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A Reforma do Aparelho do Estado e o público não-estatal no Brasil: publicização, privatização e focalização

2.2 AMPLIAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO

2.2.1 A Reforma do Aparelho do Estado e o público não-estatal no Brasil: publicização, privatização e focalização

Historicamente, no Brasil, instituiu-se a concepção do público como aquilo que é estatal e / ou governamental. Na prática, porém, desde os ideais desenvolvimentistas e populistas, ou mesmo nos períodos mais repressivos, a oferta de

serviços aos cidadãos sempre foi “compartilhada” entre Estado e sociedade civil,

geralmente representada por organizações privadas, sem fins lucrativos, de caráter benemerente e assistencial.

Após a redemocratização do país, considero que o discurso do público não-

estatal foi oficializado, a partir da proposta de reforma estatal que, embora necessária,

utilizou formas inadequadas à resolução das desigualdades sociais. Oficializada em 1995, com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, sob a competência do então Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), no governo Fernando Henrique Cardoso, a Reforma Estatal foi sancionada como resposta à necessidade de ampliação do público por meio de estratégias de publicização e privatização. Implantada dentro da lógica da focalização e, conseqüentemente, da atuação de diferentes protagonistas (ou atores) sociais, incluiu a formação do chamado Terceiro

Setor e instituiu a parceria, como uma das palavras de ordem da reforma do aparelho

de Estado.

A Reforma Gerencial, como nomeada por Luis Carlos Bresser Pereira – Ministro responsável pela proposta, na época –, é justificada, entre outros aspectos, para pôr um fim na cultura do patrimonialismo, da burocratização e da ineficiência da atividade social do Estado, o que geraria uma crise de governança, segundo seus propositores. É explicitada a necessidade de mudança do modelo de administração burocrática, que emergiu a partir de 193012, para um modelo seguido pela

administração de empresas, sendo denominada como administração pública gerencial, caracterizada pelos valores da eficiência e qualidade dos serviços prestados (WANDERLEY, 1999).

De acordo com Motta (1987, p. 37-38), a burocracia ou administração burocrática, num sentido contemporâneo, está presente em todos os países e tem assumido aspectos semelhantes aos de uma empresa de grande porte, “seja pela sua atuação produtiva, paraprodutiva ou reguladora, seja por suas funções repressivas e ideologias cada vez mais fortes”. Logo, a burocracia fundamenta-se,

em regras de caráter geral, impessoal e altamente abrangente, expressando-se numa forma de conduta organizada segundo rotinas pré-estabelecidas, à qual repugna o novo, o inesperado. Segue-se também uma divisão metódica de trabalho, que se traduz em papéis bem definidos, cujo desempenho se dá de acordo com uma descrição precisa de direitos e deveres, que é, entretanto, estabelecida e modificada pelos ocupantes dos níveis mais altos do próprio grupo.

As “inovações” propostas no modelo de administração pública gerencial contra o modelo burocrático baseiam-se na distinção de quatro setores do Estado:

núcleo estratégico, atividades exclusivas, serviços não-exclusivos e produção de bens e serviços para o mercado. O núcleo estratégico corresponde ao governo, ao aparelho

estatal composto por legislativo, judiciário, Ministério Público e Executivo. As atividades

exclusivas referem-se ao setor dos serviços que só o Estado pode realizar e tem o

12 Nesse período, o país tem a primeira proposta de reforma estatal, empreendida no governo Vargas.

Em 1936, foi criado o Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, sob forte influência taylorista, representando uma tentativa de formação da burocracia nos moldes weberianos, no que diz respeito à racionalização de processos, institucionalização da função orçamentária vinculada ao planejamento e administração de recursos humanos (BRASIL, 1995, p.23-25).

poder de regulamentar, fiscalizar e fomentar, como, por exemplo: a cobrança e fiscalização de impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização e cumprimento de normas sanitárias, os serviços de trânsito, a compra de serviços de saúde, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica e o serviço de emissão de passaportes. Os serviços não-exclusivos correspondem àqueles que podem ser realizados simultaneamente por organizações

públicas não-estatais, mas em que o Estado está presente por serem serviços que

envolvem direitos humanos fundamentais como a educação e saúde, ou porque possuem “economia externa”, como, por exemplo: “as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus”. Quanto ao setor de produção de bens e serviços

para o mercado, remete-se à área de atuação empresarial, caracterizada pelas

atividades econômicas voltadas para o lucro e que ainda permanecem no Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura13 (BRASIL, 1995, p. 52-53).

