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Distorções duradouras e a interdição do diálogo entre as ciências

2 O LIVRO DIDÁTICO COMO POLÍTICA PÚBLICA E INSTRUMENTO DE DIFUSÃO

2.3 Biodiversidade no PNLD

2.3.1 Distorções duradouras e a interdição do diálogo entre as ciências

Como veremos a seguir, a melhor resposta possível da ciência para um determinado problema não é suficiente para que tenhamos atitudes correspondentes a este nível de conhecimento em um determinado momento. Isto tanto é verdade para questões ambientais, como no atual e interminável debate sobre a contribuição antropogênica para o aquecimento global, quando não para a própria existência de tal desequilíbrio climático, como para as questões de cunho social, neste caso, para a utilização de concepções falsamente científicas para alicerçar políticas de exclusão.

Na segunda metade do século XIX, a existência de raças humanas pareceu uma constatação coerente com a aplicação da teoria da seleção natural e de conceitos de hereditariedade defendidos pelo naturalista inglês Charles Darwin (1909-1982), articulados em uma teoria denominada pangênese, que postulava que cada parte do corpo dos genitores contribuiria autonomamente para a formação do novo indivíduo e que, confirmando uma das convicções biológicas daquele período, modificações sofridas por uma dessas partes seriam transmitidas à prole, a chamada herança de caracteres adquiridos.

Mayr (1998) afirma sobre a pangênese:

A ideia de uma panspermia, ou pangênese, foi expressa pela primeira vez, ao que parece, por Anaxágoras (pelos anos 500-428 a.C.), e teve os seus representantes pelo menos até o final do século XIX, entre eles Charles Darwin (...). Se admitirmos o efeito do uso e desuso, ou alguma outra forma de herança de caracteres adquiridos, como quase todo mundo admitia desde Hipócrates até o século XIX, somos virtualmente obrigados a aceitar aquela teoria. Uma característica da teoria da pangênese é também a alternância entre a formação do corpo (fenótipo, soma) e, por meio dele, a formação da substância

15 Disponível em abrapecnet.org.br/worldpress/wp-content/uploads/2015/12/Escola-sem-partido.pdf,

seminal (esperma, genótipo), a qual, então, diretamente pelo crescimento, se converte de novo no corpo da geração seguinte. Essa concepção era essencialmente mantida, até ser ameaçada pela primeira vez nos anos 1870 e 1880 (Galton, Weismann) (MAYR, 1998, p. 707-708).

Se por um lado os trabalhos de Galton e Weismann contribuíram para que as ciências biológicas abandonassem a teoria da pangênese, após mais de 2300 anos, sua superação completa só viria com a demonstração do processo mendeliano de hereditariedade. Antes que isso acontecesse, a pangênese ainda serviria para alicerçar ideias de pureza racial, em trabalhos de um dos autores que, segundo Mayr (1998, p. 708), contribuíram para sua derrocada, o inglês Francis Galton.

Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin, foi um dos mais destacados pesquisadores a defender a visão do processo de caracterização de raças humanas, e trabalhou em uma combinação de três linhas de trabalho complementares: estudos biométricos, desenvolvimento de instrumental estatístico16 para análise dos resultados desses estudos e formulação de todo um conjunto de ideias de pureza racial, que constituem a base da eugenia:

Galton, primo de Darwin, foi o primeiro a sugerir que, através de uma seleção apropriada, poderíamos e deveríamos melhorar a humanidade mais ainda. Ele cunhou o termo “eugenia”. Pessoas de todas as faixas do espectro político, da extrema direita à extrema esquerda, endossaram a ideia a princípio, concebendo a eugenia como uma forma de conduzir a humanidade a uma perfeição cada vez maior. É tristemente irônico que esse nobre objetivo inicial tenha levado aos crimes mais hediondos que a humanidade já viu. Quando interpretado tipologicamente, ele conduziu ao racismo e. por fim, aos horrores de Hitler. (MAYR, 2008, p. 328).

A teoria da pangênese foi rejeitada a partir da aceitação da abordagem mendeliana para a hereditariedade no início do século XX e dos avanços da microscopia e da biologia celular. Ainda que de maneira lenta, crescia o entendimento de que o conceito de raça não se aplicava à nossa espécie e, portanto, que não era possível falar-se em raças humanas puras. Hoje, nosso conhecimento sobre a genética das populações europeias sugere que Homo neandertalenses, os neandertais, hibridizaram por um longo período com nossa espécie na Eurásia, de

16 Análise de regressão, o teste exato de Fisher e o teste qui-quadrado são exemplos de ferramentas

estatísticas desenvolvidas por Francis Galton e seus discípulos, entre eles, Karl Pearson e Ronald Fisher.

maneira que as populações humanas europeias modernas compartilham percentuais significativos de variações genéticas com os extintos neandertais, enquanto as populações africanas subsaarianas não (SANKARARAMAN et al, 2012; VERNOT; AKEY, 2014; FU et al., 2015). Em outras palavras, humanos e neandertais hibridizaram na Eurásia e variações genéticas daqueles extintos hominídeos fixaram- se no genoma humano europeu. Se considerarmos a linguagem proposta na teoria de eugenia, que emergiu na segunda metade do século XIX capitaneada por Francis Galton, europeus são mestiços e africanos são puros.

