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A EDUCAÇÃO COMO EXPERIÊNCIA SENSÍVEL

Compreendemos que é a partir da experiência vivi- da que a educação sensível acontece. Essa experiência evoca um tipo de aprendizagem que se baseia na cul- tura e nos afetos. Nesse sentido, as experiências vivi-

das pelo mestre e pelo discípulo tornam-se pauta para a aprendizagem. A respeito da relação da cultura com a vida individual, Merleau-Ponty (1991), em seu texto “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, afirma:

A unidade da cultura estende para além dos limites de uma vida individual o mes- mo tipo de envolvimento que reúne an- tecipadamente todos os seus momentos no instante de sua instituição ou de seu nascimento, quando uma consciência (como se diz) é chumbada ao corpo e apa- rece no mundo um novo ser a quem não se sabe o que acontecerá, mas a quem algo não poderá deixar de acontecer, ain- da que seja o fim dessa vida que mal co- meçou (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 72).

Percebemos na citação apresentada que a expe- riência humana, notadamente marcada pela corpo- reidade, não está determinada de uma vez por todas por nosso destino anatômico, mas está inserida em um contexto cultural passível de transformações, de aprendizagens, de educações. A partir dessa reflexão, compreendemos que a proposta essencial do mestre se baseia não somente em ensinar, mas em despertar o discípulo para o desejo de compreender e buscar o aprendizado. O mestre ensina ao discípulo a ver à sua própria maneira e a encontrar seus caminhos. As- sim, a figura do mestre deve ser pensada como aquele que ensina o discípulo, primeiramente, a aprender, a transformar-se. Esse é o passo fundamental no cami-

nho da aprendizagem das técnicas, dos fundamentos e dos princípios de uma arte.

Nota-se que o poder oriundo dessa relação se har- moniza entre o mestre e o discípulo. Esse último, no fundo, atribui ao mestre a competência de ensinar a aprender e, no instante que essa atribuição é realiza- da, opera-se a abertura para o aprender. Quando afir- mamos que aprendemos algo, ou seja, quando dize- mos “aprendi”, a expressão denota um tempo passado que significa que o sujeito adquiriu conhecimento de algo, que conserva na memória o que lhe foi apre- sentado num passado e está enraizado em seu corpo. Já “aprender”, denota uma ação presente, que se de- senrola e sugere uma disposição, uma abertura para o aprofundamento da experiência. Trata-se de uma qualidade condicionada ao presente, ao movimento, não de uma forma circular, mas espiralada. Segun- do o dicionário, a palavra “aprender” significa “tomar conhecimento de algo, retê-lo na memória, graças a estudo, observação, experiência” (ANJOS; FERREIRA, 2011, p. 93).

E é a partir dessa experiência que nos pautamos para dar voz ao mestre. Esses ensinamentos fazem parte da experiência de vida dos mestres, nas vivên- cias que eles tiveram enquanto discípulo até se torna- rem mestres. Tal transição se dá no decorrer de uma prática dedicada e assídua. Tudo o que são e fazem, seja na arte do Budô ou em outras Artes Marciais, de- ve-se muito à singularidade desses mestres em con- templar suas vidas nesses ensinamentos e todos os

acontecimentos experimentados ao longo da vida. Mas por que trazer as Artes Marciais para refletir sobre o processo da aprendizagem? As Artes Marciais não têm um caráter de confronto, de luta? É preciso lembrar que, quando foi necessário lutar para viver – e aqui nos referimos ao confronto direto –, as Artes

Marciais ou Arte da “Guerra”6, como o próprio nome

já faz referência ao deus Marte, foram necessárias por um motivo primário, o da subsistência. O homem aprendeu a lutar para sobreviver, seja com animais ou com outros homens, seja para caçar ou para se de- fender, seja para conseguir alimento ou para ganhar território. Porém, não se deve deixar de compreender o grande propósito do porquê as Artes Marciais foram criadas. E aqui vale fazer uma breve explanação de conceitos a respeito do termo lutas e o termo Artes Marciais.

