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A pragmática do conhecimento como estratégia metodológica utilizada para interpretar a relação de Marx com os direitos humanos

O terceiro detalhe metodológico está na escolha do pragmatismo como estratégia hermenêutica utilizada para explicar a relação de Marx com os direitos humanos. Como vimos na Introdução, trata-se de uma relação complexa. Há variados motivos para isso, mas o principal deles é que a sua concepção acerca do que seria os direitos humanos não é estanque, mas evolui no decorrer da sua obra. Isso não significa, porém, que o intérprete deve cindir Marx em tantos homens quantas forem as suas fases, e mais, escolher o que melhor lhe convém. Marx não é Wittgeinstein, cuja distinção entre as concepções abrangidas por uma fase intelectual e a outra é bastante clara e, ainda, o segundo nega o primeiro51. Por outro lado, Marx também não é um autor de uma única obra. O Marx objeto deste estudo foi um escritor tão prolífico quanto contraditório, como é peculiar aos que quiseram escrever sobre tudo e sobre todos em tempo real. Nesses casos, as contradições são normais e esperadas. Ir contra este fato é negar os limites da mente humana, que não nasce madura, mas desenvolve-se em anos de estudo e vivência.

Por isso, não estamos de acordo com a posição de Louis Althusser, que faz uma cisão entre o “jovem Marx” e o “velho Marx”, com prevalência epistemológica do velho, que era “cientista”, sobre o jovem, que era “filósofo idealista”52

. A tese de Althusser é que há uma “cesura epistemológica” na obra de Marx, localizada em 1845 (mais precisamente, em dois textos: Teses contra Feuerbach e A ideologia alemã) e que separa a sua obra em dois momentos: os escritos anteriores a 1845, pertenceriam ao “jovem Marx”, período em que Marx teria se dedicado à filosofia e ainda tentava se desprender do espectro hegeliano, e os trabalhos posteriores a 1845 pertenceriam ao “velho Marx”, ou ao Marx “maduro”, período em que ele teria se dedicado à economia e teria fundado a sua ciência: o materialismo histórico53. Mais do que uma “inversão hegeliana”, o materialismo histórico

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OLIVEIRA, Manfredo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 117.

52 ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 53 Idem, pp. 23-24. É preciso dizer, entretanto, que em 1969, no prefácio que Althusser escreveu para a edição

francesa de O capital, ele reconheceu que a sua tese da “cesura epistemológica” tinha sido “demasiado rígida”. Mas não pense que, com isso, Althusser pretendia rever as suas posições e abandonar a tese. Na

seria representativo do abandono de Hegel e, portanto, implicaria na construção de uma nova filosofia, a marxiana, que seria independente e distinta54. A posição de Chasin é semelhante, mas a data da cesura é que é diferente. Para o teórico brasileiro, é em 1843, com a Crítica da filosofia do direito de Hegel, que Marx se torna marxista, e os textos escritos anteriormente seriam literatura “pré-marxiana”55

. Assim, não há mudança hermenêutica significativa, o que há é uma mudança de datas. Para um, 1845; para outro, 1843.

Para o nosso trabalho, entretanto, não importam as datas: 1843 ou 1845. Todas as duas são propostas fixistas que não consideram que o conhecimento é contínuo, e mais, que é impossível uma construção intelectual sem pressupostos ou até mesmo contradições. É claro que nestas datas – mais em 1843 e menos em 1846 – Marx modifica explicitamente o seu pensamento, mas isso não quer dizer que o que foi escrito anteriormente seja carecido de valor, pois é possível identificar categorias filosóficas nos textos de juventude que seriam desenvolvidas apenas na maturidade. Para só ficar num exemplo, basta ver o conceito de alienação investigado por Mészáros56.

A preocupação de Althusser, que o leva a criar esta teoria da “cesura”, pode ser descrita a partir de uma inquietação não propriamente sua, uma vez que é encontrada em muitos dos marxistas do século XX. É que algumas das obras mais importantes do “jovem Marx” – para usar a classificação que aqui se combate, mas que é útil para fins didáticos –, como os Manuscritos econômico-filosóficos, só foram descobertas muito tardiamente, o que gerou uma série de estudos sobre tais textos. Assim, neste contexto, indaga Althusser: “Que é feita da filosofia marxista? Ela tem, teoricamente, direito à existência? Se ela existe

verdade, ele a torna ainda mais radical. Para ele, nem em O capital Marx apresenta uma teoria desvencilhada do idealismo de Hegel. Apenas na Crítica ao programa de Gotha é que Marx estaria totalmente livre do mencionado idealismo. Isso faz com que, na opinião de Althusser, apenas em 1875, data da publicação da Crítica ao programa de Gotha, é que Marx teria uma obra realmente “autêntica”. O problema é que esta é uma das últimas obras de Marx (ele morre em 1883) e, consequentemente, caso se adote esta tese – que não adotamos nesta Dissertação; pelo contrário, nos opomos a ela – deve-se considerar que a filosofia de Marx tem pouca coisa de autêntico, o que não é verdade. Cf. ALTHUSSER, Louis. Advertência aos leitores do livro I d’O capital. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de circulação do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 53.

