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Sabe-se bem que não foi apenas o sistema prisional que fracassou em seus objetivos mais nobres. Todos os sistemas de ensino e de assistência social e familiar também fracassaram desde o princípio até hoje. A questão que se coloca deve ser portanto para que serve esse fracasso. E como o sistema prisional não se descola do sistema de ensino e de assistência, é tudo isso que fali ao mesmo tempo. Fali para poder continuar realizando aquilo que define seu objetivo tático, e não estratégico, de funcionamento.

O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida

permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no infinito.55

Essa incompletude é fundamental para o funcionamento do dispositivo em questão: ele opera sobre uma multiplicidade dependente, ele utiliza essa dependência. Enquanto uma unidade familiar popular não se descolar por completo de um determinado bairro, sua parcela de autonomia e independência estará sempre em questão em função daquilo que lá acontece, e isso será lembrado sempre que a sua “cooperação” for requisitada, seja relativamente a assuntos nos quais ela esteja diretamente envolvida (o alcoolismo do pai, a indisciplina escolar de um filho, a longa presença na rua da filha, a insistência da mãe em trabalhar fora...), seja relativamente aos assuntos das unidades vizinhas, “para o bem do progresso material e moral do bairro”. Mais do que um modo de manter uma ordem, trata-se de mais uma “maneira de gerir os ilegalismos, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito

daqueles”56. Trata-se talvez da mais eficaz dentre as prisões. Produção e gestão do drama

popular. Drama de sua “ascensão”, de sua “integração” sempre incompleta na civilização, nos

processos de desenvolvimento e modernização, através de um composto sincrônico de quatro elementos: aquilo que é propriamente a dimensão política disciplinar, que permite inserir e manter desigualdades políticas por fora da lei; uma forma de saber que articula as preocupações com a inspeção, a normalidade e a higiene à soluções disciplinares tão variadas quanto a escola e a assistência social; um elemento de eficácia inversa que implica numa gestão utilitária das carências e anormalidades encontradas por todos os lados; e, enfim, um outro de “desdobramento utópico”, que se refere a sua constante submissão a reformas.

Os dispositivos de poupança, de incitação escolar, de aconselhamento relacional se efetivam na conexão entre a família moralizada e normalizada e a família burguesa. Entre a impotência da primeira e o desenvolvimento da segunda, eles tecem a trama obsedante da promoção, que fornecerá os traços característicos da pequena burguesia com seu sobre-investimento na vida familiar, seu sentido da economia, seu fascínio pela escola, sua busca febril de tudo o que pode fazer dela um bom ‘ambiente’.57

Para fazer uma homenagem à filosofia popular paulistana atual – a gestão do drama popular, seu sistema de pressões e chantagens conduz à constituição de um “zé povinho”. Como se diz num famoso rap: “zé povinho é o cão, tem esses defeito / O que? ’Cê tendo ou não, cresce os

olhos de qualquer jeito”. Na já centenária personagem conceitual homônima da filosofia

popular portuguesa58, a ênfase recai mais sobre a revolta impotente – seu símbolo sendo a

56 Foucault (1987: 226). Optamos por fazer uma conhecida correção na versão brasileira, substituindo

“ilegalidades” por “ilegalismos” como tradução para illégalismes, termo efetivamente utilizado por Foucault claramente no intuito de não operar com conceitos de caráter jurídico para a descrição mais concreta das relações de força.

57 Donzelot (1986: 88).

58 Como consta num verbete simples e muito interessante da Wikipedia que vale a pena reproduzir por inteiro:

“Zé Povinho é uma personagem de crítica social, criada por Rafael Bordalo Pinheiro e adoptada como personificação nacional portuguesa. É também conhecido como João Bítor, grande amante de binho e xixas. (§) Apareceu pela primeira vez no 5º exemplar de A Lanterna Mágica a 12 de Junho de 1875, num desenho alusivo aos impostos, onde se representava Fontes Pereira de Melo [importante político português] vestido de Stº António com o "menino" D. Luís I ao colo, enquanto Serpa Pimentel (Ministro da Fazenda) sacava o dinheiro do Zé, que permanecia boquiaberto a coçar a cabeça vestido com um fato rural gasto e roto. Ao lado, o comandante da Guarda Municipal, observa de chicote na mão, para prevenir uma eventual resistência. (§) Nos números seguintes, o Zé Povinho continuou a surgir de boca aberta e a não intervir, resignado perante a corrupção e a injustiça, ajoelhado pela carga dos impostos e ignorante das grandes questões. O próprio Raphael Bordallo-Pinheiro diz: "O Zé Povinho olha para um lado e para o outro e... fica como sempre... na

famosa “banana”; na paulistana, sobre a sua resignação, sua ganância e sua função de vigilância delatora. No primeiro caso, a personagem é mais relativa às relações do povo com a política institucional; no segundo, ela não pode ser pensada fora das relações do povo com a polícia e com as demais tecnologias governamentais que funcionam à base de vigilância e punição. Tal diferença pode ser pensada como dois potenciais que todo e qualquer indivíduo popular, trabalhador, é incitado, para não dizer chantageado, a realizar em resposta às ações governamentais de controle, mais do que pela “manipulação da consciência” por uma “ideologia burguesa”.

mesma". (§) Apesar de simples, o Zé Povinho é uma figura cheia de contradições, tal como foi referido por João Medina em "O Zé Povinho, caricatura do «Homo Lusitanus»": "Mas se ele é paciente, crédulo, submisso, humilde, manso, apático, indiferente, abúlico, céptico, desconfiado, descrente e solitário, também não deixa por isso de nos aparecer, em constante contradição consigo mesmo, simultaneamente capaz de se mostrar incrédulo, revoltado, resmungão, insolente, furioso, sensível, compassivo, arisco, activo, solidário, convivente...". (§) Tem como característica principal o gesto do manguito (como se pode ver na figura ao lado), representando a sua faceta de revolta e insolência. Tornou-se uma figura identificativa do povo português, criticando de uma forma humorística muitos dos problemas sociais e políticos da sociedade portuguesa, e caricaturando o povo português na sua característica de eterna revolta perante o abandono e esquecimento da classe política, embora pouco ou nada fazendo para alterar a situação.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Z%C3%A9_Povinho).

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