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4 BIOLOGIA, CIÊNCIA E OS CÍRCULOS DE CONHECIMENTO DE LUDWIK FLECK

4.2 Ludwik Fleck e os círculos de conhecimento

4.2.2 O pensamento de Fleck no Brasil

Pelo menos dois grupos de pesquisa têm se destacado nas pesquisas referenciadas em Ludwik Fleck no Brasil, um na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), liderado pelo físico Demétrio Delizoicov Neto, e o outro na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderado pelo filósofo Mauro Lúcio Leitão Condé50. O primeiro, Delizoicov, vem trabalhando com o referencial de Fleck pelo menos desde a virada do século, quando sua obra ainda não havia sido traduzida para o português, e tem um papel destacado na difusão das ideias desse autor entre nós. Quanto a Condé, também é um pioneiro na relação com a obra de Fleck no Brasil, com trabalhos publicados ainda nos primeiros anos do século XXI, sendo dele o prefácio da primeira tradução para o português de Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico, em 2010, e a organização de Fleck, estilos de pensamento em ciência, em 2012 (FLECK, 2010; CONDÉ, 2012a).

Delizoicov e Delizoicov (2014) fazem contribuição importante para o entendimento do pensamento de Fleck ao propor sua articulação com Paulo Freire,

50 Em maio de 2016, uma consulta à busca simples de currículos com a palavra-chave “Ludwik Fleck”,

na página do Currículo Lattes do CNPq retornou 92 nomes de pesquisadores de 21 instituições. Deles, 29 tinham vinculação com a UFSC, 21 com a UFMG e 12 com a USP. Nenhuma das demais instituições teve mais de três ocorrências.

na perspectiva da avaliação e da ação contra a crise ambiental. Os autores identificam convergências nas categorias tema gerador, de Freire, e complicação, de Fleck, apontando que a primeira relaciona-se com problemas internos das contradições da organização social, podendo servir como parâmetro:

tanto para a análise das relações dos graves problemas ambientais com essas contradições, como para conceber e implementar uma atuação político pedagógica que permita uma compreensão crítico- transformadora desses problemas” (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, p. 106).

A associação de problemas ambientais e temas geradores permite “estruturar a dinâmica de codificação-problematização-descodificação, em torno de situações contidas nos problemas ambientais”, através do processo educativo, numa perspectiva emancipadora e transformadora (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, p. 106). Aqui, Freire e Fleck estariam próximos, pois:

Essa classe de problemas relacionados às contradições, dos quais os relativos ao meio ambiente fazem parte, e que exigem empenho coletivo, ou de vários e distintos coletivos de pensamento, para a busca de soluções, pode ser associada ao que Fleck (...) denomina complicação. (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, pp 106-107). Os autores descrevem o objetivo de Fleck como sendo o de entender os processos de transformação relacionados à produção do conhecimento e de como essa transformação impacta o seu período histórico e, posteriormente, como se dá a sua assimilação. Afirmam que, para caracterizar esses processos de transformação, “o autor se apoia na categoria complicação, por ele concebida como problemas que em determinados momentos históricos não são resolvidos com o conhecimento disponível quando se toma a consciência da existência desse tipo de problema.” As complicações dentro de um estilo de pensamento levariam à interação de distintos coletivos de pensamento em busca de soluções que dependem da circulação de ideias, conhecimentos e práticas contidas nos vários estilos de pensamento: “Dependendo do processo construído nessas interações, denominado por Fleck (...) circulação intercoletiva, é possível que um novo EP51 emerja com a solução fornecida para a complicação identificada.” (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, p. 107-108).

51 Delizoicov e Delizoicov adotam as siglas EP para estilo de pensamento e CP para coletivo de

Como as complicações são identificadas e como emergem novos conhecimentos que produzem transformações nas concepções de mundo e em práticas socioculturais balizadoras de coletivos, são duas das intenções de Fleck identificadas por Delizoicov e Delizoicov, que as situam especificamente no campo ambiental: “os problemas ambientais com os quais convivemos parecem constituir complicações. Ou seja, exibem a consciência da existência de problemas ainda não enfrentados e para os quais soluções coletivas precisam ser buscadas”. (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, p. 108). Os autores explicitam as semelhanças que reconhecem entre Fleck e Freire:

