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O DISSEMINAR DO CONHECIMENTO

A docência numa universidade de grande porte como a Unimep, na qual o Projeto Político Pedagógi- co se norteia pelo ensino, pesquisa e extensão, oferece condições para os docentes se envolverem, à medida que desejam, em diversos tipos de projetos para além da sala de aula.

Em minha trajetória docente, vários projetos e trabalhos voltados às pessoas com deficiências e o corpo em movimento se concretizaram. Nesse texto apresento dois deles, devido ao grau de relevância que alcançaram.

Em meados da década de 1990, iniciei na cidade de Piracicaba um levantamento para identificar quais eram as instituições que atendiam a população com deficiência, quais áreas profissionais eram contempla- das e se a Educação Física fazia parte dessas áreas. Na época, eram cinco instituições as quais atendiam pessoas com deficiência intelectual, física e auditiva, e em nenhuma delas havia a Educação Física como uma área profissional atuante e reconhecida pelas equipes multiprofissionais. Havia apenas o Projeto Clarear, da Prefeitura Municipal, que oferecia à população com de- ficiência atividades esportivas que eram ministradas por dois profissionais especializados na área e mais alguns estagiários.

Mediante esse quadro, coordenei um projeto de extensão, oferecido a todas as instituições da cidade, voltado ao trabalho do corpo em movimento, baseado nos conteúdos da Educação Física. Acontecia, nas de- pendências da universidade, um encontro gratuito por semana. Duas instituições aderiram ao convite e parti- ciparam durante três anos. Traziam crianças, adoles- centes, jovens e adultos com deficiências intelectual e física para realizarem os trabalhos.

Muitos educandos dos cursos de graduação em Edu- cação Física, Pedagogia e Psicologia fizeram parte desse projeto como bolsistas e voluntários, os quais se envol- veram de modo mais aprofundado com a Educação Físi- ca Adaptada. Todo o suporte em relação à programação para cada turma dos participantes foi dado: reuniões semanais, debates, conversas com outros profissionais, congressos da área, estudos, trabalhos acadêmicos, fil- mes, entre outras estratégias foram possibilitadas aos educandos para que as dificuldades enfrentadas nos encontros não fossem motivos para o desânimo e a de- sistência. Foi um projeto que se disseminou em outros, para além dos muros da universidade.

Com o decorrer do tempo e a partir dos resultados e da visibilidade desse projeto, as instituições contra- taram profissionais de Educação Física para compor as equipes já existentes e compostas por pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutri- cionistas e terapeutas ocupacionais. Isso vem aconte- cendo desde então e, dessa forma, a Educação Física passou a ser reconhecida como essencial no trabalho

de habilitação e melhor desenvolvimento das pessoas com deficiências nos locais que as recebem. Alguns autores como Cardoso (2011), Interdonato & Greguol (2011), Mauerberg-de Castro et al. (2013), Nascimento & Silva (2007), entre outros, confirmam em seus estu- dos o quanto a área da Educação Física pode trazer de contribuições positivas às pessoas com deficiências.

Um outro projeto de ensino, pesquisa e extensão de grande significado foi desenvolvido durante dois anos numa das instituições da cidade que atende pes- soas com deficiências visuais (DV). Este se desenvol- veu com três docentes, discentes bolsistas e discentes voluntários. Como no anterior, todo o suporte foi dado aos envolvidos e muitos resultados foram colhidos.

Na pesquisa, alguns dos resultados alcançados foram divulgados em trabalhos de conclusão de cur- so, que foram apresentados no Congresso Brasileiro de Educação Física Adaptada, ou sendo publicados, como o artigo “Programa de atividades motoras para pessoas com deficiências”, de Porto et al. (2011), pu- blicado na revista Benjamin Constant. Neste, são apre- sentados alguns dos pontos mais significativos do desenrolar do projeto durante os dois anos. O artigo também foi mostrado em outras universidades nas quais tive a oportunidade de participar de mesas re- dondas ou palestras em eventos científicos.

Pensando na extensão, a população foi atendida pelo projeto – as pessoas com deficiências visuais e suas famílias, os profissionais engajados, como: as- sistente social, médicos, psicólogo, fisioterapeuta,

professores, artistas plásticos e adultos voluntários. Levar o conhecimento sobre a Educação Física a esse grupo de pessoas e mostrá-las o quanto o trabalho desenvolvido por elas era significativo e imprescindível para as pessoas com deficiência visual foi um grande e prazeroso desafio para os professores coordenadores e educandos. Os profissionais das outras áreas des- conheciam o potencial de abrangência que o corpo em movimento sob a ótica dessa área tem e pode alcançar.

Após a conclusão formal do projeto via universida- de, a instituição manteve um dos estagiários no grupo dos profissionais, o qual foi contratado como profis- sional da Educação Física. Este continuou os estudos na Educação Física Adaptada, ampliou os trabalhos na instituição e, hoje, propicia um reconhecimento al- tamente positivo da Educação Física, pelos resultados alcançados a cada trabalho oferecido a seus alunos, na instituição e fora dela.

