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2 O LIVRO DIDÁTICO COMO POLÍTICA PÚBLICA E INSTRUMENTO DE DIFUSÃO

2.3 Biodiversidade no PNLD

2.3.2 DNA e ideologia

Lewontin (1993, p.87) alerta para o fato de que toda filosofia política tem que começar a partir de uma teoria sobre a natureza humana. Destaca a popularidade da ideia de que a existência humana é controlada pelo DNA, e que temperamentos, habilidades cognitivas e atitudes mentais seriam predeterminados molecularmente, e não estariam sujeitos a modificações. Esta ideologia do determinismo biológico tem o papel de legitimar as estruturas dentro da sociedade impedindo mudanças, pois, o correlato da teoria de que a natureza humana é exclusivamente condicionada por genes é de que a natureza humana é predeterminada e imutável a partir do momento da fecundação, ou seja, o padrão comportamental de uma pessoa não estaria sujeito a qualquer alteração.

Não se deve creditar, porém, apenas a más interpretações ou má vontade das ciências humanas a persistência em se relacionar o evolucionismo a ideias reducionistas. Pelo contrário, os avanços da biologia no campo molecular têm levado muitos a expectativas de um futuro dominado por um determinismo biológico. Alguns biólogos contemporâneos como Richard Dawkins e Richard Lewontin, de maneira independente, vêm alertando para as consequências de se atribuir ao programa genético do indivíduo a reponsabilidade exclusiva de moldar sua personalidade e determinar seu caráter e comportamento, um reducionismo que se constitui em uma ideologia do DNA. Lewontin (1993, p. 107) define reducionismo como:

Nós entendemos que reducionismo é a crença de que o mundo é fragmentado em pequenas partes, cada uma com suas propriedades individuais, e que essas partes se juntam para formar coisas maiores. O indivíduo, por exemplo, forma a sociedade, e a sociedade nada mais é do que a manifestação de propriedades de seres humanos individuais. As propriedades internas são as causas, e as propriedades do conjunto social são as consequências dessas causas.18 (LEWONTIN, 1993, p. 107).

Apesar de incompatível com conhecimento biológico acumulado desde a revolução epistemológica provocada pela publicação de A Origem das Espécies de Charles Darwin, que retirou o homem do campo do sobrenatural e o inseriu na

18 By reductionism we mean the belief that the world is broken up into tiny bits and pieces, each of which

has its own properties and which combine together to make larger things. The individual makes society, for example, and society is nothing but the manifestation of the properties of individual human beings. Individual internal properties are the cause and the properties of the social whole are the effects of these causes. (LEWONTIN, 1993, p. 107).

natureza19, as consequências da apropriação de princípios evolucionistas para alicerçar ideologias e suas consequentes práticas políticas e econômicas produziram profundos antagonismos no meio científico, muitos deles persistentes. Do ponto de vista ambiental, essa prolongada separação entre o que sabemos de fato sobre a história da Terra, a história da vida na Terra, e os processos que levaram a transformação da biota ao longo de mais de três e meio bilhões de anos de evolução orgânica são ainda motivo de resistência no meio das ciências humanas, que não poupam críticas ao que seria o reducionismo biológico. A consequência mais visível, e muitas vezes constrangedora, é que mesmo quando se trata da crise ambiental contemporânea, setores inteiros das ciências humanas se mostram incapazes de perceber que foram os cientistas das áreas de ciências da natureza os primeiros a levantar a voz contra o processo acelerado de destruição dos recursos naturais e da biota do planeta. É possível que a bióloga Rachel Carson (1907-1964) tenha feito mais pela formação de uma consciência ambiental global com seu livro Primavera Silenciosa, de 1962, do qualquer outro autor20. Merece também destaque que já em 1949 Aldo Leopold (1887-1948), em obra publicada após sua morte, apontava as contradições entre a conservação e visão da terra como um bem pertencente à humanidade e sujeito aos abusos das leis de comércio:

19 O conceito de natureza é polissêmico e não é consensual: Para Abbagnano (2007, p.814) “a

interpretação da N. como princípio de vida e movimentação de todas as coisas existentes é a mais antiga e venerável, tendo condicionado o uso corrente do termo.” Orozco (2008, p. 27) situa o aparecimento do conceito no processo de sedentarização do homem a partir do desenvolvimento da agricultura e pecuária, quando “destaca-se então que este processo foi gerado a partir da terra, tornando-se inconcebível que ocorra a sobrevivência humana sem que se dê, simultaneamente, a sobrevivência (...) da natureza” (“Se destaca entonces que este proceso se gestó a partir de la tierra,

resultando inconcebible la sobrevivencia humana, si no se diera, simultáneamente, la sobrevivencia de (...) la naturaleza”). Wulf (2015, p. 245), atribui a Alexander von Humboldt o papel de “inventor da

natureza”, no sentido de ser o primeiro autor a descrevê-la “do espaço exterior para a terra, e, então, da superfície do planeta ao centro (“from the outer space to earth, and then from the surface of the

planet to into its inner core”). Whitehead (2004, p. 3) afirma que “natureza é o que observamos e

percebemos por meio dos sentidos. Nesta percepção sensorial nós estamos cientes de algo que não é pensamento e que está contido nos pensamentos” (“Nature is what we observe in perception through

our senses. In this sense-perception we are aware of something which is not thought and which is self- containes for thoughts”). Willians (1983, p. 219) destaca que Natureza é, talvez, a palavra mais

complexa da língua inglesa e distingue três significados principais: “(i) a qualidade essencial e caráter

de alguma coisa; (ii) a força interna que conduz o mundo ou os seres humanos, ou ambos; (iii) o mundo

material propriamente dito, incluindo ou não os seres humanos”. (“(i) the essential quality and character

of something; (ii) the inherent force which directs either the world or human beings or both; (iii) the material world itself, taken as including or not including human beings”.) Nesta tese, natureza se refere

ao mundo material, vivo e não vivo, incluindo o homem, e todas as suas relações e interações.

20 Primavera Silenciosa de Rachel Carson ganhou nova edição brasileira pela Editora Gaia em 2010.

O livro traz na segunda orelha a informação de que “em dezembro de 2006, o jornal britânico The

Guardian colocou Rachel Carson em primeiro lugar na lista das cem pessoas que mais contribuíram

A conservação não está nos levando a lugar algum porque ela é incompatível com o nosso conceito de terra baseado em Abraão. Nós abusamos da terra porque nós a consideramos uma commodity que nos pertence. Quando enxergamos a terra como uma comunidade a que pertencemos, nós podemos começar a usá-la com amor e respeito. (LEOPOLD, 1968, p. viii).21