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O discurso de retomada da educação pelo Estado: dilemas e conflitos com a sociedade civil em nome da inclusão

3.2 (DES)CAMINHOS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NA HISTÓRIA DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

3.2.2 O discurso de retomada da educação pelo Estado: dilemas e conflitos com a sociedade civil em nome da inclusão

Até aqui foram analisadas as várias mutações nas relações intersetoriais, historicamente instáveis, mesmo com o forte poder exercido pelas organizações especializadas na definição da agenda da política educacional voltada para as pessoas com deficiência. Observa-se que, gradativamente, nos anos 90 e no novo século – principalmente a partir de marcos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996; o Plano Nacional de Educação de 2001; as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, em 2001; o Plano do Governo Lula (Uma Escola do Tamanho do Brasil / 2003 – 2006); o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência (PAED), em 2004 –, aumentam as imprecisões sobre ao público e privado, desta vez, fundamentadas em nome da inclusão das pessoas com deficiência.

Mesmo com uma certa manutenção das parcerias subsidiadas por apoio financeiro e técnico, por meio de convênios e programas de transferência de

recursos para as escolas especializadas privadas, fortalece-se no discurso governamental a retomada do público na educação.

A política adotada pelo órgão federal responsável pela Educação Especial, a SEESP / MEC, desde a LDBEN / 96, busca comprometer-se com os princípios da oferta de uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos,o que significa uma tendência a investir esforços nas escolas públicas para que estas prestem diretamente o atendimento educacional às pessoas com deficiência. É a proposta de uma imprecisa política de educação inclusiva que, veladamente, vem sendo negociada, buscando, por um lado, garantir a ampliação da oferta dos atendimentos educacionais em escolas públicas e, por outro, promover a manutenção de algumas organizações privadas que, em sua maioria, possuem o perfil mais direcionado ao chamado terceiro setor, como esclarecido no capítulo anterior.

Tal proposição parece retomar as idéias exploradas por Gramsci de

Escola Unitária, que tem por aspiração por um Estado-educador (MANACORDA,

1990). Deve-se lembrar, porém, que de qualquer modo, Gramsci prevê ser necessário um aumento do orçamento estatal dedicado à escola, a fim de criar condições para que o Estado governe com a sociedade civil.

Para Motta (1987, p.136) o ideal proclamado pelo Estado de educação para todos, onde se esconde a lógica da reprodução do capitalismo em todos os campos:

de modo geral, a tecnoburocracia proclama em seu discurso a educação para todos, a democratização do ensino. De fato, o discurso é contraditório com a prática da educação restritiva. Quando as crianças vindas de famílias pobres não são excluídas totalmente da escolarização, recebem, um mínimo socialmente determinado de educação formal. Por outro lado, as crianças vindas de famílias ricas, que podem pagar os bons colégios, recebem o máximo de educação formal. Em suma, trata-se de conceder o máximo de educação formal para a minoria e um mínimo para a maioria. Tudo isto tem evidentemente um sentido que difere da aparência.

Pode-se afirmar que o discurso do Estado-educador é, na realidade, um discurso legitimador, que fala em nome de um interesse supostamente majoritário e que de nenhuma forma pretende satisfazer a todos. O autor, acima citado, lembra, ainda, do alerta feito por Bordieu quanto ao fato de convivermos com a ideologia da escola libertadora,

segundo a qual o sistema escolar é um fator de mobilidade social,quando a evidencia mais clara é de que ele se constitui num dos meios mais eficazes de conservação social, à medida que, fornecendo uma aparência de legitimidade às desigualdades sociais e dando sanção à herança cultural, trata o dom social como o dom natural (MOTTA, 1987, p.136)

Na atualidade, utilizam-se como alicerce, para a “nova questão social” da inclusão das pessoas com deficiência, a igualdade e equidade, traduzidas sob a generalização do acesso à educação escolar comum, socialmente definido como obrigatório e reconhecido como inerente à democracia e dever do Estado. Parece, porém, que se vivencia a equidade e igualdade mais no plano do discurso das propostas políticas do que nas práticas, conforme enfatiza Prieto (2000, p. 25):

Quando o discurso das propostas políticas, em âmbito nacional, assumem como meta garantir a educação para todos, há que se considerar que os alunos que apresentam necessidades educacionais especiais e, dentre estes, particularmente, os portadores de deficiência, ainda se deparam com o tratamento desigual, que se legitima ora pela ausência de recursos especiais que lhes permitam estar e ficar no sistema escolar, ora pela indevida exclusão desse segmento da população do ensino comum.

Fato concreto é que as mudanças trazidas pelas propostas de inclusão são muitas. Fundamentadas em posições quase sempre radicais, baseadas em subjetividades e em busca de uma racionalidade instrumental, vêm-se gerando crises estruturais tanto para as escolas públicas comuns, quanto para as organizações especializadas, que buscam se adequar as propostas governamentais e aos modelos do terceiro setor vigente.

