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IMPOSIÇÃO À INSPIRAÇÃO

Regina Simões & Flávia Fiorante

INTRODUÇÃO

As expressões, imposição e inspiração, grafadas no título, nos remetem a relatar sobre o que é ser profes-

sor universitário/de ensino superior18, pesquisador e,

consequentemente, orientador no espaço da formação inicial. Para que façamos associações e/ou análises dessas atitudes, é impossível desconsiderar as vivên- cias e experiências adquiridas ao longo de nossa traje- tória profissional.

Essas vivências e experiências nos possibilitam ad- quirir um novo habitus que, de acordo com Bourdieu (1998), significa um sistema de disposições duráveis que conduz movimentos, ações, atitudes e experiências

18 Universidade é diferente de ensino superior ou de 3º grau (ofe- recido nas faculdades e institutos isolados), pois nela é preciso oferecer tanto aos estudantes como aos professores acesso aos diversos campos da cultura e da ciência. Embora não seja necessário oferecer de modo regu- lar e contínuo todos os cursos/áreas de conhecimento possíveis, é preciso contemplar a universalidade do saber, além de estabelecer parcerias, con- vênios, intercâmbios, pós-graduação e serviços à comunidade, atendendo aos pressupostos do ensino, da pesquisa e da extensão (MORAES, 1998).

de toda movimentação dos atores que compõem o meio em que o sujeito está inserido. É fruto de uma longa etapa de aprendizagem, estrutura-se e reestrutura-se de forma contínua, inicialmente no seio familiar, pos- teriormente na escola e depois nas demais instituições frequentadas pelo indivíduo.

Especificamente em nossa trajetória profissional, esse novo habitus adquirido no interior da ação pro- fissional reestruturou e ressignificou nossa forma de viver e de pensar a docência, assim como nos rela- cionamentos com os educandos, refletindo em novas ações e gestos na maneira de falar, de opinar e/ou de se expressar. Tais atitudes foram construídas tendo como base inicial as experiências vividas e aprendidas no ambiente familiar, nos constituindo sujeitos de nos- sa própria história.

O habitus adquirido, construído e produzido na fa- mília, está em constante reestruturação, com o propó- sito de orientar funções e ações do cotidiano, sendo os reflexos percebidos no nosso agir profissional – habitus

acadêmico19 – que deve ser dinâmico e ressignificado.

Ele reflete de forma direta no acúmulo do capital cul- tural, associado à aquisição de qualificações, estudos e conhecimentos necessários para que a prática docente possa ser significativa e reflita de forma efetiva na for- mação dos educandos.

O habitus acadêmico e o capital cultural adquiri- do ao longo de nossa trajetória contribuíram de forma

marcante para que hoje, como professoras universitá-

rias20, pudéssemos, entre outros, ter o entendimento

de que o ensino, a pesquisa e a extensão estão atre- lados, formando o já consagrado tripé que sustenta, em especial, a universidade. O ensino sem a pesquisa pode tornar-se provinciano, a extensão sem a pesqui- sa, assistencialista, o ensino sem a extensão, inaca- bado, e a pesquisa sem a vinculação com o ensino e extensão, descontextualizada (TANI, 2011).

Porém, essa realidade nem sempre se constituiu essencial nos nossos espaços de atuação profissional, pois em boa parte das universidades e, principalmen- te, nas faculdades e centros universitários, a maior preocupação foi exclusivamente com o ensino. Inclusi- ve, em algumas instituições, o ensino profissional era prioritário (NUNES; CARVALHO, 2007), com vistas a atender o mercado de trabalho, contribuindo para que o aluno tivesse uma visão de mundo restrita e/ou des- contextualizada da realidade em que vivia e ou gosta- ria de viver.

Essa realidade já tem início no ensino médio, quando os discentes são instigados a escolher a “pro- fissão” e começam a criar mecanismos para atingir esse propósito, buscando alternativas de ingresso na universidade/ensino superior, seja por meio da apro- vação no vestibular e/ou no Exame Nacional do Ensi- no Médio (Enem).

20 Utilizaremos no texto a expressão professor universitário por en- tender que, mesmo no ensino superior, é preciso estimular, além do ensino, a pesquisa e a extensão.

Com esse pano de fundo, iniciamos a docência no ensino superior, caracterizada pela transmissão de co- nhecimentos oriundos da reprodução da prática peda- gógica obtida nos cursos de graduação ou nos cursos de atualização, ratificando Gil-Pérez e Carvalho (2000), ao afirmarem que os docentes ainda ministram aulas com base no ensino tradicional, apesar das críticas de diversos autores sobre isso.

No nosso entendimento, essa era a forma correta de ser professor universitário, a de mero (re)transmis- sor de conhecimentos provenientes também dos “espe- cialistas” (TEIXEIRA, 2003), sem perceber a distância instaurada entre ter a qualificação para a reprodução da prática pedagógica e a qualificação oriunda da pro- dução de novos conhecimentos.

Vale considerar que nossa graduação em Educação Física se caracterizou pela formação baseada no ensi- no técnico, numa perspectiva única e exclusivamente de análise do desempenho numérico de resultados que avaliavam o aspecto físico da execução dos gestos es- portivos (o que foi reproduzido principalmente em nos- sas aulas de caráter prático). A aprendizagem técnica proposta era limitante e não entendida pelos pressu- postos de Bento (2006), que a considera essencial para se criar e inovar, além de garantir que a beleza do gesto seja elucidada.