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“Quanto à famosa ‘inversão’ de Hegel, ela é a expressão da tentativa de Feuerbach. Foi Feuerbach que a introduziu e a consagrou na posteridade hegeliana. E é interessante que Marx tenha formulado precisamente contra Feuerbach na Ideologia alemã a censura de ter permanecido prisioneiro da filosofia hegeliana no momento em que pretendia tê-la ‘invertido’”. Idem, p. 61.

55

CHASIN, J. Marx, op. cit., p. 45.

de direito como definir a sua especificidade?”57

. Em outros termos: seria possível falar de uma teoria (ou filosofia) marxiana antes da criação do materialismo histórico? (Isso porque, para Althusser, este era um método transformado em ciência). Althusser responde negativamente. Ele argumenta que o conjunto de textos escritos pelo “jovem Marx” constitui uma série de tentativas que Marx empreendeu para se “libertar do seu começo”, entendido como um “mundo ideológico extraordinariamente pesado que o recobria” e identificado com as “ilusões da filosofia especulativa alemã”58

. Marx, então, pela lente de Althusser, sente-se “obrigado a renunciar a projetar sobre a realidade do estrangeiro os mitos alemães”, pois deveria “projetar sobre a Alemanha a luz das experiências adquiridas no estrangeiro”59

.

Todavia, ao contrário do que propõe o filósofo argelino, somos da opinião de que não há nada mais equivocado do que separar Marx em dois homens. Assim, assumindo o fato de que Marx é um só e que as suas mudanças de concepção foram fruto da sua evolução intelectual, nos opomos à famosa dicotomia supracitada e, por conseguinte, à ideia segundo a qual haveria uma “cesura epistemológica” absoluta entre uma e outra fase, ou, para se opor a Chasin, à ideia de que haveria uma “virada radical” que tornaria o que foi escrito anteriormente uma literatura “pré-marxiana”. Neste sentido, procurando trilhar uma outra rota, numa tentativa de sair das tradições “fixistas”, pretendemos realizar uma análise

pragmática de Marx.

A despeito do pragmatismo não ser um pensamento unitário, uma vez que abriga uma pluralidade de pensadores e de abordagens, parece existir um princípio que é inerente a todos os autores que compartilham dessa tradição filosófica: a continuidade. Para o pragmatismo, como será visto com mais detalhes adiante, o conhecimento é contínuo, não podendo ser fracionado em fases ou etapas supostamente independentes umas das outras; os “novos” conhecimentos sempre carregam algo dos anteriores e as novas categorias sempre estão relacionadas com as categorias precedentes. A tese, portanto, é que como pela

continuidade pragmática o conhecimento não pode ser cindido, isto é, apartado das suas

origens e das suas projeções, não há razão à teoria que aparta o “jovem” do “velho” Marx,

57 ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx, op. cit., p. 22. 58

Idem, p. 71.

como em Althusser, ou à teorização que distingue os textos “pré-marxianos” dos “marxianos”, como quer Chasin.

O que se quer com a filosofia pragmática é tomá-la como aporte para resolver a seguinte problematização: pelo fato de Marx ter abandonado os direitos humanos no fim da sua carreira, as obras de juventude, onde ele defendia os direitos humanos, não teriam mais validade? Como consequência, as obras juvenis (escritas até 1845) teriam importância somente histórica? Althusser estaria certo em fazer um corte epistemológico entre o “jovem” e o “velho” Marx?

Com o pragmatismo, e o seu princípio da continuidade, combatemos as inquirições feitas acima e defendemos a ideia de que nas suas obras juvenis já estariam presentes algumas categorias que Marx trabalharia só na maturidade, pois é possível perceber uma evolução não linear (posto que descontínua) entre o “jovem” e o “velho” Marx. E isso não é novidade. Mészáros, em obra sobre a temática da alienação, já havia percebido a falsidade da oposição entre o “jovem” e o “velho” Marx, ou, como ele formulou, entre a filosofia e a economia política na obra de Marx60.

