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COM A POLÍTICA FRANCESA

3.1. Do Marx hegeliano à crítica ao idealismo de Hegel

A segunda fase da produção teórica de Marx (1843-1845) é fruto de um processo de emancipação do idealismo alemão e de aproximação com a política francesa. Neste período Marx abandona a ideia da imanência do direito, ou seja, aquela noção de que existiriam direitos inatos ao homem pelo simples fato da humanidade, e se antes ele era um defensor inveterado dos direitos humanos, agora ele passa a criticá-los, por considerar que estes direitos eram históricos e, por consequência, representantes do homem da sociedade burguesa. A grande questão é: por que Marx modificou radicalmente a sua concepção dos direitos humanos? O que teria acontecido com Marx para ele simplesmente abandonar as ideias que ele possuía em 1842 e passar a defender exatamente o oposto?

A nossa tese é que isso se deu, num primeiro momento, por causa do contato que ele travou com a filosofia de Feuerbach, que o levou a estudar com mais profundidade o pensamento de Hegel. Recolhido ao seu “gabinete de estudos” em Kreuznach, Marx releu a

Filosofia do Direito de Hegel e, amparado nas ideias de Feuerbach, passou a criticar o

sistema hegeliano. Num segundo momento, Marx, já morando em Paris, passou a ter mais contato com a política francesa, o que o levou a perceber que os direitos humanos não eram filhos da “natureza”, mas da “História”.

Esta é uma etapa onde fica clara a evolução do seu pensamento. Em 1843, há uma cisão entre o Marx jusnaturalista, que considerava que o direito tinha um papel civilizatório e emancipatório, por representar as esferas de conquistas sociais dos cidadãos, como a liberdade de imprensa, e o Marx crítico dos direitos humanos presentes nas Declarações Francesa e Americana, mas ainda um tanto idealista, pois continuava acreditando que o papel do Estado era defender o interesse geral e se não agia assim era porque a sua administração correspondia aos interesses burgueses. O posicionamento dele ainda é híbrido e, de certa forma, sempre o será. Isso porque para esta Dissertação – que faz uma análise pragmática do marxismo – não é possível separar Marx em vários homens e simplesmente escolher o que mais convém ao intérprete, como pretendeu fazer o estruturalismo althusseriano. O Marx maduro deve muito a Hegel e o Marx economista nunca deixa de ser filósofo; há uma continuidade que não cessa, onde o passado oprime o presente e o presente impulsiona o futuro.

O texto que inaugura a mudança de concepção de Marx é a Crítica à filosofia do

direito de Hegel177, texto não destinado à publicação, mas que serviu para duas coisas: em primeiro lugar, como organização de uma série de ideias desconexas que ele possuía em torno do idealismo; depois, para Marx se posicionar quanto à filosofia que predominava na Alemanha da época, mesmo que o fizesse para si mesmo.

Como vimos anteriormente, o idealismo hegeliano era especulativo e não conseguia ultrapassar o plano teórico, de modo que a realidade é que tinha que se adequar ao pensamento, e não o contrário. Por influência de Feuerbach, Marx abandonou esta perspectiva e adotou uma concepção metodológica materialista (apesar de, neste momento, ela ainda não estar totalmente formulada) e, por conseguinte, oposta ao método hegeliano. Para Feuerbach178, e, a partir de 1843, também para Marx, Hegel havia realizado uma inversão da lógica filosófica, pois havia trocado o sujeito pelo predicado. Marx absorve esta crítica feuerbachiana e funda o seu sistema nesta “inversão” da filosofia de Hegel.

177 Como foi salientado em outro trabalho, Marx “analisa a obra do mestre do parágrafo 261 ao 313, que

compõe a 3ª seção da Filosofia do direito, parte dedicada ao Estado ou, como Hegel a chama, ‘Constituição interna para si’. Desta forma, é mais correto falar não em uma crítica da Filosofia do Direito, mas, sim, da Filosofia do Estado de Hegel”. Cf. BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2012, p. 79.

178

FEUERBACH, Ludwig. Teses provisórias para a reforma da filosofia. Princípios da filosofia do futuro. Lisboa: Edições 70, 1998, p. 31.

Para Marx, o sistema de Hegel tinha sua nota característica no parágrafo 262 da sua

Filosofia do Direito. Nele estaria resumido todo o mistério da sua filosofia especulativa179. Veja:

A ideia efetiva, o Espírito que se cinde a si mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil-burguesa, enquanto sua finitude, a fim de ser, a partir de sua idealidade, espírito efetivo infinito para si, com isso reparte nessas esferas o material dessa sua efetividade finita, os indivíduos enquanto multidão, de modo que essa repartição aparece no [indivíduo] singular, mediada pelas circunstâncias, o arbítrio e a escolha própria de sua determinação180.

Tal “mistério” diz respeito à inversão do sujeito e do predicado. Hegel apresenta o sujeito como predicado e o predicado como sujeito, como nos referimos anteriormente. Assim, a sociedade civil e a família são apenas esferas conceituais enquanto que a entidade real é o “Espírito” (“a ideia efetiva”), que seria representado pelo Estado. Marx não aceita esta inversão181, que para ele é arbitrária e idealista. O argumento marxiano é que não é a família e a sociedade civil que são frutos do Estado; ao contrário, é o Estado, que não passa de uma criação humana, que se origina da família e da sociedade civil. Do mesmo modo, os “indivíduos” ou a “multidão” não são produtos da “Ideia”, mas esta é que é produto daquele. É o elemento material que cria o ideal, e não o contrário. Hegel faz da Ideia o sujeito e da matéria o predicado182, e, assim, opera uma inversão lógica, que despreza o real porque o que interessa é o racional, o conceitual, o ideal.