É preciso estabelecer a diferenciação entre Artes Marciais e lutas, que muitas vezes são compreendidas e até empregadas em alguns contextos como sendo de mesmo significado. Para este trabalho assumimos essa distinção, de forma que consideramos que Artes Marciais são disciplinas físicas e mentais codificadas em diferentes graus, que têm como objetivo principal um alto desenvolvimento de seus praticantes, mestre

6 O termo Artes Marciais é ocidental, e constitui-se como uma referência às Artes de Guerra, pois sua origem é vinculada ao deus da guerra greco-romano Marte. Assim, as Artes Marciais, segundo esta mitologia, são as Artes ensinadas pelo deus Marte aos homens. As Artes Militares ou Marciais eram todas as práticas utilizadas pelos exércitos no desen- volvimento de treinamento e habilidades para o uso em guerras não importando a origem ou povo que as criou.

e discípulo, em sua integridade. São atividades cor- porais de ataque e defesa, podendo também ser ca- racterizadas como lutas (DRIGO et al., 2005). As lu- tas, por sua vez, são práticas que possuem combates diretamente corporais (LOURENÇO; MAYOR; SILVA, 2007). A principal diferença entre as duas é que para os praticantes de Artes Marciais, principalmente as de origem oriental, considera-se que os conteúdos da cultura de origem da atividade teriam uma orientação proveniente de uma “filosofia de vida”.

Nesse texto, destacamos o papel do mestre de Ar- tes Marciais enquanto educador dessa arte. Para tan- to, faz-se necessário considerar os princípios de vida e de uma filosofia, na medida em que o mestre encami- nha o aprendiz para uma aprendizagem permanente, aprendendo a transformar-se e a transformar esses ensinamentos em fundamentação para sua existên- cia. Dessa forma, podemos chamar metaforicamente de uma “luta” pela vida, pela existência. Então, pre- cisamos atentar para não nos ofuscar e pensar essa forma de “luta” como uma medíocre contravenção contra um adversário de carne e osso, em confron- to direto. Mas, como uma luta com fins existenciais. Contudo, não podemos e não devemos abdicar da luta propriamente dita, pois esta faz parte desse processo de aprendizagem nas Artes Marciais como um exercí- cio de ascese a um só tempo do corpo e da alma.

Assim, o ato de lutar nas Artes Marciais busca, em sua essência, desenvolver-se com o outro e não

Arte, em seu princípio fundamental, deve ultrapas- sar as barreiras do local de treino e prolongar-se na vida dos que ali estão envolvidos, tanto mestre quan- to discípulo. Nesse sentido, trazemos o pensamento

do mestre Jigoro Kano7, que criou a arte do Caminho

Suave, que em sua proposta original da arte, afirma:

O judô não é apenas uma arte marcial, mas sim um princípio básico do com- portamento humano. A aplicação desse princípio na defesa, contra-ataques ou como educação física em randori8 no

dojo9, é apenas um aspecto do judô – é

errado acreditar que o judô termine no

dojo (KANO, 2008, p. 66).

A mesma ideia é apresentada pelo mestre Morihei

Ueshiba10, quando nos fala sobre o real sentido inves-

tido em sua Arte:

O aikido11 é o remédio para um mun-

do doente. Há maldade e desordem no

7 Jigoro Kano (1860-1938) foi o fundador e disseminador da Arte Marcial Judô ou “Caminho da Suavidade”, tradução literal e a proposta de Jigoro Kano ao criar o Judô.

8 É um treinamento, uma espécie de luta que não vale nenhum ponto no qual você apenas treina com a pessoa.

9 Local de muito respeito onde se treinam Artes Marciais, principal- mente, as de origens nipônicas.

10 Morihei Ueshiba (1883-1969) foi o fundador e disseminador da Arte Marcial Aikido, que significa “O Caminho Harmonioso da Energia”. 11 Ocidentalmente é compreendido como “O Caminho Harmonioso

mundo porque as pessoas esqueceram que todas as coisas emanam de uma só fonte. Retorne a essa fonte e deixe para trás os pensamentos egoístas, os de- sejos mesquinhos e a raiva (STEVENS, 2007, p. 130, grifo nosso).

