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O sistema posto em funcionamento pela longa e infinita reforma do “social” não deseja manter e não mantém uma ordem. Desde o princípio ele vai se reforçando, apoiado no mundo de problemas que ele mesmo cria, nas transformações que provoca. Por isso insistimos na sua função concreta de gestão dos dramas populares em torno da ascensão social – e não na função enunciada e idealista que varia entre a integração na sociedade, a garantia de direitos etc. Entretanto, seu funcionamento excessivo acaba por vezes alimentando soluções que, em princípio, possuem caráter de exceção. Na França, ainda em fins do século XIX, assim que o disciplinamento se generaliza, um sinal maior disso é a proliferação de “sociedades de patronagem”. Elas nascem na primeira metade do século, voltadas aos jovens aprendizes, mas só se tornarão centrais quando a transformação da família popular se fizer central. A partir daí, recebem da justiça o papel de cuidar de crianças e jovens quando a relação entre as famílias e as escolas não se mostra suficiente para fazê-lo. Assim, prolongam tanto o sistema judiciário quanto o sistema educacional para além de seus domínios mais estritos – ao mesmo tempo em que, inversamente, ambos se vêem invadidos e transformados por preocupações e práticas próprias às patronagens59. Em 1900, existiam mais de quatro mil de cunho católico e mil e

quinhentas laicas. Essa cifra, ao menos, dobrará até 191460.

Mas não é apenas o sistema judiciário que se prolonga através da patronagem ou, inversamente, não é apenas esse o sistema que ela invade. O sistema efetivo de educação também se estende por meio dessas “sociedades” para muito além de seu domínio mais restrito e ligado às escolas. E, do mesmo modo, ao fazê-lo, ele também se vê submetido e transformado por essa extensão.

“Acredito mais em dez patronagens do que em cem escolas!”, é o que diz Léon Bourgeois, teórico do ‘solidarismo’, em 1894, um ano antes de assumir a cadeira de Ministro do Interior. Ele também nos explica o porquê: nos diz que “a escola não é tudo”, que entre ela “e a vida, há um período singularmente difícil para ultrapassar, há a adolescência. Hoje, é nela que se encontra a passagem crítica. Atualmente, seja a escola excelente, ela possui um defeito capital, ela não tem lendemain”, ou seja, ela não garante que seus efeitos perdurem do lado de fora. Seja ao fim do dia letivo – para aqueles que não trabalham em seguida; seja ao fim do ano letivo – quando mesmo muitos dos que trabalham não podem trabalhar o dobro; seja ao fim da “vida escolar” – que muitas vezes se encerra logo no começo da adolescência: em meio à progressivas restrições ao trabalho dos mais jovens, para essa crescente quantidade de tempo livre juvenil, “adolescente” e infantil que vai sendo criado, a aliança família-escola já parece ser cada vez menos suficiente.

Esse problema, entretanto, não corresponderá à extensão das soluções direcionadas à infância. Entre as preocupações e tratamentos dispensados às crianças e aqueles relativos aos adolescentes existe sempre uma distância importante e muito parecida com aquela existente entre um saber voltado ao governo de um povo e outro, voltado a uma classe trabalhadora. Pois, por um lado, é como se o problema da infância fosse uma versão menor do problema do povo: problema de vigilância e adestramento físico e moral daquele que ‘ainda’ não discerne a realidade das coisas, daquele com quem “ainda” não há comunidade de corpo e de mente – por mais que se reconheça que ali também há algo como uma alma. Por outro lado, é como se o problema do adolescente fosse uma versão menor do problema de como governar uma classe

trabalhadora: problema de integração saudável e sem traumas de sujeitos de interesses e de direitos – que já provaram ter deixado para trás sua infância e selvageria – na sociedade adulta e civilizada, no mundo de cidadãos a quem se deve ouvir e com quem se pode conversar. Neste caso, qualquer forma de imposição deve ser economizada ao máximo, sob pena de promover não apenas uma possível discórdia, mas antes de tudo, uma ação ineficaz.

