• Nenhum resultado encontrado

o governo ambiental das inseguranças

Se a intensificação das preocupações com a ambientação se deve ao desejo de desenvolver, nas estruturas mais fundamentais da inteligência, a “tolerância” às diferenças e novidades, logo elas se voltarão ao principal problema que esse objetivo supõe: aquele da “violência”, entendido agora em termos de “intolerância”. Em 1972, por exemplo, no Colóquio Internacional sobre a Agressividade do Homem, promovido pela Unesco em Paris, em sua palestra sobre “Desenvolvimento de relações interpessoais e controle pessoal da agressividade”, o psicólogo H. Cappello nos conta que certa vez um doutor, o Dr. Kahn,

demandou a um técnico que aplicasse exames psicológicos a uma certa quantidade de sujeitos procedendo de modo insultante e humilhante. No primeiro grupo de controle, os sujeitos estavam autorizados a liberar suas hostilidades pela expressão de seus sentimentos sobre o técnico. No outro grupo, essa possibilidade lhes foi recusada. Conforme a teoria psicanalítica, os sujeitos do segundo grupo deveriam ter se sentido tensos, irritados e hostis em relação ao técnico; e aqueles do primeiro grupo, aliviados, relaxados e desprovidos de sentimentos hostis. Isto é, a livre expressão da hostilidade serviria de agente catártico. Kahn encontrou o oposto. Aqueles a quem fora permitido expressar a sua hostilidade na hora sentiram desgosto e sentimentos agressivos maiores pelo técnico do que aqueles a quem fora negado a expressão de agressividade. Em poucas palavras, a expressão da agressividade causa mais agressividade. Tal como preditado pela teoria da dissonância cognitiva, fazer afirmações agressivas produz a necessidade de recorrer a novas justificativas, como num círculo vicioso.111

Momento menor, porém carregado de elementos importantes. Assistimos aí a uma situação na qual o tradicional exame psicológico não apenas não se faz útil como se encontra incluído como parte central da ficção criada para simular comportamentos. Nela se verifica a própria 111 Cappello (1972: 4).

ineficácia de exames para o estudo de um dos objetos mais caros à psicologia moderna. Afinal, o que se “descobre” com uma tal simulação é que a agressividade humana já não se encontra inscrita nem na biologia dos corpos, nem nos inconscientes mentais. Ela não é nem uma patologia degenerativa (como queria um certo racismo) e nem uma “descarga” intrínseca à natureza humana (como queria o anti-racismo radical de Freud). Pois,

se é verdade que todo indivíduo possui, em função de sua estrutura neurofisiológica, mecanismos que produzem automaticamente um certo tipo de resposta, ele possui também centros capazes de controlar as respostas e de armazenar uma informação que lhe permite orientar seu comportamento num sentido positivo.112

A agressividade é, portanto, uma “resposta” passível de controle. E, assim, ao mesmo tempo em que as causas da agressividade escapam à lógica limitada do funcionamento corporal e psíquico e se fragmentam em “variáveis multidimensionais”, a individualidade que vai sendo requisitada no humano é aquela que é capaz de lidar com estímulos e emitir uma resposta controlada. Estímulos são informações e lidar com elas é ser capaz de armazená-las e de processá-las a tempo, modulando os automatismos ainda sombrios de seu corpo. As forças que importam, no humano, são portanto as de processar informações e respondê-las. É assim que as causas da agressividade passam a ser procuradas na “interação social”, e os examinadores desde então precisarão aprender a levar em conta essa variável sob pena de terem seus resultados questionados. Na prática, isso equivale a pensar todo o momento do exame como uma situação delicada onde cada detalhe deve ser considerado como parte de um ambiente do sujeito examinado. Se o exame é assim pensado, o processo educacional, então, transforma-se em algo delicadíssimo.

Em larga medida, nossa concepção de educação é influenciada por uma filosofia ‘preto e bran- co’ [‘mecanicista’, na tradução francesa] ou por um padrão moral muito preconceituoso, que geralmente sustentam a rigidez da autoridade como o único caminho para modelar as respostas desejáveis do comportamento humano. A educação tende a aplicar punição e recompensa nos seus extremos. Quando esse método é usado para controlar a agressão, o psicólogo social sabe que essa tática é não apenas inútil, mas absurda. Um castigo severo não tem efeito durável e, se

não for utilizado com cuidado, obtém, a longo prazo, os resultados inversos. Tem sido observa- do que o recurso a punições severas tende a produzir crianças muito agressivas. Uma punição atenciosa ou afetuosa só obtém bons resultados se o seu agente não é o modelo de uma pessoa agressiva.113

A mera existência de tais observações, atualmente bastante aceitas, certamente não impediram que a violência nas escolas públicas de tantos lugares tenha continuado a ser, volta e meia, caso de polícia. Como também não conseguiram impedir a vitória – simultânea à difusão desse saber tão sensato – do encarceramento em massa como uma grande solução de governo em países como os EUA e o Brasil. Ao menos, não há dúvidas de que colaboraram na renovação da perspectiva ambiental sobre as causas da “violência urbana”, principalmente quando esta é estatisticamente correlacionada aos locais de moradia dos mais “pobres”. Pois a partir daí, nada mais natural que todo o espaço urbano delimitado pela “pobreza” – das escolas aos bares, passando por bailes funk e shows de RAP, mas também por extensas e complexas relações familiares, políticas, econômicas e religiosas – se veja transversalmente recortado em função do combate às forças que tornam os mais jovens “vulneráveis” à estímulos perigosos. Pode-se perceber como, por aí, uma parte imensa da multiplicidade de relações abertas e numerosas que forma as chamadas “periferias” terminará povoada como um campo de batalhas por pequenos e grandes agentes das mais diversas naturezas – as “representações”, os “comportamentos”, as “armas”, as “drogas”, as organizações “criminosas” e “sociais” etc. Enfim, esse saber serve bem para o fortalecimento e organização de um verdadeiro governo das inseguranças114. Algo que aparece quase que naturalmente implicado na construção de

113 Cappello (1972: 5).

114 Discutimos esse tema do governo das inseguranças no artigo “Exclusão social, participação juvenil e governo

das inseguranças” (Candotti 2009). Duas referências são dignas de nota. Primeiro, um pequeno artigo de jornal escrito por Rancière (2003) onde define a insegurança como “um modo de gestão da vida coletiva”. Segundo, o platô “1933 - Micropolítica e Segmentaridade”, de Deleuze e Guattari (1997b), principalmente o trecho que segue: “(...) num primeiro caso, quanto mais a organização molar é forte, mais ela própria suscita uma molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. Quando a máquina torna-se planetária ou cósmica, os agenciamentos têm uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a tornar-se microagenciamentos. (...) A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança. No entanto, o segundo caso é mais importante ainda, dado que os movimentos moleculares não vêm mais completar, mas contrariar e furar a grande organização mundial. É o que dizia o presidente Giscard d'Estaing em sua lição de geografia política e militar: quanto mais se equilibra entre leste e oeste, numa máquina dual, sobrecodificante e superarmada, mais se ‘desestabiliza’ numa outra linha, do norte ao sul. Há sempre um Palestino mas também um Basco, um Corso, para fazer uma ‘desestabilização regional

qualquer “jogo democrático”. Contudo, quando tudo isso acontecer, este já não será o único jogo relevante em questão.