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As teses de Atienza sobre o papel dos direitos humanos no Manifesto: considerações críticas

DE SUPERAÇÃO DA SOCIEDADE BURGUESA

4.2. A revolução comunista e a superação da ordem burguesa: os direitos humanos como direitos burgueses

4.2.1. As teses de Atienza sobre o papel dos direitos humanos no Manifesto: considerações críticas

Manuel Atienza, porém, chegou à conclusão de que Marx, no Manifesto, defendeu os direitos humanos, e não que o seu projeto político visava à superação do direito. Como esta última perspectiva é a adotada aqui e, claramente, é oposta à interpretação realizada pelo jurista espanhol, nesta seção se pretende analisar as cinco teses apresentadas por Atienza e apontar as suas possíveis deficiências, que giram em torno da sua interpretação a- histórica dos direitos humanos.

Primeira tese. Segundo Atienza, Marx defendia a abolição da propriedade privada, não da propriedade em geral320; além disso, sustentava que no sistema capitalista a propriedade já estaria abolida para a maioria da população, logo, o seu objetivo, antes de abolição da propriedade, seria a “igualdade de direitos”, isto é, igualdade de acesso à propriedade321. Essas duas passagens, ainda segundo Atienza, confirmariam que Marx não era contrário aos direitos humanos, e mais, “adotava uma postura totalmente favorável”322

, só que exigia mais profundidade destes “direitos”.

A tese está correta quanto aos pressupostos, mas equivocada quanto à conclusão. De fato, Marx afirmou que o objetivo do partido comunista era acabar com a propriedade privada, mas não com toda a propriedade, e que isso se dava porque a propriedade privada gerava a exploração daqueles que não tinham propriedade. Por isso, era preciso dar propriedade a todos. Isso está correto e uma leitura ainda que superficial do Manifesto atesta esta compreensão. O que é problemático é afirmar que destes postulados pode-se concluir que Marx defendia os direitos humanos.

O argumento de Marx é complexo e para entendê-lo é preciso saber que o filósofo alemão fazia distinção entre capital e sistema capitalista. Não é à toa que a sua principal obra se chama “O Capital” e muitos dos seus escritos remetem ao que ele chamou de

320 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos, op. cit., p. 123. 321

Idem, p. 124.

“formações econômicas pré-capitalistas”323

, o que leva a crer que Marx reconhecia o óbvio: existiram sociedades anteriores ao capitalismo, apesar de já convivendo com o capital324. O capitalismo é apenas um modo de produção que trata de forma diferenciada o capital, apropriando-se dele de forma individualizada. Em outras palavras, no capitalismo o produto do trabalho, embora seja social, não pertence a todos, mas é personificado. Trata-se, enfim, de um sistema caracterizado pela apropriação privada dos produtos sociais. Por isso é que foi só com a privatização da propriedade e com a divisão progressiva do trabalho, e, naturalmente, com a distinção entre produção e consumo que pôde surgir o sistema capitalista.

A tese de Marx é que se a posse do capital não fosse individualizada, mas pertencesse a toda a coletividade, acabaria o sistema capitalista. Veja:

[...] quando o capital é transformado em propriedade coletiva, pertencendo a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. É apenas o caráter social da propriedade que se transforma. Esta perde o seu caráter de classe325.

O objetivo de Marx é regular quem se apropria dos produtos sociais. Para ele, é injusto que um, o capitalista, detenha os bens sociais em detrimento de outros, os trabalhadores. Logo, não se trata de suprimir a apropriação, porque assim acabaria a própria produção, necessária à sobrevivência dos homens, mas de possibilitar que os produtos sociais sejam usufruídos por todos. Veja:

Não queremos, de forma alguma, suprimir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho, necessários à reprodução da vida imediata, apropriação que não deixa nenhum benefício líquido que confira um poder sobre o trabalho alheio. Queremos apenas suprimir o caráter miserável dessa apropriação, em que o operário só vive para aumentar o capital e só vive enquanto o exigem os interesses da classe dominante326.

Por isso é que Marx se insurge contra a propriedade privada, e não contra a propriedade em geral, porque é a propriedade privada que provoca, segundo Marx, as

323

Cf. MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Trad. João Maia. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

324 Nesse sentido, MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Trad. Paulo Cézar Castanheira e Sérgio Lessa.

São Paulo: Boitempo, 2012, caps. 2, 4, 5, 17 e 20.