Isso se dá porque, como argumenta William James, o conhecimento é contínuo, incessante, não estando sujeito a cortes abruptos. Na sua compreensão, o conhecimento cresce por pontos, que podem ser de grande ou pequena monta, não importa; o essencial é que ele nunca cresce por inteiro, de uma vez só61. A razão parece simples: os homens não são entes “zerados”, alguma experiência de vida eles sempre têm. Portanto, a concepção nova, em razão de não encontrar um recipiente vazio, choca-se com as velhas concepções, e é o resultado desse choque que será o responsável pelo surgimento da ideia nova62 – que é diferente das concepções anteriores, posto que é constituída pela mistura ou superação delas.

Assim, explica-se porque a ideia nova não é algo puro, inusitado, fruto de uma “abiogênese”; processo que começa do nada, desprovido de historicidade. A ideia nova, como explica James, “preserva o estoque mais antigo de verdades com um mínimo de

60 MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx, op. cit., p. 208.

61 JAMES, William. Quinta conferência: pragmatismo e senso comum. Pragmatismo. Trad. Jorge Caetano da

Silva. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 98.

modificação, estendendo-as o bastante para fazê-las admitir a novidade, mas concebendo tudo em caminhos tão familiares quanto o caso permite ser possível”63

.

Essa condição faz parecer a olhos não treinados que nada se modificou, mas o indivíduo já é outro, não totalmente diferente, mas, ainda assim, em alguma medida diferente. Tal processo não é perceptível por razões muito simples: todo indivíduo possui a tendência de conservação do seu modo de vida, o que inclui as suas ideias. Assim, mesmo adotando uma ou outra ideia nova, ele ainda permanece com a maioria das antigas opiniões; na verdade, seria um caos mental se os homens modificassem todo o estoque de opiniões rotineiramente, a todo tempo.

Na verdade, a “evolução” intelectual de um indivíduo, no mais das vezes, só é notada quando se faz uma análise detida do seu percurso64. Isso porque os homens, além de já possuírem um “estoque de velhas opiniões” (James), têm a tendência de conservar as velhas ideias e os velhos preconceitos, pois desde Platão já sabemos que tudo o que é novo é estranho e incômodo65. Novas concepções são inseridas paulatinamente e o objetivo é fazer com que a maioria das ideias antigas possam se manter, na medida do possível, inalteradas. “Remendamos e concertamos mais do que renovamos”66

, diz James.

Neste contexto, a par da metodologia pragmática, podemos defender que a evolução de Marx foi gradual e histórica, pois os direitos humanos na sua obra são um objeto que o tempo vai tornando mais complexo, porque a nova formação não abandona totalmente as características anteriores. Não há uma cisão completa entre uma fase e outra de Marx, pois é o mesmo Marx que evolui intelectualmente. É o futuro projetado pelo passado e o moderno com resquícios do arcaico; é o marxista em dívida com Hegel e o economista que ainda é filósofo.

63

Idem, pp. 50-51.

64

Nesse sentido, cf. Enoque Feitosa, que, ao tratar da teoria da “cesura epistemológica”, sustenta que “é impossível uma compreensão desse pensador [Marx] e uma análise de sua teoria, bem como buscar onde ela contribui para uma adequada compreensão realista do fenômeno jurídico sem que se faça tal empreendimento através de um exame amplo de sua obra, valorizando as obras da maturidade como um salto de qualidade em relação àquelas de juventude”. FEITOSA, Enoque. O discurso jurídico como justificação: uma análise marxista do direito a partir da relação entre verdade e interpretação. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009, p. 72.

65 Cf. a “alegoria da caverna” de: PLATÃO. A república. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo. Martin Claret,

2004, cap. VII.

O argumento de Althusser não pode ser aceito porque não se pode cindir um pensador em dois, já que as novas concepções sempre possuem algo das antigas: a evolução intelectual de um indivíduo, na esteira de James, não se dá a partir de cortes epistemológicos, mas de continuidades, e o que é mais comum, de descontinuidades. Neste sentido, é lógico que qualquer um, depois de estudos mais aprofundados e de uma vivência mais prolongada, pode modificar as suas concepções; o que não acontece é tal concepção surgir do zero.