Galton havia publicado em 1869 Heriditary genius (Genialidade Hereditária), que ganhou segunda edição em 1892 e trazia as bases da interpretação de seus estudos biométricos, solidamente apoiados em uma original e correta análise estatística, e que, baseado na teoria da pangênese, propunha uma explicação científica para a superioridade racial europeia, o que justificaria, do ponto de vista social, político e histórico, a dominação de outros povos, particularmente pelo Reino Unido (GOULD, 1991).

O naturalista Alfred Russell Wallace (1823-1913), ele mesmo coautor da teoria da seleção natural com Charles Darwin, defendia que raças caracterizadas por serem intelectual e moralmente “mais evoluídas” substituiriam aquelas mais “primitivas e degeneradas”, e que esse processo levaria a um padrão racial homogêneo. Essa formulação era influenciada diretamente pelo filósofo Herbert Spencer (1820-1903), e sustentou uma corrente de pensamento que ficou conhecida como darwinismo social (MAYR, 1998, p. 431). O pensamento eugênico entrou no século XX como uma corrente muito influente, tanto no campo da ciência como no campo político, mas passou a se confrontar com os novos conhecimentos sobre a biologia da hereditariedade e da reprodução, o que não foi suficiente para que retrocedesse antes de duas grandes guerras e do massacre de milhões de pessoas na primeira metade do século.

Uma das distorções mais duradouras no campo da ciência deve-se ao desenvolvimento a partir de Spencer do darwinismo social, fonte ainda hoje de resistência ao processo evolutivo por parte de cientistas sociais, uma vez que permanece entre muitos deles a identificação de Spencer com Darwin, o que, neste ponto, não é verdadeiro. Mayr (1998, p. 431) destaca que para Spencer a evolução

“era um princípio metafísico”17 e suas ideias de nada haviam contribuído para o pensamento darwinista:

As ideias de Spencer não trouxeram nenhuma contribuição positiva para o pensamento de Darwin; ao contrário, elas se tornaram fonte de uma considerável confusão subsequente. Foi Spencer quem sugeriu a substituição da seleção natural pela expressão “sobrevivência dos mais aptos”, tão facilmente considerada tautológica; foi ele também quem se tornou o principal proponente, na Inglaterra, da importância da hereditariedade dos caracteres adquiridos (na sua famosa controvérsia com Weismann). Pior de tudo, foi ele quem passou a ser o mais importante porta-voz de uma teoria social, baseada numa luta brutal pela existência, equivocadamente chamada de darwinismo social (Hofstadter, 1955) (MAYR, 1998, p. 432).

Spencer aproximava-se com suas ideias de vários conceitos populares errados que influenciaram a antropologia, psicologia e as ciências sociais, fazendo com que ainda na segunda metade do século XX a palavra “evolução” fosse entendida no sentido de progressão obrigatória que conduziria a um estado de maior complexidade, mas este é um conceito exclusivo de Spencer que não foi compartilhado por Darwin: “Isso deve ser dito com todo vigor, para acabar com um mito persistente. Infelizmente, ainda há alguns cientistas sociais que atribuem a Darwin esse tipo spenceriano de pensamento” (MAYR, 1998, p. 432). Martins (2004) destaca que Spencer fazia parte do círculo de amizades de Darwin, juntamente com Romanes e Wallace, entre outros, e que após a morte de Darwin os três passaram a divergir abertamente, ao mesmo tempo em que se envolveram em controvérsias com August Weismann (1834-1914). Weismann havia incorporado a herança de caracteres adquiridos por um longo período, mas passou a contestá-la em seu livro Essays upon heredity, de 1883, e a defender a seleção natural como mecanismo suficiente para explicar todo o processo evolutivo (MARTINS, 2004).

17 Mayr (1998, p. 431) cita Spencer: “A evolução é uma integração da matéria e concomitante

dissipação de movimento; durante ela, a matéria passa de uma homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente; e durante o qual o movimento retido sofre uma transformação paralela”. A referência citada por Mayr (SPENCER, 1970, p. 396) não corresponde a nenhum dos dois trabalhos de Spencer citados na Bibliografia, p. 1068. Provavelmente, refere-se a um dos dez volumes de A System of Synthetic Philosophy, publicados entre 1862 e 1896, e citados.