Em nome da inclusão, nebulosamente oficializada em documentos e leis que são alvos de interpretações diversas, principalmente com foco no acesso à educação escolar, tem-se gerado uma série de equívocos; o primeiro deles foi a ameaça de desmonte da estrutura mínima de Educação Especial, criada a “duras penas”. Vem sendo, assim, justificados o fechamento de programas e serviços especializados – como, por exemplo, classes especiais nas escolas públicas – ; e a falta de previsão do custeamento de programas mantidos por escolas públicas ou organizações especializadas privadas (CARVALHO, R., 2004a; MENDES, 2002).

Pelos processos de múltipla cooptação entre Estado e sociedade civil, favorecido por práticas clientelistas, pode-se aludir os efeitos perversos, mitos e realidades quanto ao futuro das organizações especializadas – que historicamente buscaram criar e sustentar a educação especial –, e nas escolas comuns – que se

“apoiaram” nas escolas especiais para encaminhar os alunos considerados inaptos ao sistema.

Parece haver um recuo da influência e poder histórico da sociedade civil com relação às novas definições da agenda educacional no campo das pessoas com deficiência, não só devido às questões já citadas, mas às político-partidárias. Vários fatos podem ser visualizados, como a não indicação de nomes dos dirigentes dos órgãos gerenciadores de recursos para a Educação Especial, a incorporação de novos agentes executores das ações públicas, como, por exemplo, algumas OSCIPS, consultorias educacionais e universidades que exercem forte influência em órgãos como a SEESP. Observa-se, inclusive, que a SEESP inicia seu trabalho no Governo Lula, a partir de 2003, com uma certa repulsa às organizações especializadas, sendo influenciada por diferentes intelectuais orgânicos e pelo mercado de consultores da inclusão, que formatam vários documentos, publicações e programas nacionais99. Aparentemente, na atualidade, após o acirramento dos conflitos, tais fatos vêm gradativamente sendo apaziguados, por meio de mecanismos que permitam uma certa retomada da participação da SEESP.

Independentemente dos diferentes momentos políticos da educação especial e/ou inclusiva, vivenciam-se crises que vão além das questões da diminuição do financiamento da educação especial e seu possível sucateamento. Passam a ser uma constante os conflitos quanto aos valores, identidades e crenças nas situações de educação, pondo em jogo a institucionalidade das organizações escolares (comuns e especiais). Muito mais que isso, põe-se no “fio da navalha” o respeito aos sujeitos e beneficiários da educação especial (professores, famílias e pessoas com deficiência). O desconhecimento dos professores e familiares sobre os aspectos legais e pedagógicos, a acomodação, submissão ou enraizamento da cultura da exclusão também são fatores que contribuem para que a inclusão não se efetive como deveria (PINTO, 1999). Nesse sentido, Carvalho, R. (2004, p.27) comenta que a proposta da inclusão educacional gera: “resistência de muitos professores e familiares; dúvidas de outros que se declaram preocupados com o ‘desmonte’ da educação especial e, também, a aprovação e o entusiasmo de não poucos”.

A resistência dos professores se dá em razão da insegurança no trabalho educacional com alunos com deficiência, sustentada pelo mito e realidade do despreparo e da especialização e, por conseguinte, surge uma indústria de capacitações, cursos de extensão, especialização etc., muitas vezes ofertados pelos programas governamentais. Tais questões acabam gerando sentimentos de estresse e angústia nos professores. Na maior parte dos casos, estes decidem enfrentar o desafio da mudança devido às pressões externas e ao temor de perder seus empregos (MANTOAN, 2004), sem, no entanto, trabalharem seus preconceitos, o medo da diferença pela “estigmatização” descrita por Erving Goffman, citado por Plaisance (2004).

Os familiares temem que a inserção dos seus filhos com deficiência seja uma “entregação” ou sinônimo de maior exclusão, por não conseguirem uma aprendizagem na intensidade desejada. Para alguns autores, como Mantoan (2004), tais medos advêm da “ignorância” dos pais. É necessário, porém, refletir sobre outras questões que estão atreladas a isso, considerando as condições sócio- culturais das famílias e relações de dependência e gratidão estabelecidas historicamente com as organizações especializadas.

O desmonte da Educação Especial, conforme o pensamento dos chamados “inclusionistas totais” que concebem esta como sistema educacional paralelo e segregador, gera muitas inseguranças, desconfianças e resistências à proposta de educação inclusiva. Logo, há uma urgente necessidade de uniformização das concepções sobre educação especial e inclusiva como processos complementares e não, como sistemas paralelos ou não (CARVALHO, R. 2004a; MENDES, 2003).

É preciso atentar para a necessidade de realizar mudanças estruturais e de enfrentar as barreiras humanas e materiais, e, também, do moralismo abstrato, que favorece um tipo de inclusão que engendra formas dissimuladas de exclusão (PLAISANCE, 2004). Há uma necessidade de mutação cultural no Estado, na sociedade civil e nas famílias para que não sejam criadas, em nome da inclusão, novas formas de exclusão, como já relatadas anteriormente neste trabalho.