Infelizmente, ou não, a habilidade de Janus67 morreu com ele, e o Marx objeto desta pesquisa foi tão contraditório quanto é peculiar a um escritor prolífico e que resolve se manifestar sobre fatos em tempo real. O que pode ter sucedido a Althusser, e a grande parte da tradição marxista, é o incômodo de assumir as possíveis contradições de Marx. Agora, esta é uma dificuldade que só pode ser resolvida com a problematização do autor, como já foi sugerido na Introdução, o que requer estudiosos que pensam com a própria cabeça – aliás, como exigia o próprio Marx68 –, porque não é possível fazer filosofia com crentes.

Mészáros, em obra já mencionada, além de ser contrário à tradição althusseriana, percebeu outros propósitos dos que defendem tal concepção e argumentou nestes termos:

[...] aqueles que desejam evadir os problemas filosóficos vitais – de modo algum especulativos – da liberdade e do indivíduo se colocam ao lado do Marx ‘científico’, ou ‘economista político maduro’, enquanto os que desejariam que o poder prático do marxismo (que é inseparável de sua desmistificação da economia capitalista) nunca tivesse existido exaltam o ‘jovem filósofo Marx’69.

Com a razão o filósofo húngaro. Não se pode cindir um pensador em duas figuras estranhas e autônomas, nem desprezar o que ele escreveu anteriormente, nem mesmo se ele próprio dissesse que o que ele escreveu anteriormente não teria mais valia. Mas, se as razões expostas até aqui ainda não fossem suficientes, seria preciso reler o que o próprio

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Janus era um deus grego que tinha uma cabeça com duas faces (bifronte), uma rara habilidade que permitia que ele olhasse para dois lados ao mesmo tempo; isso possibilitava que ele pudesse ver o passado e o futuro concomitantemente. O mês de janeiro, por exemplo, tem seu radical derivado deste mito, pois na qualidade de primeiro mês do ano ele “olha” o ano que se foi e o ano que está por vir. Cf. GRIMAL, Pierre. A mitologia

grega. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 115.

68 O próprio Marx, em passagem emblemática, é contrário aos que se limitam a repetir fórmulas:

“Pressuponho, naturalmente, leitores desejosos de aprender algo de novo e, portanto, de pensar por conta própria”. MARX, Karl. Prefácio da 1ª edição. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de circulação do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 78.

Marx fala de Hegel no posfácio da segunda edição de O Capital e refletir se a tese da “cesura epistemológica” ainda poderia subsistir:

Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase 30 anos, quando ela ainda estava na moda. Mas quando eu elaborava o primeiro volume de O capital, os enfadonhos, presunsosos e medíocres epígonos que hoje pontificam na Alemanha culta acharam-se no direito de tratar Hegel como o bom Moses Mendelssohn tratava Espinosa na época de Lessing: como um “cachorro morto”. Por essa razão, declarei-me publicamente como discípulo daquele grande

pensador e, no capítulo sobre a teoria do valor, cheguei até a coquetear aqui e ali com seus modos peculiares de expressão70 [...] (grifo nosso).

Assim, em O capital, sua principal obra, onde Marx demonstra mais maturidade filosófica, ou científica, para usar Althusser, ele próprio relata que ainda escrevia trechos amparando-se metodologicamente em Hegel. É possível afirmar, então, que o “velho Marx” não abandonou totalmente a filosofia da juventude. Embora a sua obra seja crítica da tradição hegeliana, mais do que se desvincular das suas origens, parece que Marx nunca deixou de flertar com ela.

Em síntese, poderíamos dizer que são três os pressupostos metodológicos deste trabalho:

Primeiro. Os direitos humanos objeto de Marx são aqueles emanados das Declarações Francesa e Americana, os quais a doutrina constitucionalista chama de

“primeira geração de direitos”. Por isso, é necessária uma adaptação ao pensamento marxiano para aplicá-lo no mundo moderno, onde os direitos humanos constituem um objeto muito maior;

Segundo. As chamadas três fontes do marxismo influenciaram a concepção de Marx

acerca desses direitos humanos, o que revela que o lugar social do autor interfere na construção da própria teoria;

Terceiro. Uma abordagem pragmática de Marx impede as interpretações fixistas e

ajuda na compreensão de que só é possível entender a última concepção dos direitos humanos de Marx se for levada em conta as categorias filosóficas lançadas nas obras “juvenis”, isto é, se for entendido todo o percurso histórico-intelectual do autor. É por isso que preferimos traçar a história evolutiva do conceito de direitos humanos na obra de Marx,

e não procurar estabelecer uma “teoria marxiana dos direitos humanos”, que não existe, visto que a sua postura é, fundamentalmente, crítica, negativa.

CAPÍTULO II

O MARX IDEALISTA E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS: A IDEIA DE

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