Há, assim, alguma semelhança entre o que Fleck denomina de complicação e Freire de tema gerador. O primeiro debruça-se sobre aspectos histórico-epistemológicos e, ao longo do livro (...), faz considerações sobre um processo educativo ao analisar a formação necessária para que coletivos identifiquem e busquem soluções para determinados problemas. O segundo, conforme exposto, debruça-se sobre aspectos educacionais e realiza uma análise gnoseológica, além de antropológica, que potencializa uma ação pedagógica na identificação e compreensão de determinados problemas. Tanto em um, como no outro, o sujeito do conhecimento que tem como seu objeto do conhecimento esta classe de problemas, é caracterizado como um sujeito coletivo que se constitui historicamente no enfrentamento crítico-transformador desses problemas. (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014, p. 108).

Uma característica dos textos produzidos sobre Ludwik Fleck até agora no Brasil, mas não só por aqui, é a necessidade dos autores apresentarem Fleck ao leitor, destacando sua biografia, o período da II Grande Guerra, seu trabalho como microbiologista e sua influência sobre Thomas Kuhn. A isso não fugiram esta tese, o texto de Delizoicov e Delizoicov, o prefácio e a introdução da tradução para o português de sua monografia e o livro Ludwik Fleck, estilos de pensamento em ciência, organizado por Mauro Condé, em que os autores buscam estabelecer diálogos entre Fleck e outros pensadores, como Mannhein, Wittgenstein e Benjamin (DELIZOICOV; DELIZOICOV, 2014; CONDÉ, 2010; CONDÉ, 2012a; LOUZADA- SILVA, 2014).

O livro Ludwik Fleck, estilos de pensamento em ciência, organizado por Mauro Condé, apresenta uma série de interlocuções relevantes para o entendimento da trajetória e do pensamento de Fleck, que nas palavras do próprio Condé, no subtítulo do prefácio da edição brasileira de Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico,

foi de pé de página a novo clássico (CONDÉ, 2010; CONDÉ, 2012a). Três dos sete capítulos são traduções de artigos já publicados por especialistas em Fleck, como Ilana Löwy, Johannes Fehr e Martina Schlünder.

Nos capítulos escritos especificamente para o livro, Carlos Alvarez Maia discute o estilo de pensamento que Fleck representou e a não repercussão de suas ideias quando da publicação de sua monografia. O autor revisa as circunstâncias nas quais Karl Mannheim (1893-1947) forjou o conceito de estilo de pensamento, o impacto do surgimento da sociologia do pensamento, o refluxo dessa ideia, e sua fuga para Londres, em 1933. O artigo se ocupa, principalmente, da compreensão de Mannheim e Fleck sobre sociedade e natureza (MAIA, 2012). Em outro capítulo, Mauro Condé discute o papel da linguagem na construção do pensamento científico, na medida em que atua como fator estruturados do social, e discute as convergências no pensamento de Fleck e Ludwik Wittgenstein (1889-1951) na afirmação dos aspectos sociais da ciência, e em relação ao neopositivismo (CONDÉ, 2012b). De Georg Otte, um dos tradutores de Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico, juntamente com Mariana Camilo de Oliveira, vem um capítulo que relaciona Fleck e Walter Benjamin (1892-1940). O autor encontra convergências, por exemplo, quanto ao caráter provisório do fato científico, defendido por Fleck, e a visão de Benjamin sobre o pensar, que não estaria restrito ao movimento das ideias, mas também à imobilização destas, e reconhece os dois como partícipes de um mesmo coletivo de pensamento (OTTE, 2012). Merece destaque o fato de que os três ensaios que relacionam o pensamento de Fleck com Mannheim, Wittgenstein e Benjamin tomam como referência a relação entre Fleck e Kuhn, em maior ou menor intensidade, no que se refere a estilos de pensamento e as revoluções científica (LOUZADA-SILVA, 2014). O diálogo entre Fleck e Kuhn prossegue no capítulo escrito por Bernardo Jefferson de Oliveira, que aborda tráfego intracoletivo de pensamentos e a circulação e popularização do conhecimento científico, avançando na discussão sobre a autonomia dos educadores e autores de LD em relação à comunidade científica (OLIVEIRA, 2012).