Por vezes, esses ensinamentos e o destino dessa prática oculta de si mesma seus objetivos primor- diais. Assim, quando pensamos no ensino dessas ar- tes nos dias de hoje, nota-se que em alguns contextos há a distorção de seus princípios éticos, filosóficos e de formação. Compreendemos que o princípio de aprendizagem que norteia as Artes Marciais baseia-se na construção do Ser na sua maneira mais significa- tiva, tendo na figura do mestre o pilar de todo esse aprendizado. E a verdadeira compreensão da Arte só se torna possível para aqueles que se abrem, de cora- ção puro e de desejos que perpassam também a lógica da razão.

Por sua vez, o aprendiz precisa estar aberto para aprender. Da mesma forma, o mestre que se dispõe a ensinar deve alimentar-se dessa mística corrente e conceber seus ensinamentos também como apren- dizagem de si e um caminho de autoconhecimento e transformação. Nesse momento, o mestre volta a ser discípulo, pois só se concebe esse tipo de relação de maneira onde a doação de cada um no processo é o retorno a si próprio tornando o ciclo sempre aberto.

Um exemplo que complementa esse mesmo pen- samento é a descrição que o filósofo alemão Herrigel

faz ao descrever sua experiência na aprendizagem do arco e flecha. Ele diz que:

O arqueiro se mira e no entanto não se atinge, e por vezes ele pode de atingir sem ser atingido, de maneira que será simultaneamente o que mira e o que é mirado, o que acerta e o que é acertado. Ou, para utilizarmos de uma expressão cara aos mestres, é preciso que o ar- queiro, apesar de toda a ação, conver- ta-se em ser imóvel para, então, se dar o último e excelso fato: a arte deixa de ser arte, o tiro deixa de ser tiro, pois será um tiro sem arco e sem flecha; o mestre volta a ser discípulo; o iniciado, principalmente; o fim, começo, e o co- meço, consumação (HERRIGEL, 2011, p. 23).

Com o objetivo de tornar expressiva essa expe- riência, o mestre segue seu caminho junto ao seu discípulo que, através de uma educação metódica e sistemática, é conduzido a perceber, no fundo, que o papel do mestre é, sobretudo, ensinar a aprender e aprender ensinando. Nesse processo, o mestre tam- bém é aprendiz de seus próprios ensinamentos e o aprendiz é o futuro mestre que desenvolverá a arte de aprender. Ou seja, é a experiência que se transfigura, onde o mestre se faz discípulo de seu próprio eu. Algo extremamente interior e muito rico como experiência existencial fundada no autoconhecimento e na trans-

formação por meio das experiências vividas ao longo da existência.

Nessa relação de mestre e discípulo, cria-se uma linguagem única e muito expressiva por meio do gesto, do olhar, do movimento, da palavra, do silêncio e, so- bretudo, da capacidade de ambos para se comunicar nas entrelinhas, envoltos em uma atmosfera plena de sensibilidade. Assim, o discípulo precisa estar dispo- nível, sensibilizado para a aprendizagem. Da mesma forma, o mestre, em sua magnitude exemplar, expõe na experiência da Arte o caminho que conduz o discí- pulo à sua meta. Nesse processo, nenhum discípulo será mais o mesmo depois de dar o primeiro passo na filosofia das Artes Marciais, uma vez que assimilou o papel de seu mestre como norte desse caminho.

Para visualizarmos esse ato, trazemos novamen- te a reflexão sobre o filme Primavera, verão, outono,

inverno… e primavera. A riqueza de elementos que

se expressam no contexto geral do filme mostra-nos quão significativa é a relação entre mestre e discípulo. Aqui não basta demonstrar de forma simplória essa relação – em que um ocupa o lugar do outro e juntos vão seguindo o ciclo da vida. O desfecho do filme colo- ca o aprendiz ocupando, literalmente, o lugar do mes- tre no santuário, realizando os mesmos exercícios, os mesmos rituais e, agora, dando sequência à doutrina dos ensinamentos a outro discípulo, como podemos observar na Imagem 3.