A maioria das pessoas com deficiências das insti- tuições foram agraciadas pelo trabalho da Educação Física, em que o corpo em movimento é o objeto de estudo e trabalho. Com isso, os benefícios foram sur- gindo e se colocando à mostra pelas conquistas moto- ras, emocionais e sociais alcançadas e reveladas pelas relações interpessoais construídas, pelas possiblida- des dadas às famílias de poderem observar seus fi- lhos se auto superando corporalmente e por poderem experimentar algo novo, diferente e motivador, além dos trabalhos já experimentados pelas outras áreas profissionais.

Os educandos, até a participação nesses projetos, não haviam tido nenhum contato com pessoas com de- ficiências e, a partir dessas vivências, o despertar para a diversidade humana, o respeito e a aceitação ao diferen- te passaram a ser valores humanos significativos para esses jovens em formação universitária. Os desafios en- frentados e superados capacitaram-lhes a compreender o corpo, independentemente de suas limitações, como um ser único, sensível e presente no mundo.

Essas vivências reforçavam a todo momento a rela- ção teoria e prática de que era falada em sala de aula. Valores, princípios, formas de se relacionar com o outro e com as diferenças eram a tônica de alguns dos desa- fios. Como diz Cunha (1998), pudemos experimentar, na construção do conhecimento, a prática analisada, refletida e crítica que subsidiava o pensamento para a construção de novas ideias, bem como outras dife- rentes formas de intervenção. Estas possibilitavam aos educandos a percepção e o relacionamento com a realidade multifacetada e dinâmica que se apresentava em todos os encontros.

Os momentos vividos fora da sala de aula rever- beravam diretamente para dentro dela no dia a dia do curso de graduação. A disseminação dos conhecimen- tos adquiridos surgia nos debates, na apresentação dos fatos acontecidos; no interesse e envolvimento de educandos já inseridos e de outros que quiseram fazer parte do grupo; na possibilidade destes participarem mais de perto do dia a dia das pessoas com deficiên- cias; nas visitas dos participantes (profissionais e alu-

nos) dos projetos na universidade e vice-versa; nos tra- balhos de conclusão de curso elaborados; nos projetos de pesquisa de mestrado e doutorado; no incentivo a outros educandos se envolverem com essa população em projetos em outros locais, entre outras ações que aconteceram e continuam acontecendo para além da universidade.

Acredito que todos os envolvidos são corpos viven- tes, corpos vividos na sua existência de ser e estar pre- sente nesses momentos, junto aos projetos e outros trabalhos desenvolvidos na disciplina Educação Física Adaptada que possibilitou um novo sentir, um novo pensar e, por conseguinte, um novo agir para com os corpos com deficiências.

Merleau-Ponty (1994) afirma que o ser humano é e está no mundo percebendo a realidade que se mostra porque, ao ser corpo, aprende-se não só pela inteligên- cia, mas pelas “vísceras”, sensações e imaginação. Isso reflete e deixa aparente que, em situações desafiadoras e instigadoras como as vividas nos projetos, suscita- vam o querer ir além do mostrado e do visível, porque o corpo sentia e percebia ao experimentar cada situação. Como o autor menciona, são várias faces de um mes- mo fenômeno e variadas formas de olhar, ver e sentir cada uma delas quando elas se apresentam.

Nos encontros, era constante o estar diante de pro- blemas para colocar em prática as ações profissionais que deveriam atender às necessidades e anseios de to- dos os envolvidos, ou seja, dos educandos, dos alunos, responsáveis das instituições e meu, como educadora

e coordenadora dos projetos. Para tanto, os estudos, as análises das situações, os diálogos e debates, os erros e acertos se faziam presentes de modo a oferecer a todos do grupo novas possibilidades e descobertas com o in- tuito de atender cada vez melhor todas as pessoas. Essa trajetória fazia parte da complexidade do processo, e não da simplificação, posto que, segundo Morin (2000), ao oferecer desafio e motivação para pensar, uma situação vai permitir programar e esclarecer algo sem desprezar a incompletude e a incerteza, sempre presentes.

Isso mostrou que a aprendizagem era significati- va no sentido de propor a mim e aos educandos, no decorrer do processo, reflexões e mudanças de ações constantes, por permitirem considerações nas etapas já vividas e àquelas que estavam por vir, pelo fato de já terem passado pela ordem, desordem e organização.

Essas reflexões podem se apoiar em algumas pala- vras de Rezende (1990), ao fazerem referência à apren- dizagem significativa como algo que apresenta limites do conhecimento e das múltiplas manifestações da verdade. O autor afirma que esta associa-se à capaci- dade de refletir, meditar e acrescentar sentido aos sen- tidos já existentes, associa-se também ao estabelecer relações significativas nos âmbitos pluridimensional e polissêmico, considerando não só as contradições, mas as contrariedades.

