como efetivamente isso pode ser “preso” e “torturado” se não pelas grades e pelas mãos de um carrasco? Se, do ponto de vista de quem é objeto desse suplício moderno, os objetivos gloriosos da solução panóptica – a observação e a correção – estão longe de nomear a sua função real, isso entretanto não quer dizer que os procedimentos utilizados em nome dessas inocentes finalidades não sejam, eles mesmos, verdadeiras técnicas de prisão e de tortura. Mas dentre todos, é justamente aquele conjunto que menos envolve a violência física que permite operar essa outra e mais terrível prisão que as grades por si mesmas não são capazes de realizar. Não por acaso, ele será de grande valia para o processo de generalização do disciplinamento para além dos espaços fechados. Logo, pode ser oportuno atentar para o seu funcionamento mais simples e abstrato, seguindo mais uma vez os vestígios do sofrimento por ele gerado.

Cerca de um século e meio depois do encontro imaginado por Gauny, um sociólogo francês 43 Trata-se do nome de uma das obras que esse rapper, Dexter, gravou enquanto estava cumprindo pena de

prisão (Dexter 2005). Essa obra foi inclusive ganhadora do prêmio de melhor álbum do ano no Festival Hutúz (de 2005), no qual ocorre a principal premiação do Hip-Hop brasileiro (organizado pela Central Única das Favelas). A frase aparece também num de seus raps mais famosos, “Eu Sô Função”, escrito e performado junto com Mano Brown.

44 Mano Brown, na faixa “Salve” do (também premiado) álbum “Sobrevivendo no Inferno” (Racionais MC’s

nos conta de uma greve de fome feita por um detento em 1976, como meio de protesto ao fato de “em seu prontuário judicial só se registrara suas falhas, seus desvios da norma, sua infância infeliz, sua instabilidade conjugal, e não suas tentativas, suas buscas, o encadeamento aleatório de sua vida”45. Apenas um motivo extravagante de quem, mesmo preso, vive os privilégios de

um Primeiro Mundo? Ou mais uma vestígio do terror que acompanha a grande solução humanista para corrigir os seus desajustados? Na mesma época, numa das mais temidas penitenciárias do Brasil, lá onde trabalhavam os funcionários “considerados problemáticos pelo próprio sistema” e onde, entre outros tantos corpos, eram enterrados vivos aqueles enquadrados na Lei de Segurança Nacional, mesmo lá o “nervosismo” que atingia estes últimos ao chegarem contrastava com “as atitudes perfeitamente rotineiras” dos primeiros.

Passada a porrada, tratam os presos de forma completamente opaca, como se por trás de cada rosto existisse apenas um número de matrícula e um prontuário, e não uma história de vida. De vez em quando, um pequeno comentário:

– Assaltante, hem?

Somos, simplesmente, assaltantes. Ou estelionatários. Ou homicidas. Entre os direitos que perdemos se encontra o de sermos conhecidos pela totalidade das nossas ações, boas ou más, como qualquer ser humano. O ato criminoso – o único devidamente divulgado e reproduzido nas fichas – define tudo o que somos, resumindo de forma mágica, passado, presente e futuro. Há gente que acredita nisso.46

Já houve quem insistisse na separação da escrita em relação ao corpo físico como operação fundamental – ou, mais uma vez, “abstrata” – que produz a separação do exercício do poder em relação ao corpo social: “sempre e por toda a parte, a escrita reinventada proclama o poder da lei, gravada na pedra, pintada sobre as cascas das árvores, desenhadas nos papiros”47. Mas e

quando a escrita não faz uma lei ou, ao menos, antes de fazê-la, faz uma ciência? A execução da lei cabe ao soberano, a da ciência, aos técnicos, como esses que se dedicam ao governo de coletivos humanos. Na diferença entre a lei e a ciência, encontra-se em grande medida a natureza da diferença entre soberania e governo. Num plano mais trivial, pode-se notar que um 45 Donzelot (1986: 209).

46 Lima (1991: 35-6, grifo meu). 47 Clastres (1978: 73-4).

soberano intervém pontualmente para o seu próprio bem, para reforçar, “recarregar” a sua legitimidade; o problema do súdito nesse caso é conhecer a lei. Já um técnico de governo cientificamente instruído trabalha para modificar o sujeito governado para o bem dele próprio. Justamente por isso, por fazerem crescer e multiplicar as forças de seus objetos, por serem capazes de transformar mais do que manter uma ordem, suas técnicas já foram chamadas de “biopolíticas”. Mas às vezes pouco importa se as intenções que colocam tais procedimentos em funcionamento são boas ou más. Às vezes importa apenas a “forma mágica” com que realizam a pavorosa capacidade de “resumir” o passado, o presente e o futuro.

Para uma certa análise da teologia jurídica formada na Idade Média européia, o corpo do rei pode ser dito um corpo duplo: ele “comporta, além do elemento transitório que nasce e morre, um outro que permanece através do tempo e se mantém como fundamento físico mas intangível do reino”. O exercício de seu poder soberano, a produção de seu “mais-poder”, opera assim por um desdobramento de seu corpo, posicionado como centro temporário que possibilita ligar um certo território a uma determinada Lei. Pode ser oportuno, então, colocar como questão se o governo disciplinar, para operar seu mais-poder, para operar sua captura e extrair um certo “excedente” exercido em prol de sua própria tecnologia, não suscitou sobre o corpo de seus condenados – de seus delinquentes, suas crianças mal-educadas, seus adolescentes anormais – uma outra espécie de desdobramento.