325

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista, op. cit., p. 49.

injustiças sociais, em virtude dela possibilitar que o capitalista se aproprie dos frutos que pertencem a todos. Assim, por Marx ser contrário à propriedade privada não há como sustentar a sua simpatia com os direitos humanos, pois a propriedade privada é a base econômica das Declarações. Os direitos humanos não correspondem simplesmente ao “direito de propriedade”. A “propriedade”, defendida nas Declarações, é a propriedade privada, o que conduz à noção que se está falando de direitos do homem burguês, que é proprietário, e não do trabalhador, tolhido de qualquer propriedade327.

A segunda parte da tese (segundo a qual Marx apenas exigia que os homens tivessem “iguais direitos” de propriedade), apesar de correta, necessita de um esclarecimento. Quando Marx exige a igualdade entre os homens, não significa que ele queira que todos tenham propriedade privada, pois esta se baseia na exploração do trabalho. Nos Manuscritos de 1844, ele chamou esta ideia de “comunismo grosseiro”328. Na verdade, o objetivo de Marx é ultrapassar o sistema burguês – que se baseia na apropriação privada dos meios de produção – e, por conseguinte, a contradição entre capital e trabalho. Todavia, ele não poderia ultrapassar a ordem burguesa sem ultrapassar concomitantemente a propriedade burguesa.

Embora Atienza reconheça que o objetivo de Marx no Manifesto era suprimir a propriedade privada e que esta era a sua única incompatibilidade com os direitos humanos329, na verdade esta “única” incompatibilidade era “tudo”, porque os direitos humanos objetos de Marx não poderiam subsistir filosoficamente sem o direito à propriedade privada, posto que este é parte constituinte do seu conceito.

327

Em sentido contrário, MÉSZÁROS, István. Marxismo e direitos humanos. Filosofia, ideologia e ciência

social. Trad. Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 161, para quem “Marx rejeita enfaticamente a

concepção de que o direito à propriedade privada (posse exclusiva) constitui a base de todos os direitos humanos”. Uma afirmação deste tipo, porém, é problemática, principalmente se levarmos em consideração (i) o art. 16 da Declaração de direitos do homem e do cidadão, de 1789, que diz que a propriedade privada é um direito “inviolável e sagrado”, e (ii) a influência de Locke – o maior defensor da propriedade privada encontrado neste período – na configuração dos direitos humanos, como vimos na seção 1.1. É a identificação que Marx faz dos “direitos do homem” com o “homem da propriedade privada” em A questão judaica (cf. seções 3.3 e 3.4) que o leva a abandonar os direitos humanos. É certo que Marx é contra a propriedade privada, mas daí concluir que ele não considerava que era ela que embasava os direitos humanos é um salto que não pode ser extraído dos seus textos. Em nenhum momento Marx postulou outro direito (um direito cuja propriedade privada não seria a sua base); e é o fato do direito ser um instrumento de legitimação da classe burguesa que ele o abandonou. Para Marx, não existiria um direito “melhor”, como imaginam os teóricos do “direito alternativo”; todo direito é fundado em dominação, ainda que, em certa medida, possa promover alguma emancipação, como ele próprio reconheceu ao abordar a “emancipação política” da Declaração francesa.

328

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., pp. 135-137.

Segunda tese. Como Marx lutava pela redução da jornada de trabalho e pelo direito de associação da classe trabalhadora, ele estaria defendendo os direitos humanos330.