No dia a dia dos projetos, a partir das ações expe- rimentadas, várias contradições vinham à tona, como quando ao estudar sobre a pessoa com deficiência in- telectual, nos deparávamos com uma literatura que

apresentava algo que se distanciava do que a realida- de apresentava, por exemplo. Então pairavam as con- trariedades dos educandos questionando e debaten- do sobre essa relação que em diferentes momentos e ocasiões se mostrava dicotômica. Porém, apreenderam que os limites do conhecimento e as manifestações da verdade existem e devem ser aceitos como algo positivo para o aprimoramento do saber.

Nesse processo, os educandos se mostravam aber- tos e envolvidos com assuntos que incluíam as pessoas com deficiências, que iam além de questões centraliza- das apenas na execução do movimento. Ao perceber sobre o corpo em movimento dos alunos com deficiên- cias, outras temáticas se desvelavam e deviam ser con- sideradas, tais como a família, a educação, a inclusão, o desenvolvimento social e cultural dessa população e os problemas de saúde associados às deficiências, pois estas interferiam no desempenho dos alunos e se des- tacavam nas discussões sobre o processo vivenciado.

A partir dessas experiências vividas, o amadure- cimento e o aprofundamento nos diferentes assuntos abordados trouxeram aos educandos a apreensão do conhecimento, revelando que o aprendizado alcançado foi significativo. “Dessa forma, a educação da inteli- gência diz respeito não apenas ao conhecimento, mas ao pensamento, isto é, à capacidade de refletir, meditar e acrescentar sentido” (REZENDE, 1990, p. 53).

Ao pensar nesses projetos, relembrar o que foi vivi- do e existencializado, sinto-me gratificada como pessoa e como educadora. Muitos educandos que mantiveram

contatos diretos com essa população passaram a se atentar à diversidade humana como algo natural do ser humano presente no mundo. Vários deles já traba- lharam e/ou trabalham com pessoas com deficiências e o corpo em movimento.

Outra meta traçada era que as instituições da ci- dade visualizassem e passassem a acreditar na Educa- ção Física como algo necessário e de grande relevância junto às demais profissões das equipes multiprofissio- nais já existentes, sendo ela responsável por inúmeros benefícios para as pessoas com deficiências, ou seja, uma disciplina carregada de sentidos a serem existen- cializados por aqueles que não tinham oportunidade de sentir e viver o corpo em movimento para além das atividades corriqueiras do dia a dia.

As pessoas envolvidas com as instituições que se inteiravam de alguma forma com as atividades desen- volvidas observavam atentamente e mantinham uma interlocução direta com as pessoas com deficiências, para constatar o que significava a Educação Física fa- zer parte da equipe profissional nas instituições. Era algo novo e diferente, portanto, gerava questionamen- tos e dúvidas se as propostas desenvolvidas por essa disciplina iriam trazer ou não resultados relevantes.

Com o passar do tempo, as equipes multiprofis- sionais constataram que os alunos com deficiências, participantes dos projetos, revelavam que o corpo, ao se movimentar nas aulas, apresentava boas evoluções físicas, emocionais, sociais e culturais nas suas roti- nas diárias, dentro e fora das instituições que frequen-

tavam. Como resultado, concluiu-se que, hoje, das oito instituições que atendem pessoas com deficiências em Piracicaba, apenas uma não tem um profissional da Educação Física contratado.

A relação estabelecida entre a universidade, as ins- tituições e as pessoas envolvidas formou um tripé que desde então vem se firmando a cada dia pelos inúme- ros educandos que passaram pelo curso de Educação Física da Unimep e estão engajados com trabalhos e projetos voltados às pessoas com deficiências, em Pi- racicaba e em outras localidades. Portanto, um dos pa- peis que cabe à universidade desempenhar, além da produção, é a disseminação do conhecimento produzi- do com o envolvimento da sociedade, e isto aconteceu e continua acontecendo a partir dos projetos comenta- dos e de outros desenvolvidos.

Observo e constato nas inter-relações com alunos, ex-alunos, profissionais de outras áreas e famílias de pessoas com deficiências que os trabalhos desenvolvi- dos a partir desses e de outros projetos realizados es- tão sendo expandidos. Isso confirma que a apreensão do conhecimento contextualizado, que o individual e coletivo, a unidade e a diversidade, o singular e o múl- tiplo, o social e o histórico, todos entrelaçados e inse- paráveis (MORIN, 2000), transcendem para o ensinar e aprender algo com significado, tanto pelos educandos quanto por mim, educadora.

A metáfora de Rubem Alves (1985, p. 71) ilustra a trajetória da minha presença na universidade como educadora:

Todo conhecimento se situa sobre um ta- buleiro de xadrez. Há uma confrontação em jogo. Não há observadores. Querendo ou não, somos peças que são manipula- das e, ao mesmo tempo, peças que que- rem influenciar o desenrolar da partida. Não pode haver, portanto, uma definição abstrata de problemas. Os problemas são aqueles da situação estratégica em que nos encontramos colocados.