Mendes (2002, p. 70) critica as formas da implementação do processo de educação inclusiva no Brasil, pelos seus diferentes significados:

Para quem não deseja mudança, ele [o processo de educação inclusiva] significa ao que já existe. Para aqueles que desejam mais, ele significa uma reorganização fundamental do sistema educacional. Enfim, sob a bandeira da inclusão estão práticas e pressupostos bastante distintos, o que garante um consenso apenas aparente e acomoda diferentes posições que, na prática, são extremamente divergentes.

Considerando tais aspectos, deve-se atentar para que a implantação da proposta de educação inclusiva leve em conta as realidades locais, vislumbrando-se ações em ao menos três âmbitos: político (no aspecto político e organizacional), o educacional e o pedagógico. No âmbito organizacional, é necessário a construção de uma rede de suportes ou apoios para atender à formação dos professores, à provisão dos serviços (centrados na escola, na comunidade e na região) e ao planejamento e avaliação das diretrizes políticas almejadas. No âmbito educacional da escolarização, ressalta-se a necessidade de um ensino colaborativo e cooperativo entre professores do ensino comum e especial, além de consultores especialistas na área. No âmbito pedagógico, a autora pressupõe que a escola centralize seus apoios na classe comum, utilize estratégias de ensino favoráveis à inclusão e efetive currículos adaptados ou modificados, quando necessários, que favoreçam práticas pedagógicas flexíveis aos indivíduos com necessidades educacionais especiais (MENDES, 2002).

Cabe, ainda, comentar, um efeito nocivo da proposta de retomada da educação das pessoas com deficiência pelo Estado. Trata-se das crises relativas à resistência institucional de algumas organizações especializadas quanto à configuração da tradicional instituição filantrópica frente às modernas propostas da inclusão e do terceiro setor. Muitos medos e mitos são criados pelos gestores dessas organizações, se forem observadas as ameaças da inclusão frente aos seus sistemas centralizados com estruturas fortes de poder, e as dificuldades para mudanças na gestão que está ancorada em tradições da burocracia estatal e no elitismo republicano (PLAISANCE, 2004). Além disso, nota-se outro grave obstáculo, originado pelo progressivo arruinamento de alguns serviços educacionais especializados, em municípios que adotaram a inclusão sob os auspícios de alguns100 magos consultores.

100 Refiro-me a alguns, pois, aqueles que possuem uma identidade consolidada no atendimento

educacional de qualidade e necessário às pessoas com deficiência – no sentido pedagógico e filosófico – e concepções claras sobre cidadania permanecem firmes buscando a cada dia a melhoria contínua dos atendimentos, adequando-se as necessidades da população que atendem.

Deve-se entender que a inclusão também diz respeito a mudanças nas formas de gestão das organizações especializadas e no Estado. Cabe salientar que estas não dizem respeito ao desmonte da educação especial, como já citado, ou muito menos à frenética remontagem, adequação, ou destruição, dos serviços especializados, como vêm sendo adotado em algumas organizações especializadas para se manterem na crista da onda inclusiva, ou mesmo, para garantir os parcos recursos que conseguem obter nas parcerias, dentro da lógica dos programas sociais do Estado.

D’Antino (1998) comenta as crises e dilemas institucionais das organizações especializadas como crises de racionalidade, marcadas por uma trajetória histórica de insustentabilidade institucional que as estigmatizou como espaços de caráter benemerente e segregador. Nesse sentido, enfoco que, na atualidade, as novas organizações prestadoras de serviços, em sua maioria com menos de cinco anos de atuação e com o registro de OSCIPs, e com formatos e discursos inclusivos e transformadores, tornam-se muito mais competitivas na busca de recursos, já que utilizam linguajares da moda (empowerment, accountability etc.) e atendem de modo mais eficiente à inclusão, no entendimento de alguns governos (ARAÚJO, 2003b).

Sintetizando as idéias apresentadas nesta seção, mostra-se necessário reconhecer o trabalho desenvolvido por algumas organizações privadas que prestam serviços considerados públicos, pela abrangência, gratuidade e qualidade dos serviços oferecidos para segmentos em vulnerabilidade social, como por exemplo, as pessoas com deficiência. Nessa direção, o Estado também deve atentar que se, historicamente, foi omisso, terceirizou ou privatizou os serviços sociais e educacionais, também gastou muitos recursos públicos para montagem de estruturas em organizações privadas (construções, reformas, equipamentos, capacitação de profissionais etc.), sendo agora um ato de negligência descartá-las por modismos ou decisões políticas.

Pensar em educação inclusiva, como mera ação revolucionária pedagógica voltada para participação passiva, formal ou imaginária101, na intenção de remontar o sistema educacional brasileiro, não é necessariamente educar para

um processo de constituição de sujeitos com liberdade e autonomia102, ou seja, não é educar para (e com) cidadania. Para além das condições impostas pela inclusão, a grande questão quanto à construção de um sistema educacional inclusivo, relaciona- se à construção de um política educacional sob um olhar multi e interdisciplinar, com a participação ativa das famílias, das pessoas com deficiência, das organizações especializadas, do sistema público de ensino e da sociedade em geral.

3.3 POLÍTICAS EDUCACIONAIS E O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA PESSOA