Um internato, bem como quaisquer outros tipos de reformatórios, como as casas de correção e as colônias agrícolas, possibilitam a formação de um saber minucioso e individualizado. A distribuição panóptica do jogo de luzes e sombras opera uma inversão na visibilidade das relações de poder. Nele, visíveis são os alvos e não os agentes de governo. A individualização é aí descendente e não, ascendente – como no caso do poder exercido pelo rei. O vigia não espiona o vigiado, ele o “monitora”, o “examina”. Mas, de fato, não basta dizer que essa disposição das coisas e das forças “facilita” o conhecimento do vigiado pelo vigia. Que o conhecimento de algo sirva para dominá-lo, isso definitivamente não diferencia nem política nem saber algum. A noção de “conhecimento”, ademais, carrega um sentido de um resultado subjetivo de uma relação de investigação. A noção de saber – como já insistimos – diz respeito à racionalidade de uma prática com a qual uma certa forma de expressão e uma certa forma de

conteúdo se fazem corresponder. Daí que seja mais oportuno descrever como uma determinada relação de forças está implicada na prática concreta de um certo saber, o disciplinar, que se serve regularmente de um procedimento concreto que é o exame.

Se o disciplinamento foca o corpo de seus condenados, pode-se observar como, sobre sua superfície, a partir de sua vigilância examinadora, ele promove o desdobramento de um elemento incorpóreo: uma “alma”. Para dar nome aos bois: conceitos como psique, subjetividade, personalidade e consciência podem ser vistos como versões desse desdobramento, que além do mais garante boa parte das energias do bom e velho humanismo moderno.

Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma ‘alma’ o habita e o leva a uma existência que é, ela mesma, uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.48

Uma “alma” pode aprisionar um corpo na medida em que é uma grade de inteligibilidade informada por uma relação assimétrica de forças. A diagramação panóptica informa uma alma panóptica como meio de acesso às forças no corpo humano. A prisão celular é nesse sentido uma tecnologia política através da qual tenta-se fazer com que o corpo exista para essa alma, mais do que como realização material dela. Mas para que isso se dê, se faz necessário igualmente um outro desdobramento, desta vez, absolutamente corpóreo e material, ainda que terrivelmente “mágico”: aquele do próprio corpo disciplinado em direção ao corpo do papel, sobre o qual é afixada e controlada a versão escrita e disciplinadora dos enunciados que procuram “resumir” a vida do condenado. A “alma”, portanto, se instala como “prisão” entre o corpo do condenado e a sua “ficha”, o seu “processo”, e liga um ao outro fazendo-os existirem

48 Trata-se de uma tese proposta por Foucault logo nas primeiras páginas de Vigiar e Punir (1987: 28-9). Em

termos abstratos, ele define essa “alma” como “o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder”.

um para o outro49.

Nesse sentido, a operação chave não está simplesmente no cumprimento de uma norma – que seria arbitrária, conservadora, que limitaria as possibilidades de ação, a “livre iniciativa”, como dirão os críticos do disciplinamento. A operação chave é laboratorial, é uma síntese, capaz de fazer tudo aquilo que um corpo carrega consigo, todo o conjunto de relações que o constituem como memória viva, se ligar indissoluvelmente ao “olhar do patrão”, que carrega sempre em baixo dos braços um certo conjunto mágico de papéis.

49 Trata-se, em outros termos, daquilo que o próprio Foucault definiu como a “função política da escrita” no

interior da tecnologia do exame: “Durante muito tempo a individualidade qualquer – a de baixo e de todo mundo – permaneceu abaixo do limite de descrição. Ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um privilégio. A crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares reviram essa relação, abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual. E essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares, de uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente diversa. O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e ‘científica’ das diferenças individuais, como aposição de cada um à sua própria singularidade (em oposição à cerimônia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às ‘notas’ que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um ‘caso’.” (1987: 159-160). Para ir além (e não apenas por pura curiosidade), é interessante observar também a maneira com que o irmão de um xamã Wakuénai, povo do noroeste amazônico, formulou sua percepção da “alma” branca para explicar porque os rituais xamânicos daquele não a atingem. Segundo ele, um Wakuénai possui uma “alma onírica coletiva em forma de animal”. A tomar pelas análises mais recentes sobre o assunto (Viveiros de Castro 2007c; Ferreira 2006), a noção de “alma onírica” refere-se justamente a um potencial extático do corpo. Os brancos, por sua vez, também possuem “almas oníricas coletivas”, porém “elas assumem a forma de livros e papéis. A alma do missionário é a Bíblia, a alma do comerciante é seu registro financeiro e a alma do antropólogo é seu caderno. (...) Um feiticeiro pode atacar a alma onírica de um Branco à noite, enquanto ele dorme, matando-o ao rasgar o seu caderno, assim como um feiticeiro rasga a alma-em-forma-de-animal das vítimas Wakuénai. (...) Meu irmão temia que as canções dele quebrariam o seu gravador. Mas quando você começou a gravar as canções e escrever em seus cadernos, ele sentiu que seu trabalho (…) o auxiliava na acumulação de compressão [para atrair o espírito corporal do paciente de volta ao mundo]”. Fala transcrita pelo etnólogo Jonathan Hill e citada por Ferreira (2006: 198-9).