Trata-se de uma diferença que, longe de pertencer à história francesa ou europeia, podemos ver aparecer ao longo de todo o século XX, em diversos lugares e momentos em que a mecânica mais estritamente disciplinar se mostrar insuficiente na gestão de seus próprios efeitos. E não é raro que isso aconteça – tal como se deu com as “grandes civilizações” modernas – assim que os procedimentos disciplinares sejam liberados para fora dos muros das instituições corretivas, médicas, pedagógicas que proliferaram ao longo dos últimos séculos por todo o planeta.

Um efeito central da generalização dessa função específica que é o disciplinamento é justamente a confrontação do problema da gestão do tempo com novos desafios que o obrigam a se reformular e a diversificar seus meios. Assim, mais uma vez nos termos de L. Bourgeois, para lidar com o recém inventado “tempo livre” dos mais jovens, uma sociedade de patronagem poderia ser

(…) tudo aquilo que se quiser (…) pode ser conferências, jogos, uma fanfarra, uma orquestra, uma sociedade de ginástica, pouco importa, não importa o que, tudo aquilo que entreter a criança, tudo aquilo que a habituará a uma solidariedade, tudo aquilo se chama patronagem e será muito bom.61

A resposta mais imediata é, portanto, a elaboração de um problema que se tornará cada vez mais importante ao longo do século XX: o problema do “entretenimento”. Atualmente, é comum que falar nele seja remeter ao simples descanso, a um momento de puro prazer. E, sem discordar disso, como se apenas olhassem por outro lado, muitos críticos do capitalismo o ligam a algo como a alienação, apontando o dedo, em tom de denúncia, à grande indústria do espetáculo, que transformaria a classe trabalhadora em massa passiva e espectadora, 61 “(…) c’est tout ce que l’on voudra (...) ça peut être des conférences, des jeux, une fanfare, un orphéon, une

société de gymnastique, peu importe, n’importe quoi, tout ce qui retiendra l’enfant, tout ce qui l’habituera à une solidarité tout cela s’appelle patronage et sera très bien” (L. Bourgeois, 1894 apud Loncle, 2003: s/p).

mantendo-a com isso longe dos problemas políticos e da própria realidade.

Dito assim, num sentido muito geral, isso tudo está muito longe de ser novo. Como também não é nova a posição que encontra para o problema do entretenimento uma solução “formativa” ou “pedagógica” – quando não, ao menos, “informativa”. Em outros termos, há tempos o problema do entretenimento se vê carregado com preocupações propriamente “governamentais”. No caso das patronagens francesas, bem como de uma parte considerável das instituições de lazer que se espalham no começo do século XX pelo mundo industrializado, essas preocupações foram elaboradas em função de um tema bastante comum na época: a “solidariedade” entre os membros da mesma nação.

Assim, o problema do entretenimento, em princípio um tanto abstrato e indefinido, é posto em função de um objeto central para o próprio processo de generalização do disciplinamento. Objeto de construção e governo para o qual, entretanto, os procedimentos disciplinares não têm tanta utilidade. Muito pelo contrário – como já apresentado: eles servem mais propriamente para desfazer laços de solidariedade e para isolar.

Contudo, mais do que encontrar um lugar tranquilo e complementar num mundo em disciplinarização avançada, a preocupação com um entretenimento útil aos objetivos de uma nação – ou de uma raça – que se deseja forte é justamente a via concreta pela qual se desenvolvem os procedimentos voltados à construção da solidariedade humana, de sua comunidade, sua identidade coletiva – e não de sua alienação. Duas experiências parecem ter sido fundamentais para colocar isso em prática: por um lado, o pequeno porém poderoso movimento de pedagogos em torno daquilo que chamaram de “educação nova”; por outro, os movimentos juvenis que proliferam planeta afora ao longo de toda a primeira metade do século XX.