Alguns agentes da sociedade civil e da sociedade política contestaram as propostas de reforma estatal, elaborando inclusive documentos de oposição, como o intitulado Um Brasil para os Brasileiros – teses para a elaboração do Programa

Democrático e Popular Brasil – 1998, formulado por uma comissão de representantes

de quatro partidos políticos (PT, PSB, PDT e PC do B). Sobre esta proposta, comparando ao Plano de Reforma, Wanderley (1998) apud Wanderley (1999, p. 117), afirma que,

[...] no Plano há uma concepção do Estado no seu sentido de aumentar a sua governança nos marcos próprios da democracia representativa (acrescento como ela é entendida nos tempos atuais), com um enfoque que limita a participação da Sociedade Civil, entendida no texto quer pelo ângulo dos serviços que são atinentes ao Mercado, quer pelo ângulo dos serviços não- exclusivos em que se propõem formas de parceria. No documento oposicionista, há uma valorização de uma democracia social ampliada, com acento na extensão da cidadania e na mobilização da sociedade civil para que exerça um controle social sobre o Estado.

Criticando a proposta de reforma, sob o ponto de vista da política social, Vieira (2001, p.10), afirma,

13 A partir dessa concepção fundamenta-se a necessidade da privatização, em princípio, acompanhada

Em nenhum momento histórico da república brasileira (para só falar nela, pois o restante consiste no Império escravista), os direitos sociais sofrem tão clara e sinceramente ataques da classe dirigente do Estado e dos donos da vida em geral, como depois de 1995. Esses ataques aos direitos sociais, em nome de algo que se pode intitular de “neoliberalismo tardio” ou em nome da “modernização”, alimentam-se no campo da política social, de forma geral, de falsas polêmicas.

Bresser Pereira (1999, p.90-91) defende-se da crítica elaborada por Boaventura de Souza Santos a respeito do critério básico utilizado para a reforma brasileira - delimitação de atividades exclusivas e não-exclusivas do Estado - que ao invés de estabelecer uma relação de complementaridade entre Estado e sociedade civil, se estabelece uma substituição. Na defesa, enfatiza que é isso mesmo, o que propõe a Reforma, afirmando:

[...] não vejo sentido em médicos, agentes de saúde, professores e pesquisadores terem mesmo contrato de trabalho de delegados de polícia ou de fiscais [...] os serviços sociais e científicos são realizados com mais qualidade e eficiência por organizações públicas não-estatais, que além disso garantem mais liberdade a seus membros, ao passo que a produção de bens e serviços controlados pelo mercado, que necessitam de subsídio estatal, são melhor executadas pelo setor privado.

Pela declaração, pode-se atestar que, de fato, os fundamentos propostos para divisão das atividades do Estado com o setor público não-estatal, fundamentada pela publicização, privatização e focalização de serviços, seguem a lógica da transferência das responsabilidades do Estado para o mercado e para o chamado terceiro setor (MONTAÑO, 2002).

Por outro lado, existem opiniões de defensores da reforma, tais como Cardoso, Franco e Oliveira (2000) e Ferrarezzi (1997), os quais destacam que a partir desta, começou a ser criada a necessidade de mudanças no modelo de provisão das políticas sociais em que o Estado desempenhava todas as funções, sendo um indício da ampliação do conceito de público. Mustafa (2000, p. 230) afirma que começamos a presenciar “o surgimento de uma nova esfera de poder que atua sobre o Estado, contra o Estado e com o Estado”.

Embora ciente das ambigüidades e contradições nas diferentes interpretações da proposição reformista, considero inevitável, antes de qualquer crítica,

a necessidade de entender os significados e formas de privatização e publicização, aplicadas aos diferentes ambientes, para avaliar os riscos, benefícios e prejuízos que trazem para a área social. Wanderley (1996, p. 98) conceitua a publicização do privado como “a intervenção dos poderes públicos na regulação da economia, quer pelo aumento da intervenção estatal em todos os domínios sociais, incluindo a regulação dos comportamentos dos indivíduos”; e a privatização do público como “expressa pela apropriação privada de recursos públicos, pelos contratos coletivos entre organizações sindicais, pelas coalizões partidárias etc”.

Starr (1993, p.37), ao analisar os significados da privatização enquanto idéia, teoria, retórica e prática política, atesta que, além do sentido geral de retirada de um serviço da esfera pública estatal, a privatização pode significar a apropriação por um indivíduo ou grupo particular, de algum bem que antes estava à disposição da comunidade, alterando a distribuição do bem-estar. De acordo com tal afirmação, em termos de política governamental, podem existir quatro formas para privatização:

1. El paro de los programas públicos y el rechazo por el gobierno de ciertos tipos específicos de responsabilidad (“privatización implícita”) o, en un nivel menos drástico, la limitación se servicios públicamente producidos en volumen, disponibilidad o calidad, causando un giro de los consumidores hacia unos substitutos producidos y consumidos en privado (también llamada “privatización por desgaste”). 2. La transferencia de activos públicos a la propiedad privada, incluyendo ventas de tierras públicas, infraestructura y empresas. 3. El financiamiento de servicios privados o por ejemplo, mediante contratos y resguardos – en lugar de una producción directa de servicios por el gobierno; y 4. La “desregulación” del ingreso de firmas privadas en actividades que antes eran tratadas como monopolio público.