Para entender melhor a “inversão hegeliana”, Marx tem um texto polêmico (escrito em 1845, logo, um pouco distante da obra que está sendo comentada), cujo objetivo era fazer uma “crítica definitiva” ao idealismo alemão. Neste texto, Marx explica o raciocínio especulativo através de uma metáfora183. Segundo ele, existem certas realidades: maçãs, pêras, amêndoas. Seguindo a lógica e partindo-se desta realidade chega-se à ideia geral de fruta. Mas a “especulação” (isto é, o idealismo alemão) raciocina de maneira diversa, pois imagina que a ideia abstrata – a fruta –, que decorre das frutas reais, é um ser que existe de forma independente, constituindo a essência da maçã, da pêra, das amêndoas e, ainda, que a

179

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, op. cit., p. 31.

180 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito, op. cit., § 262, p. 238. 181 Cf. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, op. cit., pp. 29-39.

182 Idem, p. 32. 183

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A sagrada família, ou crítica da crítica crítica contra Bruno Bauer e seus seguidores. Trad. Sérgio José Schirato. São Paulo: Centauro, 2005, p. 74.

“fruta” é a substância da maçã, da pêra e da amêndoa. Diz-se que o que há de essencial na pêra ou maçã não é a própria pêra ou maçã, ou seja, não é o seu ser real que salta aos sentidos, mas a essência abstrata que se tem da pêra, da maçã ou da amêndoa, a essência da representação, enfim, a fruta. A maçã, a pêra e a amêndoa são apenas modalidades, formas de existência da “fruta”.

Esse idealismo, porém, típico de um raciocínio especulativo, que despreza os fatos, não é somente o de Hegel, mas também dos seus discípulos – os chamados “jovens hegelianos”. Figuram neste time os irmãos Bauer (Bruno e Edgar) e Max Stirner, e é contra eles que Marx e Engels escrevem o texto de 1845, A Sagrada Família, citado acima. (É preciso salientar que são esses mesmos teóricos, agora criticados por Marx, que outrora – mais precisamente, até o ano de 1842 – Marx se achava vinculado. A interpretação que fazemos é que Marx considerava que para ultrapassar Hegel seria preciso ultrapassar também toda a onda de idealismo que ele originou e que Marx identificava nos jovens hegelianos). O objetivo de Marx e Engels era criticar todo o debate alemão, que era essencialmente teórico e, em certa medida, irreal, pois figurava apenas na consciência, transformando todas as lutas concretas em batalhas de ideias184, e, ingenuamente ou não, acreditavam que a resolução dos problemas sociais (que são problemas reais) estava na eliminação de tais problemas na consciência185.

A nossa tese é que a “inversão” marxiana da filosofia de Hegel tem importantes consequências para explicar a mudança radical da sua concepção de direitos humanos. De fato, se é a sociedade civil que cria as instituições – entre elas, o Estado e o direito –, e não o contrário, os direitos humanos não teriam nada de inatos, como Marx pensava na

primeira fase da sua obra (1841-1842). Ao contrário, eles só poderiam ser originados desta

mesma sociedade civil, e por ela ser o palco do egoísmo e do privatismo, como já reconhecia Hegel186 e Marx concordava, eles não poderiam ter outra natureza. Assim, além

184

Idem, p. 105.

185 Segundo Marx, “Hegel faz do homem o homem da consciência de si, ao invés de fazer da consciência de si

a consciência do homem, do homem real e por consequência, vivendo em um mundo objetivo, real e condicionado por ele. Ele coloca o mundo de cabeça para baixo e, conseqüentemente, pode abolir também em sua cabeça todos os limites [...] Além disso, ele considera necessariamente como limite tudo aquilo que engana as balizas da consciência de si universal [...] Toda a Fenomenologia pretende demonstrar que a consciência de si é a única realidade, e toda a realidade” (grifos no original). In: Idem, pp. 237-238.

186 Segundo Hegel, na primeira nota ao parágrafo 289 do seu curso de filosofia do direito, “a sociedade civil-

burguesa é o campo de luta do interesse privado individual de todos contra todos”. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito, op. cit., notas ao § 289, p. 267.

dos direitos humanos não serem inatos, posto que se originavam das lutas de classes existentes na sociedade civil, eles também não eram universais, mas particulares.

O que é interessante é que a relação (crítica) entre Marx e os direitos humanos não se deu nem no plano abstrato nem no plano propriamente jurídico. Na verdade, dizia respeito ao problema – tipicamente alemão – da relação entre a política e a religião. O contexto era o seguinte: na Prússia do século dezenove, pelo fato do Estado não ser laico, a religião ainda era um empecilho para que algumas pessoas – a exemplo dos judeus –, em razão do seu credo, pudessem exercer determinados direitos de cidadania, como, por exemplo, assumir determinados cargos públicos ou exercer certas profissões liberais. Assim, a “questão religiosa” não era só religiosa, mas política, histórica e social, e toda análise que se limitasse à esfera tão-somente religiosa – como a realizada por Bruno Bauer187 –, não estaria sendo dialética e, por conseguinte, não estaria analisando o problema em todas as suas vertentes.

A análise de Marx, entretanto, não era nem míope nem acrítica. Na verdade, a crítica da religião judaica era o pressuposto da crítica aos direitos humanos, haja vista que era a opção religiosa que estava condicionando, na Alemanha, certos direitos políticos. Embora Bauer não tenha conseguido enxergar, o problema de fundo não era teológico, mas político, e, portanto, a crítica da religião não tinha um fim em si mesmo – era pressuposto para outras críticas.

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