Como foi desenvolvido em outro lugar331, o direito do trabalho nasce a partir de um contexto social dominado pelo chamado “capitalismo selvagem”, onde os trabalhadores eram forçados a exercer seus ofícios em péssimas condições. Diante desta situação, os trabalhadores precisavam de um instrumento de proteção que humanizasse as relações, até então vazias, entre patrão e empregado, e, por conseguinte, que limitasse o arbítrio dos primeiros em relação aos últimos. O direito do trabalho veio para ocupar esse espaço. Porém, ele não surgiu com o objetivo de proteger os trabalhadores (apesar de sua normatização protegê-los efetivamente), a sua intenção foi proteger o capital, quando este se encontrava ameaçado em alguns lugares por revoltas trabalhistas, e, em outros, por revoluções de cunho socialista. De fato, enquanto a luta dos trabalhadores era feita por meios pacíficos, como são exemplos o cartismo e a doutrina social da Igreja, os governos acharam por bem inibir as reivindicações com uma série de leis que tornavam crime a reunião dos trabalhadores que tivessem por objetivo discutir e pleitear melhores condições laborais. São exemplos de leis nesse sentido: a Lei de Le Chapelier (1791) e o Código

Penal Napoleônico (1810), na França; os Combinations Acts (1799), na Inglaterra; e o Códice Penale Sardo (1859), na Itália332. Porém, quando tais reivindicações se tornaram violentas e começaram a professar ideais socialistas, como é exemplo o movimento dos “luddistas”333

, os governos se depararam com uma encruzilhada: ou concediam direitos aos trabalhadores, e assim perdiam parte dos lucros, mas mantinham o capitalismo, ou não concediam esses direitos, de modo que continuariam a ter os mesmos rendimentos, mas poderiam sofrer revoluções socialistas, e assim arriscariam a própria existência do sistema capitalista. Eles tomaram a segunda decisão e foi dessa normatização que surgiu o direito do trabalho.

Embora Marx seja um conhecido militante da classe trabalhadora, a filosofia do

Manifesto é totalmente incompatível com o direito do trabalho.

330 Idem, p. 125.

331

BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx, op. cit., pp. 87-104.

332 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de direito sindical. São Paulo: LTr, 2003, pp. 41-42. 333 “Luddismo. Movimento operário inglês de protesto, que se desenvolveu no início do século XIX mediante

a destruição de alguns tipos de máquinas industriais, buscava alcançar melhorias salariais e frear a completa mecanização do ciclo de produção têxtil” In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. VARRIALLE et alii. 5ª ed. Brasília: UNB, 1993, v. 1, p. 724.

Enquanto o Manifesto defende a teoria da luta de classes, pretendendo extinguir a propriedade burguesa para que, através de uma revolução definitiva, acabe a exploração de uma classe sobre a outra, o direito do trabalho pensa de forma diametralmente oposta, pois reconhece a existência das classes, mas não faz nada para extingui-las, já que a luta de classes é a condicionante suprema da sua própria existência como ramo autônomo do direito.

Isso demonstra, de forma clara, a dicotomia existente entre o Manifesto do Partido Comunista e o Direito do Trabalho, já que o primeiro quer a extinção das classes e da decorrente exploração de uma sobre a outra e o último cristaliza as classes legalizando o conflito334.

Agora, o fato de Marx defender a diminuição da jornada de trabalho para a classe trabalhadora não significa que o direito do trabalho seja bem visto por ele, pois o seu verdadeiro objetivo é acabar com a exploração do trabalhador, e não a criação de mecanismos jurídicos para controlar a exploração335. É preciso lembrar que já em A questão

judaica Marx reconhecia a importância da emancipação política, porém sempre deixou

claro que ela não era suficiente336. Assim, mais importante do que diminuir a jornada é acabar com a apropriação seletiva do capital. O direito do trabalho, ao invés de extinguir as classes, as pressupõe. Assim, não há emancipação dos trabalhadores, mas controle e dominação através do direito.

Já quanto à defesa da associação dos trabalhadores é preciso ter cuidado, porque Marx usa o termo “associação” em dois sentidos. Como Atienza generaliza o vocábulo – como se Marx sempre tivesse usado a palavra no mesmo sentido –, a sua abordagem fica confusa. Mas, independentemente do sentido, nenhum deles indica que Marx defendia os direitos humanos.

O primeiro sentido era referente à “liberdade de associação” (Vereinigungsfreiheit), ou seja, a reunião da classe trabalhadora com o fim de discutir conjuntamente as reivindicações da categoria e, porventura, realizar protestos. Veja:

334

BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx, op. cit., p. 103.