Pelas formas de privatização citadas, pode-se afirmar que no Brasil, na área social, o processo de privatização mais tradicional é voltado para a terceira forma citada pelo autor, ou seja, o financiamento de serviços sociais - que a priori deveriam ser ofertados diretamente pelo governo – prestados por organizações privadas.

Campos (1998, p.13), discutindo a democratização e desigualdade social no Brasil, ressalta que a privatização não é algo novo como comumente vem sendo colocada, uma vez que no campo da política social “pode ser considerada como quase constitutiva”, desde a década de 60, tendo em vista a formação da sociedade brasileira calcada no patrimonialismo e clientelismo. A autora ainda alerta sobre o distanciamento

que tomamos quanto ao modelo de Estado de Bem-Estar Social, uma vez que o papel e posição que o Estado assume é “bem mais recuada quanto a prestação de serviços, muito mais presente no provimento de condições para reprodução do capital, sem maiores exigências distributivas”.

Pode-se afirmar que o Brasil vem passando por uma privatização explícita em que o Estado estabelece regras e transfere recursos para o setor privado produzir e distribuir benefícios e serviços sociais. A partir dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, é enfatizada a privatização seletiva das atividades que possam ser “rentáveis”, requerendo a “reestruturação das instituições sociais, que só é possível com a intervenção estatal direta para remercantilizar os serviços e garantir um mercado estável” (KAMEYAMA, 2001, p. 16-17).

A ênfase na “privatização rentável”, evidenciada pela Reforma, corrobora, implicitamente, para a controversa diretriz da focalização das políticas sociais. Mesmo dentro de critérios antagônicos ao princípio da universalização de direitos, focalizar os diferentes públicos-alvos em suas mínimas especificidades, passa a ser mister na lógica gerencial da melhoria na eficácia do investimento público, o que produz maiores impactos positivos quando direcionados a certos subgrupos populacionais. Tal pressuposto é justificado pela dimensão territorial do país e sua diversidade de problemas sociais. Di Pierro (2001, p. 325), criticando esse raciocínio, destaca que há um “rompimento do princípio da universalidade dos direitos e conduz à segmentação das políticas sociais, que assumem progressivamente a configuração de programas compensatórios destinados a mitigar a pobreza”.

A discussão sobre focalização versus universalização, a cada dia vem se evidenciando. Há autores que consideram que os princípios universalistas das políticas sociais são abstratos, confrontando-se com a realidade da prática social. Carneiro (2003, p. 4) alerta que se alguns consideram que focalização é uma prática neoliberal e que aumenta as desigualdades sociais, o Brasil possui um know-how histórico de um século, desde a abolição, sob o signo das políticas universalistas, de transferências para os mais pobres, e, mesmo assim, o problema da concentração de renda só vem se agravando. Dessa maneira, segundo ele, os preceitos da universalização, até então, foram farsas para reproduzir privilégios, passando a focalização a ser um “pré-requisito

para o resgate da solidariedade devida pelas políticas universalistas, que teve como efeito a apropriação indevida por não-pobres de recursos destinados aos pobres”.

Cabe ressaltar que há algumas posições extremistas de muitos intelectuais

orgânicos e tradicionais14 que, mesmo criticando de maneira coerente as questões ora

discutidas, acabam “focalizando” suas críticas apenas em determinadas categorias da análise social. Wanderley (1996, p.102) alerta para a necessidade de,

superar a crença de que tudo é resultado do poder estatal, desmistificando-o e fortalecendo alternativas originárias de outras fontes civis, e criando mecanismos eficientes que eliminem a cooptação pela establishment. Em contraposição, não demonizar o Estado, mas desmistificar a eficiência do mercado e perseguir reformas que o tornem enxuto e, ao mesmo tempo, uma instância estratégica de atuação (grifo meu).

Entendo que o discurso – proposital ou ingênuo – da demonização estatal, muitas vezes promovido pela própria sociedade civil, é incivil ao considerar que só o Estado tem o poder para garantia de direitos. Por outro lado, sem fazer apologias à privatização do público pregada na reforma estatal, observando o campo político brasileiro, é preciso entender os limites e fragilidades do Estado, em especial, de quem faz parte do espaço público ampliado, tendo em vista a diversidade de organizações que vêm se intitulando neste, principalmente, com o advento do chamado terceiro setor.

14 Conforme a categorização de Gramsci (1929), em princípio, "Todos os homens são intelectuais [...]

mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectual". Distingue, assim, os que fazem parte de uma categoria orgânica cristalizada como “casta” em função de uma determinada classe. Ou seja, os intelectuais orgânicos são aqueles que elaboram e defendem as ideologias da classe dominante para manter sua hegemonia, estando entre suas categorias mais típicas, naquela época, o clero. Os demais, seriam os intelectuais tradicionais, como, por exemplo, os acadêmicos (MANACORDA, 1990, 151).

2.2.2 A expansão do chamado terceiro setor: conceituação, caracterização e