Além disso, no bojo da nossa formação e docência inicial havia a primazia do ensino sobre a pesquisa e, mais ainda, sobre a extensão, reflexo em parte pela fal- ta de qualificação e análise crítica da realidade e parte

pela pouca disponibilidade de tempo destinado à pes- quisa e às orientações, principalmente em faculdades e centros universitários (ALVES-MAZZOTTI, 2001).

Durante vários anos, foi essa a forma como nos constituímos professoras universitárias. Mas após al- gum tempo e com as mudanças circunstanciais no processo educativo, percebemos que não bastava ter uma qualificação didática e foco apenas no ensino me- canizado, era preciso mais, uma vez que o próprio mer- cado de trabalho exigia outra forma de ser e existir no espaço acadêmico. Uma das maneiras de atender isso era com a formação continuada, a partir da inserção em programas de pós-graduação.

Apesar de teoricamente entendermos a necessida- de dessa qualificação, não era algo almejado. Porém, o temor da perda do emprego por não possuir titulação acadêmica nos levou à busca da pós-graduação em ní- vel de mestrado, algo muito novo, complexo e temeroso (SILVA; GONÇALVES-SILVA; MOREIRA, 2014).

A imposição da conjuntura no interior da atuação profissional foi a mola propulsora para que tivéssemos a oportunidade de agregar à função de professor uni- versitário a de pesquisador. Essa atitude pressupôs o que revela Severino (2007, p. 32), ao dizer que: “O avanço do conhecimento deve ser articulado à inves- tigação de problemas socialmente relevantes, conside- rando as demandas da sociedade brasileira”.

Nesse período, na universidade em que atuávamos, apesar de ser da rede privada, havia um estimulo ao desenvolvimento da pesquisa por meio da inserção em

projetos de pesquisa e de iniciação científica, além da valorização dos docentes que estavam engajados em programas de pós-graduação. O que contribuiu para nossa iniciação às investigações.

Apesar de termos conhecimento de que a pós-gra- duação stricto sensu era o local efetivo da produção do conhecimento e da materialização da pesquisa, o desa- fio maior era a obrigatoriedade não apenas de produzir uma dissertação para obter a titulação, mas desen- volver uma “pesquisa” que atendesse aos pressupos- tos de organizar, sistematizar, propor e socializar um corpo de conhecimentos acadêmicos-científicos (TANI, 2014). Também havia a intenção de associar a investi- gação proposta com as nossas experiências empíricas, inseridas na vivência cotidiana da ação profissional e, portanto, não poderiam estar desvinculadas da produ- ção do conhecimento.

Cabe ainda ressaltar que o envolvimento com a pós-graduação propicia várias inseguranças, incerte- zas e angústias desde a escolha das disciplinas a se- rem cursadas, a relação entre estas e o tema da pes- quisa, as vaidades dos “doutores” que não se intitulam docentes, e sim “pesquisadores”, e a relevância de um assunto que contribua para alterar nossas atitudes como docentes. Mas também oferece momentos praze- rosos como o convívio com novas pessoas, a participa- ção em grupos de estudos, congressos, a mudança em nossa maneira de ser e agir no ambiente profissional e a percepção de que a pesquisa é algo que contamina, estimula e identifica o ser existencial.

Ser pós-graduando é um paradoxo, pois mescla momentos de euforia e instantes de se sentir incapaz. Tempos solitários e períodos solidários, assim como é a vida, um ir e vir, como canta Milton Nascimento em “Encontros e despedidas”:

Todos os dias é um vai e vem A vida se repete na estação Tem gente que chega para ficar Tem gente que vai para nunca mais Tem gente que vem e quer voltar Tem gente que vai e quer ficar Tem gente que veio só olhar Tem gente a sorrir e a chorar E assim chegar e partir

São só dois lados da mesma viagem O trem que chega é o mesmo da partida A hora do encontro é também despedida A plataforma desta estação é a vida […]21.

O envolvimento com o programa, o contato efetivo com novas e outras teorias e autores, reflexões coleti- vas, produção de novos conhecimentos e a percepção dos avanços em nosso habitus acadêmico fizeram com que os temores iniciais fossem desmistificados, servin- do de inspiração para semear a pesquisa nos cursos de graduação em que ministrávamos aulas e, desta for- ma, pudéssemos transmitir aos alunos a transformação

21 Disponível em: <https://goo.gl/9NkoAu>. Acesso em: 16 jan. 2018.

que vivenciamos que se constituiu inicialmente em uma imposição e, posteriormente, inspiração para o ato de pesquisar.

Nosso desejo era que o processo de investigação passasse a fazer parte do habitus de nossos alunos, as- sim como foi em nosso viver, incentivando-os a incorpo- rar essa atitude como algo significativo para sua traje- tória como acadêmico, alterando seu comportamento, suas ações cotidianas, sua identidade através da troca, do diálogo e da mediação recíproca e contínua entre os mundos objetivo e subjetivo. Uma das formas de aten- der a esse propósito, no conjunto das disciplinas que ministramos ao longo da trajetória profissional, e con- siderando a contribuição que a pesquisa teve em nossa maneira de ser professor universitário, a proposta deste texto é relatar as experiências no ser professor/pesqui- sador/orientador no âmbito da metodologia da pesqui- sa científica e do trabalho de conclusão de curso.

O LUGAR DA PESQUISA NA GRADUAÇÃO: O SER