335 Como lembra Žižek, “a tarefa da política emancipadora está alhures: não em elaborar uma proliferação de

estratégias de como ‘resistir’ ao dispositivo predominante a partir de posições subjetivas marginais, mas em pensar as modalidades de uma possível ruptura radical no próprio dispositivo predominante. Em todo o discurso sobre os ‘lugares de resistência’, tendemos a esquecer que, por mais difícil que seja imaginar isso hoje, os mesmo dispositivos a que resistimos mudam de tempos em tempos”. In: ŽIŽEK, Slavoj. The Wire ou O que fazer em épocas não eventivas. O ano em que sonhamos perigosamente, op. cit., p. 112.

336 “A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva de

emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui”. MARX, Karl. Sobre a questão judaica, op. cit., p. 41.

[...] Cada vez mais, conflitos isolados entre operários e burgueses assumem caráter de conflitos entre duas classes. Os operários começam por formar coalizões contra os burgueses; unem-se para defender seu salário. Chegam até a fundar associações duradouras para se premunirem no caso de sublevações eventuais. Aqui e ali, a luta transforma-se em motins337 (grifos do autor).

Ou, neste trecho: “O progresso da indústria, de que a burguesia é o agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários resultante da concorrência, por sua união revolucionária em associação”338 (grifos do autor).

O segundo sentido é a “associação” (Vereinigung) enquanto outra forma de organização política, oposta ao Estado. Aqui há um sentido realmente revolucionário, que implica na derrubada do Estado moderno. Veja: “Uma vez que desaparecerem as diferenças de classe no curso do desenvolvimento, e toda a produção concentrar-se nas mãos de

indivíduos associados, o poder público perderá o seu caráter político”339 (grifo do autor). Ou, aqui: “No lugar da antiga sociedade burguesa com suas classes e oposições de classe surge uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”340

(grifo do autor).

Mas, independentemente do descuido linguístico do jurista espanhol, em ambos os sentidos não há como falar em defesa dos direitos humanos. No primeiro, Marx diz que a associação é uma “união revolucionária” que vai derrubar o estado de coisas, ou seja, a sociedade burguesa e a sua projeção jurídico-ideológica – os direitos humanos. No segundo, ele diz que a associação dos trabalhadores será uma nova organização política, ou seja, uma organização não burguesa, e, por conseguinte, refratária dos direitos humanos.

Atienza ainda argumenta que Marx utiliza os direitos humanos – corpo do qual o “direito de associação” faria parte – para destruir a sociedade burguesa e radicalizar a proposta dos próprios direitos humanos, sem, porém, negá-los. O Manifesto, neste sentido, seria o marco que encaminharia os direitos humanos da concepção clássica – direitos civis e políticos – para uma nova concepção, preocupada com direitos de conteúdo econômico, social e cultural341.

337 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista, op. cit., p. 39. 338 Idem, p. 39.

339 Idem, p. 61. 340

Idem, p. 62.

É fato que o Manifesto influenciou a chamada “segunda geração de direitos”342, que culmina com as constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919, doutrina que restou conhecida como “constitucionalismo social”. Mas isso não quer dizer que Marx defendia os direitos humanos. O grande problema de Atienza é que ele encara os direitos humanos como um bom jusnaturalista, que acredita que existem certos direitos que são inerentes à condição humana e que, independentemente do contexto político, esses direitos sempre acompanharão os homens, pois a humanidade não pode ser concebida sem eles. É uma postura a-histórica a que interpreta os direitos humanos como conquistas universais. Para Marx, os direitos humanos são concretos e representativos de uma classe, a burguesia. Assim, seria impossível ultrapassar a sociedade burguesa sem superar ao mesmo tempo os direitos humanos, pois uma coisa está conectada à outra.

Terceira tese. Marx não considerava que o comunismo era incompatível com a liberdade e, por isso, não é possível dizer que Marx se afastava dos direitos humanos343.

Para comentar esta tese é preciso ter em conta que a igualdade e a liberdade jurídicas são ideologias modernas344. De fato, apenas com a ascensão da burguesia é que houve a necessidade de conferir ao homem tal status, com o objetivo de regular o trabalho “livre, mas subordinado” (que contradição!), pois somente um homem livre e igual é que poderia dispor do próprio corpo em prol de outrem. Diferentemente da modernidade, que lida com os assalariados, os antigos conviviam com a escravidão, e o medievo, com a servidão, formas de prestação de trabalho desprovidas de autonomia e vontade e, por conseguinte, de liberdade. De fato, os escravos eram coisas, assim como as mulheres345; já os servos, mormente na Alta Idade Média, embora considerados homens, estavam ligados à

342 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros editores, 1996,

p. 227.