Imagem 3 – O discípulo se torna mestre e educa um novo discípulo.

Fonte: Primavera, verão, outono, inverno… e primavera (2003).

Assim, podemos visualizar o sentido no qual expe- rimenta-se o lugar do outro. O mestre-monge ensina o pequeno discípulo pela experiência e esta se conso- lida na experiência do outro. Trata-se de uma relação complexa, de transformações mútuas e profundas. Em Merleau-Ponty, essa relação entre um corpo e o corpo do outro é remetida ao próprio corpo. Na Fenomenolo-

gia da percepção, o filósofo assim se expressa:

Como as partes de meu corpo em con- junto formam um sistema, o corpo de ou- trem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima, da qual o meu corpo é a cada momento o rastro habita dora- vante estes dois corpos ao mesmo tempo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 474).

Dessa forma, torna-se inaceitável pensar nesse

caminho sem aceitar a ajuda e reconhecer o papel de

um mestre. Depois do contato do discípulo com seu mestre, e vice-versa, a sensação que surge é a de um ocupando o lugar do outro. Ambos agindo para o bem comum, contemplando e complementando os desejos recíprocos em um mesmo caminho, ultrapassando di- ferenças em nome de um projeto de aprofundamen- to das aprendizagens e do aperfeiçoamento técnico e existencial. Assim, o mestre que ensina, ao mesmo tempo, é ensinado. Este procede suas orientações de maneira a contemplar o discípulo individualmente, li- bertando para o aprendizado. Por conseguinte, o discí- pulo que aprende, aprende profundamente como deve se organizar para estar disposto a interpretar os ensi- namentos do mestre e realizá-los, ou seja, ele apren- de a aprender, incorporando essa atitude como fundo imemorial da carne.

Como já nos referimos no início desse texto, a car- ne aprofunda a noção de corpo na filosofia de Mer- leau-Ponty, sendo mediada entre outros aspectos pelo esquema corporal e pelo imaginário. Assim, ao dizer que o discípulo incorpora a aprendizagem e o esti- lo de seu mestre, remetemos a esse fundo imemorial da carne, posto que envolve e condensa experiências, temporalidades, espacialidades que ultrapassam no tempo mesmo da natureza nossa vida individual, re- velando camadas arqueológicas mais profundas do nosso ser.

Nos cursos ministrados sobre a natureza, no Collè-

ge de France, entre os anos de 1956 e 1960, Merleau-

-Ponty irá descrever a arqueologia do corpo humano, sua capacidade de sentir (estesiologia) e a passagem da natureza à cultura. Nesse processo, a carne do corpo e aquela do mundo fundam uma intercorporei- dade na qual anexamos ao nosso corpo atual outros corpos, espaços, temporalidades e aprendizagens di- versas (NÓBREGA, 2015, 2016).

Ao enfatizarmos a relação mestre e discípulo, es- clarecemos que não se trata de uma relação de de- pendência ou de submissão. Ao contrário, essa rela- ção é baseada na escolha, na liberdade que motiva ambos, mestre e discípulo, a estarem ali, presentes, ligados por uma força que emana do desejo individual de ambos e que configuram horizontes existenciais comuns. Essa consagração motiva-se pelo desejo in- termitente de cada um poder dar o melhor de si: o mestre em seus ensinamentos e o discípulo em sua disposição para aprendê-los. Por vezes, muitos desses ensinamentos nas Artes Marciais são verdadeiramen- te árduos e dolorosos. Porém, um mestre experiente sabe implementá-las segundo as próprias condições oferecidas por seu discípulo. De outra parte, espera- -se que o discípulo confie em seu mestre, sabendo que pode contar com seu apoio, caso ele venha a “fa- lhar”. Cabe ainda lembrar que o discípulo consolida as referências e evoca o sentido de honra e orgulho quando atende e cumpre os ensinamentos do mestre.