343

ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos, op. cit., p. 126.

344

Segundo assinala Pontes de Miranda, “O direito dos nossos tempos, depois de se haver o homem libertado do direito do clã e da tribo, bem como do privatismo oligárquico da Idade Média, é baseado em que cada um tem campo de autonomia em que pode rumar; como entenda, a sua vida. Supõe-se em cada um aptidão biológica, social e psico-individual para alcançar fins autônomos, escolhendo os fins e, ainda, criando fins seus”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Prefácio. Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954, p. XVII.

345 Na Tábula 06, ponto 6, da Lei das XII Tábuas encontra-se disposto o seguinte: “A mulher que residir

durante um ano em casa de um homem, como se fora sua esposa, será adquirida por esse homem e cairá sob o seu poder, salvo se se ausentar da casa por três noites”. LEI DAS DOZE TÁBUAS. Código de Hamurábi;

terra e eram identificados com ela, de modo que ao ser extinta esta (ou a posse dela) era o fim do homem. Ambos, escravos e servos, não eram nem livres nem iguais, mas obrigados.

Portanto, o homem livre e com pretensões igualitárias, dotado de vontade e com poder de disposição, tal qual o conhecemos, não é uma imagem antiga. É apenas com o ressurgimento do comércio e, principalmente, da indústria que se passou a cogitar esta situação, já que o trabalhador, sem liberdade, não poderia dispor de si e celebrar contratos346. O problema é que somente a liberdade não era suficiente para esse fim. Isso porque a autonomia é incompatível com qualquer espécie de coação (presente tanto na escravidão quanto na servidão), pois esta inibe a vontade, que é um querer destinado a algo. Assim, para haver manifestação de vontade, móvel da liberdade e da autonomia, era imperativo que ambas as partes estivessem em equivalência de condições347, ou seja, em pé de igualdade, embora não necessariamente factual, mas legal.

No capitalismo, embora se alegue que ele foi o período em que o homem passou a ser livre para escolher entre exercer ou não uma atividade laboral, esta noção é falsa, porque neste sistema quem não é proprietário é obrigado a vender a sua força de trabalho e, com isso, obrigado a trabalhar; para estes, não há escolha ou liberdade. Os proprietários, ao revés, diferentemente dos trabalhadores, podem viver de rendimentos ou mediante o trabalho alheio; para estes, a liberdade (de não trabalhar) é garantida pela coação dos que trabalham. Por isso é que, na ótica de Marx, o trabalho moderno não pode ser encarado como um ato livre, porque não se trabalha porque se quer, mas para não perecer, e, ao mesmo tempo, existem indivíduos que não precisam se submeter a isso. É uma contradição. Veja como argumenta Thiago Arruda:

É importante compreender que, por conta da “compulsão econômica”, o trabalho, no contexto da divisão entre proprietários e não-proprietários, é um trabalho coagido – apesar de, em seu aspecto formal, consistir em uma relação contratual livre – e que a coação também comporta a dimensão política, no sentido de que a

346 Como adverte Žižek, “somente no capitalismo a exploração é ‘naturalizada’, está inscrita no

funcionamento da economia – ela não é o resultado de pressão e violência extraeconômicas, e é por isso que, no capitalismo, temos liberdade pessoal e igualdade: não há necessidade de uma dominação social direta, a dominação já está na estrutura do processo de produção. [...] Desse modo, embora na economia de mercado eu permaneça dependente de facto, essa dependência é ‘civilizada’, representada na forma de uma ‘livre’ troca de mercado entre mim e outras pessoas, e na forma de servidão direta ou mesmo de coerção física”. ŽIŽEK, Slavoj. Da dominação à exploração e à revolta. O ano em que sonhamos perigosamente, op. cit., p. 17.

propriedade privada é assegurada pelo Estado. Em outras palavras: não é a ausência de intervenção do Estado que garante, necessariamente, a liberdade

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